Revista Exame

Lacuna em níveis federais e estaduais amplia papel das cidades

Enquanto se digladiam em público, presidentes, governadores e parlamentares ficam sem tempo para dar um jeito nos problemas reais

Bruce Katz: “Não há uma economia americana ou chinesa. As economias nacionais são a soma das economias municipais” | Divulgação /  (./Divulgação)

Bruce Katz: “Não há uma economia americana ou chinesa. As economias nacionais são a soma das economias municipais” | Divulgação / (./Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 5 de outubro de 2017 às 06h00.

Última atualização em 5 de outubro de 2017 às 06h00.

As disputas partidárias e os embates ideológicos envolvendo grandes temas (e também os irrelevantes, é claro) dominaram a cena política nos últimos anos. Enquanto se digladiam em público, presidentes, governadores e parlamentares ficam sem tempo para dar um jeito nos problemas reais das pessoas que os elegeram. Esse vácuo de ação efetiva nos níveis federal e estadual abriu espaço para as lideranças municipais assumirem um papel cada vez mais importante — um movimento que Bruce Katz, vice-presidente do Brookings Institution, prestigiado centro de pesquisa americano, chama de “novo localismo”, e é tema de um livro que ele lançará em janeiro nos Estados Unidos.

“As cidades se tornaram o ponto de referência para discutir competitividade econômica, pobreza e diversidade social”, diz Katz. Munidas de ferramentas tecnológicas cada vez mais sofisticadas, mais e mais cidades assumem o protagonismo em questões até pouco tempo restritas aos planos de governo dos presidentes. “O conhecimento convencional nos diz que as cidades são meras unidades políticas subordinadas às nações, mas isso está errado. O poder mudou.” A seguir, trechos da entrevista que Katz concedeu a EXAME.

O senhor identificou um movimento que batizou de “novo localismo” — que se contrapõe ao nacionalismo. Pode explicar de que se trata?

As cidades se tornaram o ponto de referência da sociedade para resolver os problemas característicos da vida moderna: a competitividade econômica, a pobreza, os desafios da diversidade social, a sustentabilidade ambiental. Elas também têm se tornado cada vez mais responsáveis por financiar o futuro, investindo em inovação, infraestrutura e inclusão. Isso é o combustível da competitividade econômica e da mobilidade social no longo prazo. Ao contrário dos governos federais e estaduais, as cidades estão menos propensas a ser sequestradas pela polarização ideológica ou pela divisão partidária. Esse novo quadro de governança multissetorial e em rede é o que chamo de novo localismo.

Que circunstâncias levaram à emergência desse movimento?

Isso se deve, em parte, ao fato de os níveis mais altos de governo estarem imersos em impasses partidários e populismo raivoso. Mas também é produto de uma economia em reestruturação, que voltou a valorizar a proximidade, a densidade e a inovação multidisciplinar. Os avanços tecnológicos deram aos gestores municipais os dados e as evidências necessários para desenvolver soluções que funcionem. A inovação ampliou o papel das cidades e permitiu a elas pensar em novas formas de criar valor e gerar empregos. Entre os exemplos estão as cidades de Chattanooga, que está desenvolvendo uma rede de energia mais inteligente, e Pittsburgh, que decidiu se converter em um laboratório de teste de carros autônomos. Ou ainda Chicago, que liberou os dados públicos para empreendedores e empresas de tecnologia desenvolverem projetos.

Partidários do Brexit, a retirada britânica da União Europeia: revolta antielites e contraposição à economia moderna que floresce nas cidades | Jack Taylor/Getty Images

Há risco de que o aumento da importância local cause uma ruptura na relação das cidades com os poderes estaduais e federais?

Essa relação precisa ser rompida. As cidades são motores das economias nacionais e centros de negócios e investimentos. Em última análise, não há uma economia americana ou brasileira ou chinesa. As economias nacionais são os agregados das economias municipais. É claro, a ação local não substitui os papéis vitais que a União tem como plataforma distributiva e regulatória. Ela é, isso sim, o complemento ideal para um governo federal efetivo. A realidade é que as cidades são muitas coisas ao mesmo tempo: são unidades geográficas, economias regionais, mercados para o comércio de bens e serviços, pontos de compartilhamento de cultura e valores. O novo localismo permite que elas reconheçam e explorem suas vantagens competitivas, como uma posição territorial estratégica ou a existência de instituições de pesquisa avançada, em vez de apenas depender de laços políticos e pessoais com os governantes em nível nacional.

No Brasil, pouquíssimas cidades conseguem gerar mais receita própria do que recebem de transferências do governo federal. Como elas podem ser as protagonistas?

O conhecimento convencional nos diz que as cidades são meras unidades políticas subordinadas às nações, sem poder próprio. Que têm apenas o poder delegado pelos níveis administrativos superiores. Isso está errado. O poder mudou. Está menos confinado à autoridade do governo e mais ligado ao potencial de mercado, que está onde há concentração de recursos econômicos, físicos e sociais. É menos definido pelas escalas de influência ao longo das camadas do governo e mais derivado da colaboração entre setores. A habilidade de concretizar está nos esforços coletivos da sociedade civil, do governo e das instituições privadas. Pensar nas origens e no uso do poder é o meio de desenvolver o novo localismo no Brasil e em outros países.

O senhor tem se mostrado preocupado quanto aos impactos, sobre as cidades, da emergência de uma tendência populista global. Qual é a ameaça?

O populismo é uma espécie de revolta contra as elites econômicas ou políticas. Representado principalmente pela eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e pela coalizão pró-Brexit no Reino Unido, ele deu gás a uma política que é nostálgica no foco, nacionalista no tom e nativista na orientação. A retórica dessa política populista tenta criar muros, literalmente e figurativamente, para inibir o fluxo de pessoas, de bens, de capital e de ideias pelas fronteiras. E isso é a essência da economia moderna. O populismo se desenvolveu como uma estratégia política nacional que tira partido da insatisfação econômica e social.

Pittsburgh: a cidade americana virou laboratório de teste de carros autônomos | Jacqueline Nix/Getty Images

E como se dá o contraponto ao populismo?

Ao contrário do populismo, o localismo abraça a diversidade, e não o etnocentrismo. É curioso, e não fechado. Diferentemente dos extremos da direita ou da esquerda, é guiado pelo pragmatismo, e não pelo fervor ideológico. Governa com visão de longo prazo, e não olhando para o passado. Os populistas atacaram e enfraqueceram as instituições nacionais e supranacionais, e acabaram ampliando as forças locais. Ironicamente, a aspiração da administração do presidente Donald Trump de desconstruir o estado administrativo está alçando as cidades ao posto de lugar onde se resolvem os problemas.

Que tipo de cidade deve conseguir prosperar em um ambiente como esse?

Cidades bem-sucedidas demandam líderes que possam navegar bem nos meandros do poder urbano. Elas não são companhias verticalmente integradas nem governos com uma estrutura de comando e controle. Elas são, sim, redes de instituições públicas, privadas e cívicas que produzem a economia e governam aspectos críticos da vida urbana. A essência de um líder de sucesso é a habilidade de unir as pessoas para resolver problemas e fazer aquilo que não podem fazer sozinhas. As cidades precisam de instituições de qualidade, que tenham a capacidade e a competência para executar tarefas complexas. E, finalmente, as cidades precisam assumir um compromisso inabalável com a abertura, a tolerância, a diversidade e o respeito pelos cidadãos. É a antítese do populismo. 

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