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O Que É Fascismo? Orwell para entender Trump

Chega às livrarias O Que É Fascismo? e Outros Ensaios, coletânea de textos de George Orwell, que voltou ao topo dos mais vendidos após a eleição americana

George Orwell (Wikimedia Commons/Wikimedia Commons)

George Orwell (Wikimedia Commons/Wikimedia Commons)

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Da Redação

Publicado em 14 de abril de 2017 às 05h55.

Última atualização em 14 de abril de 2017 às 05h55.

São Paulo – No idioma inglês, o adjetivo Orwellian (“orwelliano”) tem, dependendo do contexto, significados diferentes. Orwelliano pode ser empregado para descrever um texto escrito com extrema clareza ou uma pessoa que critica o totalitarismo com vigor, na tradição de George Orwell, jornalista e escritor britânico morto em 1950. Mas dizer que alguém é orwelliano também pode significar que o sujeito parece ter saído de 1984, livro de ficção escrito por Orwell sobre um mundo asfixiante em que reina a mentira.

Nos últimos tempos, obras do autor voltaram a aparecer no topo das listas das mais vendidas no Brasil e no exterior. Tanto 1984 como A Revolução dos Bichos estão no ranking do site de VEJA há várias semanas. Coincidência ou não, a alta das vendas acontece no momento que muitos tentam entender como uma personalidade orwelliana conseguiu chegar à Casa Branca e inspirar o uso do termo pós-verdade. Para os fãs brasileiros de Orwell, a boa notícia é que, em 17 de abril, chega às livrarias O Que É Fascismo? e Outros Ensaios, uma coletânea de textos do autor. EXAME publica a seguir o artigo História e Mentiras, presente no livro e um exemplo cristalino do estilo orwelliano.

"Quando Sir Walter Raleigh [explorador inglês dos séculos 16 e 17] foi aprisionado na Torre de Londres, manteve-se ocupado escrevendo uma história do mundo. Tinha terminado o primeiro volume e estava trabalhando no segundo quando houve uma briga entre alguns trabalhadores bem embaixo da janela de sua cela, e um dos homens foi morto. A despeito de diligentes investigações e apesar do fato de ele ter efetivamente visto a coisa acontecer, Sir Walter nunca foi capaz de descobrir qual fora o motivo da briga, razão pela qual, assim se diz — e, se o relato não é verdadeiro, ele decerto deveria ser —, ele queimou o que havia escrito e abandonou o projeto.

Essa história me veio à cabeça não sei quantas vezes nos últimos dez anos, mas sempre acompanhada da reflexão de que Raleigh provavelmente cometeu um erro. Mesmo levando em consideração todas as dificuldades de pesquisa naquela época, e a dificuldade específica de realizar uma pesquisa na prisão, ele provavelmente poderia ter produzido uma história do mundo que apresentasse alguma semelhança com o real decurso dos fatos.

Até bem pouco tempo atrás, os principais acontecimentos registrados nos livros de história provavelmente ocorreram. É provavelmente verdade que a batalha de Hastings tenha sido travada em 1066 [durante a conquista normanda da Inglaterra], que Cristóvão Colombo tenha descoberto a América, que Henrique VIII tenha tido seis mulheres e assim por diante. Certo grau de veracidade era possível enquanto se admitia que um fato pudesse ser verdadeiro ainda que não agradasse.

Mesmo tão recentemente quanto na última guerra [a Primeira Guerra Mundial], era possível que a enciclopédia Britannica, por exemplo, compilasse seus artigos sobre as várias campanhas em algumas fontes alemãs. Alguns dos fatos — o número de baixas, por exemplo — foram considerados imparciais e aceitos por todos. Isso hoje não seria possível.

Uma versão nazista e uma versão não nazista da guerra atual não teriam semelhança uma com a outra, e qual delas, enfim, entraria nos livros de história é algo que não será decidido por métodos baseados em evidências, mas no campo de batalha. Durante a Guerra Civil Espanhola [de 1936 a 1939] me vi sentindo, de maneira muito intensa, que a verdadeira história desse conflito nunca seria ou poderia ser escrita. Números exatos e relatos objetivos do que tinha acontecido simplesmente não existem.

E se eu me dei conta disso ainda em 1937, quando ainda havia o governo espanhol e as mentiras que as várias facções republicanas contavam uma sobre a outra e sobre o inimigo ainda eram relativamente pequenas, qual será a situação agora? Mesmo que Francisco Franco [militar espanhol que comandou o grupo vencedor] seja derrubado, de que tipo de registro poderá dispor um futuro historiador?

E se Franco ou qualquer um semelhante a ele permanecer no poder, a história da guerra vai consistir bem amplamente de ‘fatos’ que milhões de pessoas sabem ser mentiras. Um desses ‘fatos’, por exemplo, é o de que havia um considerável exército russo na Espanha. Há evidência das mais abundantes de que não existia. Mas, se Franco permanecer no poder e se, em geral, o fascismo sobreviver, esse exército russo vai entrar nos livros de história, e futuros alunos nas escolas vão acreditar nisso. Assim, para quaisquer finalidades práticas, a mentira terá se tornado verdade.

Esse tipo de coisa acontece o tempo todo. Entre os milhões de casos que devem estar disponíveis, escolho um que pode ser verificado. Durante parte de 1941 e de 1942, quando a Luftwaffe estava ocupada com a Rússia, a rádio alemã brindou sua audiência com histórias de devastadores ataques aéreos a Londres. Hoje, estamos cientes de que esses ataques nunca aconteceram. Mas que uso teria esse nosso conhecimento se os alemães tivessem conquistado a Grã-Bretanha? Para os fins de um futuro historiador, esses bombardeios aconteceram ou não? A resposta é: se Hitler sobreviver, eles aconteceram; se ele cair, eles não aconteceram.

O mesmo ocorre com inúmeros eventos dos últimos dez ou 20 anos. Serão os Protocolos de Sião [texto antissemita] um documento autêntico? Será que Leon Trótski [rival de Joseph Stálin] tramou com os nazistas? Quantos aviões alemães foram abatidos na Batalha da Grã-Bretanha? A Europa dará boas-vindas à nova ordem? Em nenhum desses casos você obterá uma resposta que seja aceita universalmente como verdadeira. Em cada caso você terá um número de respostas totalmente incompatíveis, uma das quais será por fim adotada como resultado de algum embate físico. A história é escrita pelos vencedores.

Em última análise, nossa única reivindicação de vitoriosos é que, caso ganhemos a guerra, contemos menos mentiras do que nossos adversários. O que é realmente assustador quanto ao totalitarismo não é que cometa ‘atrocidades’, mas que agrida o conceito da verdade objetiva: ele proclama que controla o passado tão bem quanto o futuro. A despeito de toda a mentira e autodissimulação que a guerra estimula, honestamente não creio que se possa dizer que esse hábito mental esteja aumentando na Grã-Bretanha.

Juntando tudo, eu diria que a imprensa britânica está um pouco mais livre do que antes da guerra. Sei, por experiência própria, que hoje se podem publicar coisas que há dez anos não se podiam. Os que resistem ao conflito armado provavelmente foram menos maltratados nesta guerra do que na última, e a expressão em público de opiniões impopulares é decerto mais segura. Há, portanto, alguma esperança de que o hábito mental liberal de pensar que a verdade é algo exterior a você, algo a ser descoberto, e não algo que você pode inventar, sobreviverá. Mas mesmo assim não invejo a tarefa do futuro historiador. Não é estranho o comentário, nesta nossa época, de que nem mesmo as baixas da guerra atual podem ser estimadas em vários milhões?”

(Artigo publicado em 4 de fevereiro de 1944.)

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