Entrega do texto da reforma da Previdência: presidente da República Jair Bolsonaro e presidente da Câmara Rodrigo Maia (Luis Macedo/Agência Brasil)
André Jankavski
Publicado em 28 de fevereiro de 2019 às 05h56.
Última atualização em 28 de fevereiro de 2019 às 05h56.
As discussões referentes à reforma da Previdência vivem um paradoxo. A Proposta de Emenda à Constituição apresentada pelo governo de Jair Bolsonaro ao Congresso em fevereiro foi recebida com elogios por especialistas e até mesmo por congressistas. Nela, há medidas que atacam privilégios nas aposentadorias, como o aumento progressivo da contribuição de servidores públicos que ganham mais, e itens que trazem o potencial de economizar quase 1,2 trilhão de reais para o Estado na próxima década.
Mas, apesar da ambição inicial, é quase certo que o projeto que chegará na reta final será muito diferente desse que está na mesa hoje. Isso porque o grande desafio de Bolsonaro e de sua equipe é transformar uma proposta bem desenhada no Ministério da Economia em uma reforma aprovada pelo Congresso, que costuma ser refratário a projetos que impliquem desgaste com a população e, consequentemente, perda de votos nas eleições. “O problema para a aprovação será político, pois há deputados que podem votar contra a reforma, mesmo sendo a favor do projeto”, diz o deputado federal Capitão Augusto (PR-SP), recém-convidado para ocupar a vice-liderança do governo na Câmara dos Deputados.
Por isso, a desidratação da reforma já entrou nas contas de especialistas e instituições. A consultoria política americana Eurasia avalia que a reforma capitaneada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, será aprovada, mas a economia fiscal cairá para um valor entre 400 bilhões e 600 bilhões de reais. “Para conquistar votos, o governo terá de fazer concessões”, diz Christopher Garman, diretor para as Américas da Eurasia.
O banco Itaú estima que o impacto fiscal será de 600 bilhões a 800 bilhões de reais, conta similar à feita pela consultoria MB Associados. O Citibank espera contenção da ordem de 500 bilhões de reais. “É complicado quando parte do mercado aceita de forma natural um impacto de até 500 bilhões, pois uma economia dessa não trará grandes melhorias para o país”, afirma Sérgio Vale, economista-chefe da MB Associados. Segundo Vale, o necessário para o equilíbrio das contas públicas é uma poupança de 800 bilhões de reais nos próximos dez anos. “Se o valor for inferior a 400 bilhões de reais, a economia brasileira deverá voltar a flertar com a recessão em três anos.”
A desidratação deve vir em alguns pontos que levantaram polêmica imediata. Um deles foi o referente às mudanças no Benefício de Prestação Continuada. Atualmente, idosos a partir de 65 anos em situação de miséria (aqueles com renda média familiar de até 250 reais) têm direito a receber um salário mínimo. Com a mudança, apenas pessoas acima de 70 anos receberiam um salário mínimo por mês. A população de 60 a 69 anos nessas condições levaria, no máximo, 400 reais.
Outro ponto que pode ser sacrificado é o relativo à aposentadoria rural, que igualou as idades de direito ao benefício de homens e mulheres para 60 anos (antes a pensão era concedida aos 55 anos às mulheres), com tempo mínimo de contribuição para a Previdência de 20 anos. Se esses itens forem diluídos, e se diminuir o tempo mínimo de contribuição, a reforma perderá 256 bilhões da economia prevista, segundo cálculos do Itaú. O tempo de transição da reforma — estabelecido em dez anos, metade do que era proposto na reforma do governo Temer — também pode aumentar para angariar apoiadores.
Para completar, deve haver grande pressão de servidores públicos por causa de mudanças em seu regime de aposentadoria. Uma delas é a tributação progressiva, que pode chegar a 22% sobre os salários. Associações de servidores públicos ameaçam ir à Justiça questionando a constitucionalidade da reforma. “Não se pode admitir que uma proposta, a pretexto de atenuar os efeitos da crise fiscal, demonize os servidores públicos ”, diz Jayme de Oliveira, presidente da Associação de Magistrados Brasileiros.
Na briga pela aprovação da reforma, o governo tem de reforçar duas estratégias: a de comunicação e a de negociação política. A primeira tem como figura-chave o próprio presidente da República. Até agora, o engajamento de Bolsonaro se resumiu a levar a proposta ao Congresso e ao pronunciamento de 2 minutos em cadeia nacional. De lá para cá, pelo menos até 25 de fevereiro, quando esta edição foi fechada, não houve nova menção do presidente à reforma da Previdência em sua conta do Twitter, seu palco preferido. “O protagonismo do presidente é absolutamente essencial, e ele tem de estar engajado em profundidade. O distanciamento de Bolsonaro traria um sinal ruim para os deputados”, afirma Clóvis Carvalho, ex-ministro-chefe da Casa Civil durante o primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso.
Assim como foi nas eleições, o papel das redes sociais deve ser determinante na trajetória do projeto da Previdência. Será por meio delas que o governo poderá informar e influenciar a população, que apoia a reforma em termos gerais: segundo pesquisa da corretora XP, 70% dos entrevistados são a favor do projeto, mas, quando itens específicos são avaliados, como idade mínima, a rejeição alcança a casa dos 60%. E será justamente pela repercussão da opinião pública nas redes sociais que muitos parlamentares poderão se pautar a favor ou contra a reforma.
Nas legislaturas anteriores, a principal moeda de troca entre Executivo e Legislativo eram verbas generosas, as famosas emendas parlamentares para obras e projetos nos redutos eleitorais dos congressistas. As eleições de 2018 mostraram que esses recursos convertem menos votos hoje do que no passado. Políticos tradicionais que foram beneficiados por esse dinheiro não se reelegeram ou ganharam uma nova chance por um fio. “Como a articulação política é precária, o governo vai jogar para a opinião pública o papel de pressionar os parlamentares. O apoio popular é que vai fazer a diferença”, diz Garman, da Eurasia. Ainda assim, velhos hábitos não se abandonam facilmente: diversos deputados e senadores começam a pressionar o governo por cargos de segundo escalão e também pela liberação de verbas.
O jornal O Globo estimou que os pedidos chegam a 10 milhões de reais por deputado do chamado centrão. Outro ponto vital é a estratégia de negociação. E, nesse item, as barbeiragens políticas de Bolsonaro e seus aliados podem afetar negativamente a reforma. Deputados ouvidos por EXAME, em condição de anonimato, dizem que não há organização política do governo, dando margem a uma desidratação ainda maior da proposta. Prova disso foi a derrota do governo na votação do decreto que alteraria as regras da Lei de Acesso à Informação. Na votação, foram 367 deputados contra o projeto e 57 a favor. Um dos motivos apontados para o fiasco é a escolha do deputado Major Vitor Hugo (PSL-DF), um congressista de primeiro mandato, para a organização política. O governo tenta se mexer. “Recebo com humildade as críticas e tenho conversado com os líderes de todos os partidos para montar uma base sólida”, diz Hugo.
A relação com o Congresso foi determinante para os resultados alcançados pelas três últimas reformas da Previdência. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso perdeu a chance de estabelecer a idade mínima por um voto em 1998, mas conseguiu colocar em prática o fator previdenciário, um cálculo que leva em conta o tempo de contribuição, a idade do segurado e a expectativa de vida. A derrota de FHC em fixar uma idade mínima para aposentadoria contribuiu para uma perda gigantesca para o país, segundo cálculos do Itaú. “A situação fiscal na época do FHC era outra, hoje temos um problema fiscal de curto prazo”, diz Pedro Schneider, economista do Itaú. Na época, o gasto previdenciário tinha um impacto de 6% do PIB. Em 2017, a conta ficou em 10% (e, sem uma reforma, o efeito deve ir para 12% em 2027).
Luiz Inácio Lula da Silva, por sua vez, conseguiu em seu primeiro ano de mandato diminuir as disparidades entre os funcionários públicos e os aposentados pela iniciativa privada — porém, só para aqueles que ingressaram no setor público de 2003 em diante. Dilma Rousseff, por meio de uma medida provisória, sancionou a fórmula de pontos 85/95, que soma idade com tempo de contribuição, para atrasar a aposentadoria dos mais velhos. Já Michel Temer tentou fazer uma reforma mais ampla, que estabeleceria idade mínima de aposentadoria a todos os brasileiros. Foi atrapalhado pelo vazamento de gravações pouco republicanas ao lado do empresário Joesley Batista, dono do frigorífico JBS.
Na comparação dos resultados das reformas passadas, nota-se que a força da oposição pode ser um obstáculo. Afinal, a missão de aprovar uma reforma não é das mais simples, pois são necessários três quintos dos votos dos Congressistas: 308 deputados e 49 senadores. Uma comparação entre a reforma pretendida por FHC e a concretizada por Lula evidencia o desafio. Enquanto o tucano amealhou apenas 45% dos votos fora de sua base, o petista conseguiu 72% dos deputados da oposição.
O governo Bolsonaro afirma já ter 200 votos a favor, mas observadores acham improvável esse número, por ora. As mensagens pouco amistosas do presidente e de aliados para a oposição, tanto por meio da imprensa quanto pelas redes sociais, devem diminuir consideravelmente o potencial de crescimento nessa base. Hoje, PT e PSOL somam 66 deputados e já se declaram contra a reforma — qualquer versão dela. A oposição que pode render votos a favor está concentrada em partidos como o PDT e o PSB. Eles somam 60 deputados. Uma das saídas para conseguir esse apoio foi a possibilidade levantada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), de dar a presidência da comissão especial que analisará a proposta do governo ao deputado federal Mauro Benevides (PDT-CE). “Nós sabemos da necessidade de resolver o problema, mas é necessária uma discussão intensa para chegar a uma solução realmente boa para o país nessa área”, afirma Benevides.
Apesar de ser baixo o risco de uma não aprovação, já se discutem as repercussões de uma reforma insuficiente, capaz de atrasar a recuperação econômica e de deixar um legado complicado para os próximos presidentes. A França é um exemplo disso. Desde 2010, o país europeu fez duas reformas da Previdência: uma no mandato de Nicolas Sarkozy, ligado à direita, e outra com o socialista François Hollande. Como ambas foram insuficientes, a França está a caminho da terceira, agora com o centrista Emmanuel Macron. No Brasil, o tempo é escasso. Nas contas mais otimistas, as primeiras votações em plenário da reforma devem acontecer no primeiro semestre deste ano. Depois disso, a batalha vai para o Senado, onde a base do governo é ainda menos consolidada. Dificilmente o resultado sairá antes dos últimos meses do ano. A melhoria da economia depende, e muito, de que as estratégias do governo tenham sucesso no Congresso.