Complexo MGM, em Las Vegas: novos sócios de Dubai
Da Redação
Publicado em 9 de março de 2011 às 15h24.
O governo chinês compra um número suficiente de ações da Coca-Cola para subordinar a multinacional americana aos interesses de Pequim. Na Europa, sob o comando do presidente russo Vladimir Putin, o Kremlin adquire o direito de influir no destino das maiores empresas de energia da Inglaterra.
No Oriente Médio, a família real da Arábia Saudita, com a força dos petrodólares, assume grande parte do controle dos grandes portos americanos. Essas ações, que parecem um enredo de filme-catástrofe sobre geopolítica, não estão tão longe da realidade quanto parecem. Na teoria, investidas semelhantes podem acontecer hoje graças à ação dos países que utilizam parte de suas reservas internacionais para constituir os chamados fundos soberanos.
Essa modalidade de investimento estatal está crescendo de forma assustadora e vem sendo utilizada, na maioria das vezes, para adquirir participações em empresas estrangeiras, com objetivos financeiros e estratégicos. O negócio atingiu uma proporção inédita na história, provocando reações protecionistas nos mais diferentes cantos do mundo e uma grande discussão sobre a regulamentação e os limites desse instrumento. "O potencial dos fundos soberanos é enorme e no futuro eles atuarão em uma escala ainda maior", afirma o economista Steffen Kern, do Deutsche Bank, na Alemanha, e autor do estudo "Fundos soberanos -- investimentos estatais em alta".
De acordo com o trabalho, até 1990 existiam apenas dez fundos soberanos em operação. Hoje, eles já são mais de 40 e administram ativos de mais de 3 trilhões de dólares, com a perspectiva de crescimento para mais de 10 trilhões nos próximos dez anos (veja quadro).
O Brasil também se prepara para entrar no negócio. No início de outubro, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, disse que há planos para a criação de um fundo soberano brasileiro que poderia começar com ativos de 10 bilhões de dólares. O tema transformou-se num fenômeno graças ao longo ciclo de desenvolvimento da economia mundial, que elevou para níveis inéditos o volume de reservas financeiras globais.
Atualmente, estima-se que os bancos centrais das nações ao redor do mundo controlem cerca de 5,6 trilhões de dólares, mais do que o dobro do número registrado há cinco anos. Com um volume tão grande de dinheiro disponível, os fundos soberanos se multiplicaram, ficaram mais agressivos e diversificaram sua carteira de investimentos.
Se antigamente eles se limitavam a adquirir títulos de dívida dos países desenvolvidos -- e sobretudo dos Estados Unidos --, hoje canalizam recursos para opções mais rentáveis, como a compra de imóveis, ouro e ações de grandes companhias. Em julho, por exemplo, o Temasek Holdings, um fundo do governo de Cingapura, investiu 2 bilhões de dólares na aquisição de uma participação minoritária no tradicional banco britânico Barclays.
Considerado o maior fundo soberano do mundo, com 875 bilhões de dólares em ativos, o Abu Dhabi Investment Authority (Adia), dos Emirados Árabes Unidos, pagou em setembro cerca de 5 bilhões pela empresa canadense de petróleo PrimeWest Energy Trust. O Qatar Investment Authority, do governo do Qatar, está prestes a adquirir o controle majoritário da terceira maior cadeia de supermercados inglesa, a Sainsbury's, da qual já possui 25% das ações.
Recentemente, o fundo Dubai World, do governo de Dubai, uma das cidades-estado dos Emirados Árabes, desembolsou 5 bilhões de dólares para ter uma participação na rede de hotéis e cassinos MGM Mirage, uma das maiores de Las Vegas.
As transações são cada vez mais vultosas, ousadas e surpreendentes. E ninguém assusta tanto, ultimamente, quanto os chineses. Há seis meses, um fundo do governo comunista de Pequim gastou 3 bilhões de dólares para levar quase 10% das ações do fundo de private equity Blackstone, um dos mais agressivos dos Estados Unidos, dono de companhias como a rede de hotéis Hilton e a Deutsche Telekom. A investida chinesa no Blackstone teve dupla motivação.
A primeira, e mais óbvia, é a financeira. A segunda, e mais perigosa para alguns analistas, é a formação de uma espécie de cortina de fumaça para a expansão do capital chinês em companhias ocidentais. Vender para o Blackstone seria mais palatável do que vender para os conquistadores de Pequim. (E é bom não esquecer: ao comprar participações expressivas em empresas, a China passa a ter acesso à informação e à tecnologia.) "A chegada de investidores estatais com tanto dinheiro para gastar tem causado frisson especialmente na Europa e nos Estados Unidos", afirma o economista William R. Thomson, chairman da companhia de investimento Private Capital, de Hong Kong.
EMPRESARIOS E AUTORIDADES de alguns dos países mais desenvolvidos do mundo estão preocupados com a possibilidade de que setores estratégicos de suas economias sejam controlados por estrangeiros ou que algumas de suas grandes empresas caiam nas mãos de regimes políticos fechados.
Tentativas de investimentos estatais já foram rechaçadas por questões políticas. No ano passado, por exemplo, a holding Dubai Ports World, do governo de Dubai, comprou por 6,8 bilhões de dólares a empresa inglesa P&O, que administra negócios da área portuária em diferentes países, incluindo seis terminais nos Estados Unidos. O negócio causou uma quase histeria entre os americanos, verbalizada por congressistas de Washington. Um deles, o senador democrata Charles Schumer, chegou a declarar que dar a uma empresa árabe o acesso aos portos americanos representava uma ameaça à segurança nacional.
Por causa das pressões, a Dubai Ports World se desfez dos negócios nos Estados Unidos alguns meses depois. Em 2005, ocorreu outro caso polêmico, envolvendo a venda da petrolífera americana Unocal. A também americana Chevron e a estatal chinesa CNOOC disputavam o negócio. Os asiáticos só não venceram por causa das pressões de grupos protecionistas, que acusavam a CNOOC de ser o braço dos interesses energéticos de Pequim.
Assim como os polêmicos fundos de hedge, um dos protagonistas da recente turbulência financeira mundial, os fundos soberanos não são regulamentados. Como não há nenhum organismo internacional independente que controle sua operação, eles não são obrigados a divulgar relatórios sobre suas atividades. O maior fundo soberano em operação, o Abu Dhabi Investment Authority, em mais de 30 anos de existência nunca divulgou quais ativos administra.
"Como esses instrumentos são grandes, fazem investimentos substanciais e estão se transformando em grandes jogadores do mercado financeiro mundial, a falta de transparência preocupa bastante", diz Kern, do Deutsche Bank. Recentemente, a chanceler alemã Angela Merkel afirmou que seu governo já considera criar uma legislação para dificultar que os fundos soberanos comprem empresas alemãs. "Como nós lidamos com fundos nas mãos do Estado? Esse é um fenômeno que até agora não existia em tal escala", disse Merkel.
Em outubro, o assunto foi um dos temas colocados na pauta da reunião anual do FMI, em Washington. Governos como o dos Estados Unidos começam a pressionar a organização para que ela se dedique a definir um conjunto de regras para o funcionamento dos fundos soberanos.
Os primeiros instrumentos desse tipo foram criados por países exportadores de petróleo nos anos 50. O pioneiro foi o governo do Kuwait, que criou, em 1953 o Kuwait Investment Autorithy (KIA) para aplicar a renda do ouro negro. A evolução do negócio ao longo dos últimos anos é um bom exemplo do poder que os fundos soberanos adquiriram.
Anualmente, 10% das receitas com o petróleo do Kuwait são destinadas ao KIA, que controla hoje ativos de mais de 200 bilhões de dólares de um portfólio de investimentos em fundos de hedge e private equity, imóveis e ações de empresas como a montadora alemã DaimlerChrysler. Com o preço do petróleo batendo recordes, vários outros países produtores possuem alguns dos mais robustos fundos soberanos do mundo.
Futuro promissor | |
Os ativos sob administração de fundos soberanos devem mais que triplicar nos próximos dez anos | |
Ativos, em trilhões de dólares(1) | |
2007 | 3,1 |
2012 | 5 |
2017 | 10 |
(1) Estimativa |
A confusão gerada pela atuação desses investimentos estatais é, para muitos especialistas, um efeito colateral da globalização. Numa época sem fronteiras para negócios, os países passaram a agir com uma lógica semelhante à das grandes empresas privadas, lançando seus tentáculos sobre companhias estrangeiras de diversos setores.
Como muitos desses lances são investimentos de risco, hoje existem chances bastante reais de um fundo soberano mal administrado drenar as reservas internacionais do país mantenedor. Daí surge a pergunta: até que ponto é benéfico para a economia mundial ter tantos negócios com participação dos fundos soberanos?
Em caso de necessidade urgente, como uma crise mundial, os países que administram esses fundos podem vender na baixa suas posições no exterior para tentar recompor rapidamente suas reservas, gerando um efeito cascata nos demais acionistas. A possibilidade de que a ação dos fundos soberanos não seja pautada apenas por interesses comerciais é outra questão inquietante.
"O maior problema é que conhecemos muito pouco deles para saber se são apenas investidores como quaisquer outros ou se estão mais para personagens políticos, o que seria bastante ruim", afirma Kern, do Deutsche Bank. As discussões em curso no FMI sobre o assunto terão a difícil tarefa de regulamentar o assunto sem criar entraves à circulação de capital, o que representaria uma volta à Idade Média em tempos globalizados.
Máquinas de investimentos |
Alguns dos principais fundos soberanos do mundo e suas principais características |
Abu Dhabi Investment Authority País Emirados Árabes Unidos Ano de criação 1976 Ativos 875 bilhões de dólares Perfil É o maior fundo soberano do mundo e possui ativos diversificados, como títulos do Tesouro americano, imóveis e ações em empresas, como a fabricante egípcia de cimento Suez Cement |
Government Pension Fund País Noruega Ano de criação 1990 Ativos 322 bilhões de dólares Perfil É considerado um caso exemplar de fundo soberano. Transparente, apresenta relatórios freqüentes sobre suas operações, a maior parte delas em renda fixa e ações nos mercados financeiros de todo o mundo |
Kuwait Investment Authority (KIA) País Kuwait Ano de criação 1953 Ativos 250 bilhões de dólares Perfil Ações da montadora DaimlerChrysler e do banco chinês Industrial & Commercial Bank of China fazem parte do diversificado portfólio do fundo, um dos mais antigos em operação |
China Investment Company País China Ano de criação 2007 Ativos 200bilhões de dólares Perfil Embora lançado oficialmente no último mês de setembro, o fundo começou suas atividades bem antes disso. Em maio, 3 bilhões de dólares foram investidos na compra de quase 10% das ações do fundo de investimento americano Blackstone |
Stabilization Fund of the Russian Federation (SFRF) País Rússia Ano de criação 2004 Ativos 127 bilhões de dólares Perfil Com capital originário do excesso de renda da exportação de petróleo e arrecadação de impostos, aplica suas reservas em títulos de renda fixa e em moedas, como dólar e euro |
Temasek Holdings País Cingapura Ano de criação 1974 Ativos108 bilhões de dólares Perfil Comprou parte do capital do tradicional banco britânico Barclays, em julho. Possui ainda ações de empresas, como a Singapore Airlines e o banco inglês Standard Chartered |
Fonte: Deutsche Bank Research |