Revista Exame

O último unicórnio: a QI Tech foi a única a superar US$ 1 bi em 2024 e pode seguir sozinha até 2025

Com investidores mais avessos ao risco, o Brasil perde o ritmo na criação de startups bilionárias

Pedro Mac Dowell, CEO da QI Tech: ele fundou a fintech em 2018 apostando na oferta de serviços bancários como infraestrutura para empresas de diversos setores (Leandro Fonseca/Exame)

Pedro Mac Dowell, CEO da QI Tech: ele fundou a fintech em 2018 apostando na oferta de serviços bancários como infraestrutura para empresas de diversos setores (Leandro Fonseca/Exame)

André Lopes
André Lopes

Repórter

Publicado em 14 de fevereiro de 2025 às 06h00.

Última atualização em 14 de fevereiro de 2025 às 07h00.

Startups avaliadas em mais de 1 bilhão de dólares entraram em extinção no Brasil. Entre 2021 e 2023, 13 empresas chegaram a esse patamar, mas o ritmo desacelerou. Em 2024, mesmo com um volume estável de injeção de capital de risco — a captação dos fundos de venture capital ficou em 83 bilhões de dólares globalmente —, apenas uma companhia brasileira, a QI Tech, conseguiu somar aportes suficientes para passar a marca do bilhão, e deve carregar até 2026 o posto de último unicórnio brasileiro.

A aversão ao risco, claro, não é exclusiva do mercado nacional. O movimento é global e reflete uma postura mais cautelosa entre os investidores. O número de rodadas de financiamento caiu 36,2% no período, passando de 389 para 289 transações. O aumento dos juros e a concentração de investimentos em setores como inteligência artificial (IA) também influenciaram essa dinâmica. Além disso, fundos de venture capital passaram a priorizar startups mais maduras e com fluxo de caixa positivo, reduzindo o espaço para negócios em estágio inicial.

Mas a trajetória da QI Tech não se explica apenas pelo contexto econômico. A empresa conseguiu crescer, mesmo em um ambiente mais restritivo, ao adotar uma estratégia diferente da maioria das fintechs. Desde sua fundação, em 2018, apostou na oferta de infraestrutura bancária modular, permitindo que empresas não financeiras integrassem ao portfólio uma cesta de serviços bancários sem precisarem construir toda a operação do zero.

O modelo funciona como um plug and play: cada cliente pode escolher quais produtos deseja oferecer — de análise de risco e onboarding a emissão de cartões e concessão de crédito —, sem a necessidade de uma licença bancária própria. “Havia uma lacuna no mercado: empresas não financeiras não tinham um parceiro. O fluxo de crédito é deles, e nós operamos a análise”, diz Pedro Mac Dowell, CEO da QI Tech.

Escritório da QI Tech, em São Paulo: a startup foi a única a atingir o status de unicórnio em 2024, em um mercado cada vez mais seletivo para venture capital (Leandro Fonseca/Exame)

Inspirada em referências como Amazon Web Services (AWS) e Stripe, a fintech consolidou-se como uma fornecedora de Banking as a Service (BaaS). A experiência de Mac Dowell no setor financeiro ajudou a moldar essa visão. Antes de fundar a QI Tech, ele ocupou posições estratégicas no mercado.

Entre 2000 e 2004, atuou como associate na S&P Global Ratings, desenvolvendo expertise em análise de risco e mercado financeiro. Sua jornada empreendedora ganhou força em 2008, quando fundou a Quatá Investimentos. Durante 11 anos, Mac Dowell liderou a empresa, até a fundação da QI Tech.

O contato direto com as dificuldades das empresas na oferta de serviços bancários, segundo ele, o levou a identificar a oportunidade de criar uma infraestrutura mais flexível e acessível. “Eu conhecia, na prática, todas as dores do setor”, diz o executivo.

Outro fator que diferenciou a empresa foi a decisão de construir sua própria tecnologia. Enquanto bancos e fintechs costumam utilizar sistemas terceirizados para processar transações financeiras, a QI Tech desenvolveu sua infraestrutura internamente. A aposta inicial teve um custo alto, mas garantiu maior controle e capacidade de adaptação às mudanças do setor.

A empresa atua em quatro frentes principais. A primeira é a de Know Your Client as a Service (KYC), que envolve verificação de identidade e soluções antifraude. A segunda é o Banking as a Service (BaaS), voltado para a criação de contas digitais, emissão de cartões e processamento de pagamentos. A terceira é o Lending as a Service (LaaS), que permite a oferta de crédito sem a necessidade de intermediação bancária. A mais recente envolve a custódia e administração de fundos de investimento, ampliando o escopo da QI Tech dentro do setor financeiro.

Hoje, a empresa atende desde marketplaces como a Shopee, que utiliza sua tecnologia para bancarizar vendedores na plataforma, até gigantes do setor imobiliário, como o QuintoAndar, que viabiliza serviços financeiros para locadores e inquilinos. Na mobilidade, a 99 oferece contas digitais e crédito para motoristas e passageiros por meio da infraestrutura da fintech.

Já a Vivo integra a solução ao Vivo Money, permitindo recargas de celular, cashback, pagamentos e transferências via Pix dentro do próprio ecossistema da operadora. No setor agrícola, a Syngenta também utiliza a tecnologia da QI Tech para ampliar a oferta de crédito no campo. “Toda grande empresa que tem relacionamento recorrente com clientes pode oferecer soluções financeiras”, afirma Mac Dowell. “A Vivo, por exemplo, conhece o histórico de pagamentos de seus usuários há décadas. Por que não oferecer crédito diretamente a eles?”

A ascensão da QI Tech ao status de unicórnio também reflete mudanças no comportamento dos investidores. Durante o período de liquidez abundante, entre 2019 e 2021, diversas fintechs brasileiras receberam aportes com base em crescimento acelerado, sem preocupação com rentabilidade. E, diferentemente da maioria das startups do setor, a fintech opera com lucro desde o primeiro ano e atingiu caixa positivo já no terceiro. Hoje, a empresa projeta faturamento anual de 700 milhões de reais, e seu Ebitda é estimado em 400 milhões de reais, com margem esperada de 57%.

Esse desempenho financeiro reforça a tese de que gestores passaram a buscar negócios que equilibrem crescimento e solidez operacional. E faz sentido ao olhar o caminho até o bilhão de dólares de valuation. O primeiro aporte veio em novembro de 2021, quando a empresa recebeu 50 milhões de dólares do fundo soberano de Singapura, o GIC, em uma rodada Série A. Dois anos depois, em outubro de 2023, captou mais de 200 milhões de dólares em uma Série B liderada pela General Atlantic, com participação da Across Capital. Já em abril de 2024, uma extensão dessa rodada trouxe mais 50 milhões de dólares dos mesmos investidores, elevando o valuation da fintech para 1,5 bilhão de dólares.

No total, a QI Tech levantou 300 milhões de dólares ao longo de sua trajetória. O próximo desafio da empresa é expandir sua atuação sem comprometer a solidez do modelo de negócios. Um dos focos está na internacionalização. A fintech avalia sua entrada em mercados da América Latina, como México, Colômbia, Argentina e Chile. “O México e a Colômbia são mercados muito parecidos com o Brasil em termos regulatórios e de estrutura financeira. São mercados em que nossa plataforma se encaixaria bem”, diz Mac Dowell.

Fundadores da Cayena (da esq. para a dir.), Gabriel Sendacz, Pedro Carvalho e Raymond Shayo: marketplace já movimenta 1 bilhão de reais ao ano conectando fornecedores e restaurantes sem precisar operar estoques ou logística (Leandro Fonseca/Exame)

E o que esperar para os próximos anos no mundo das startups? Algumas empresas começam a se destacar como potenciais candidatas para a marca do bilhão. Uma delas é a Cayena, que aposta em um modelo de marketplace para o setor de foodservice. Diferentemente das concorrentes, que operam estoques e logística, a empresa criou uma plataforma que conecta fornecedores de insumos diretamente com bares e restaurantes. Seu diferencial é um algoritmo que analisa todas as ofertas disponíveis e sugere ao comprador o melhor mix de fornecedores, equilibrando preço e conveniência. A proposta da Cayena surgiu em 2020, quando os fundadores Gabriel Sendacz, Pedro Carvalho e Raymond Shayo buscavam um mercado grande, B2B e pouco digitalizado.

“Fomos extremamente pragmáticos na hora de olhar para os setores e encontrar o que tinha mais oportunidade de escala”, diz Sendacz. Esse modelo chamou a atenção de fundos internacionais. A startup recebeu 300 milhões de reais em uma rodada liderada pela Bicycle Capital, gestora dos ex-SoftBank Marcelo Claure e Shu Nyatta. O investimento ocorre em um momento de maturidade operacional para a Cayena, que vem crescendo cinco vezes ao ano desde 2021 e já movimenta 1 bilhão de reais em vendas anuais.

A empresa tem dezenas de milhares de clientes ativos e mais de 100 fornecedores, e opera em mais de 100 cidades, com maior concentração no estado de São Paulo. “Estamos vendendo 1 tonelada de comida a cada minuto”, diz Shayo. Embora ainda não tenha atingido o patamar de 1 bilhão de dólares, a Cayena representa o perfil de startup que pode entrar nessa lista nos próximos anos: empresas B2B com modelo asset-light, que crescem sem queimar caixa excessivamente e que operam em mercados grandes e fragmentados.

Mas não é o único caminho possível. O mercado global tem mostrado que as startups de inteligência artificial são as que mais rapidamente atingem o valuation de 1 bilhão de dólares. Empresas do setor têm alcançado esse patamar com equipes menores e em prazos mais curtos do que startups tradicionais. A World Labs, por exemplo, foi fundada em 2024 e já atingiu 1 bilhão de dólares de valuation com apenas 18 funcionários. A Skild AI, criada em 2023, chegou a 1,5 bilhão de dólares com uma equipe de 19 pessoas.

Para 2025, a tendência de maior seletividade nos aportes deve continuar. Segundo analistas do mercado, tecnologias emergentes, como inteligência artificial, blockchain e biotecnologia, devem chamar mais a atenção. Algumas projeções também apontam para o possível retorno das ofertas públicas de ações (IPOs), impulsionado principalmente por juros mais baixos.

No Brasil, as startups de IA ainda devem demorar um pouco mais para tomar corpo e atrair grandes fundos. No último ano, a plataforma Distrito listou 12 startups brasileiras como potenciais unicórnios, incluindo nomes como Asaas, Agrotools, Parfin, Idwall e QI Tech (que de fato alcançou o status). Ainda não há um levantamento consolidado para 2025, mas o perfil das empresas mais promissoras segue o mesmo padrão: B2B, tecnologia proprietária e foco em eficiência operacional.


Os pilares da QI Tech

Startup oferece serviços financeiros completos para empresas, de bancos digitais a prevenção contra fraudes

Know Your Client as a Service (KYC)
Soluções para verificação de identidade e antifraude, incluindo análise de documentos e biometria

Banking as a Service (BaaS)
Infraestrutura para criação de contas digitais, emissão de cartões e processamento de pagamentos via Pix, TED e boletos

Lending as a Service (LaaS)
Plataforma que permite a oferta de crédito sem necessidade de intermediação bancária, com tecnologia própria para análise de risco e concessão automatizada

Custódia e administração de fundos
Solução voltada para a gestão de investimentos e ativos financeiros, ampliando a atuação da QI Tech no setor


As startups brasileiras que estão cotadas para passarem a marca do 1 bilhão de dólares em valuation, com destaque para fintechs, agtechs e blockchain

→ Cayena | Marketplace de insumos alimentícios no atacado. Último aporte: 55 milhões de dólares (Série B), em setembro de 2024. Crescimento de cinco vezes ao ano desde 2021, com 1 bilhão de reais em vendas anuais

→ Asaas |  Fintech de automação financeira para PMEs. Valuation estimado acima de 165 milhões de dólares

→ Parfin | Plataforma de infraestrutura blockchain para o mercado financeiro. Valuation superior a 100 milhões de dólares

→ Agrotools | Agtech especializada em análise de dados para o setor agrícola. Valuation estimado em mais de 90 milhões de dólares (2022)

IdWall | Tecnologia para verificação de identidade e segurança digital.Valuation estimado em mais de 500 milhões de dólares (2022)


Vende-se APP, único dono

O governo dos EUA exige que o TikTok seja vendido até abril. Entre bilionários, fundos e até influenciadores, começa a disputa para definir quem vai controlar o aplicativo daqui para a frente

Shou Zi Chew, CEO do TikTok, no Congresso dos EUA: o executivo tem manejado a pressão do governo americano para a venda da rede social a um comprador não chinês (Tasos Katopodis/Getty Images)

O TikTok, uma das redes sociais mais populares do mundo, está oficialmente à venda — pelo menos nos Estados Unidos. Um decreto assinado pelo presidente Donald Trump em janeiro determina que a ByteDance, dona chinesa do aplicativo, encontre um comprador americano até o início de abril, sob pena de banimento no país. A decisão segue a linha de endurecimento da política contra empresas chinesas e se justifica, segundo Washington, por preocupações com segurança nacional e manipulação de dados.

A obrigatoriedade de venda do TikTok atraiu uma lista eclética de possíveis compradores. Entre os interessados estão nomes como Elon Musk, Microsoft e Oracle, além de grupos menos óbvios, como o bilionário Frank McCourt e até o influenciador MrBeast, que negocia participar da operação como parceiro estratégico. Há ainda investidores como Jesse Tinsley, fundador da Employer.com, que montou um consórcio para apresentar uma oferta.

O cenário lembra 2020, quando a rede social quase foi vendida para Microsoft, Oracle e Walmart antes de as negociações desmoronarem. Desta vez, no entanto, a pressão sobre a ByteDance é maior. A legislação determina que, para continuar operando nos EUA, a empresa precisa se desvincular completamente de qualquer controle chinês — um ponto delicado, já que Pequim impôs restrições à exportação do algoritmo de recomendação do TikTok, considerado seu maior diferencial competitivo.

Trump, por sua vez, parece disposto a transformar a venda em um grande evento de negócios. O presidente já sugeriu que o TikTok deveria ser comprado por uma empresa americana de tecnologia, mencionou que o governo dos EUA deveria ficar com uma parte da transação e até cogitou incluir um recém-criado fundo soberano americano no negócio. Apesar disso, ainda não está claro se essas condições são viáveis nem se resolveriam as preocupações de segurança que levaram à proibição.

O processo de venda ainda esbarra em outras dificuldades. Para potenciais compradores, um TikTok sem o algoritmo chinês perde parte significativa do valor. McCourt, por exemplo, teria avaliado a rede social em apenas 20 bilhões de dólares sem a tecnologia que define o feed de vídeos. Além disso, o aplicativo depende de uma infraestrutura tecnológica global, o que levanta dúvidas sobre sua operação caso precise se desconectar dos servidores e sistemas da ByteDance. Ainda há outro ponto relevante: será que o TikTok continua sendo tão desejado quanto em 2020?

De lá para cá, o mercado de tecnologia mudou. Gigantes como Microsoft, que já tentou comprar o app, agora concentram esforços e investimentos na disputa pela inteligência artificial. Comprar uma rede social seria uma mudança estratégica considerável.

E, se um novo dono aparecer, o TikTok seguirá sendo o mesmo? A experiência recente com o X (antigo Twitter) sob a gestão de Elon Musk sugere que uma mudança de controle pode transformar completamente uma plataforma. Caso a venda aconteça, a rede social precisará convencer usuários, anunciantes e investidores de que não será apenas um reflexo de sua versão original — mas, sim, um negócio viável e relevante no longo prazo.

Acompanhe tudo sobre:1272

Mais de Revista Exame

Vitrine de negócios

América para os americanos? Trump revive 'doutrina Monroe' e muda relação com países vizinhos

A aposta certeira da AZ Quest

Qualificar para crescer