Revista Exame

O pacto fáustico

Conviveremos com o caminho ruim até o final de 2025. A partir daí, entraremos no grande debate de 2026, quando o sentimento anti-establishment deve fazer a sua parte. Será?

Ou revisamos os gastos públicos e as regras do arcabouço ou chegaremos a uma paralisia dos serviços essenciais do governo. Shutdown à brasileira! (Westend61/Getty Images)

Ou revisamos os gastos públicos e as regras do arcabouço ou chegaremos a uma paralisia dos serviços essenciais do governo. Shutdown à brasileira! (Westend61/Getty Images)

Publicado em 18 de outubro de 2024 às 06h00.

A ideia de dissonância cognitiva está associada a certa necessidade de coerência do indivíduo. Quando há divergência entre o que pensa, sente ou faz, emerge um desconforto.

Não é sempre, nem para todo mundo. Bud Tribble, da Apple, costumava dizer que Steve Jobs vivia em seu próprio campo de distorção da realidade. Era capaz de convencer a si mesmo de quase tudo. O pior: com seu charme, carisma e exagero, persuadia muitos à sua volta também. As más línguas diriam que até a Moody’s costumava ser convencida…

Suspeito que o governo brasileiro esteja vivendo em seu campo particular de distorção da realidade. Não há coerência alguma entre a retórica de melhoria dos indicadores de solvência e os atos praticados em nossa política fiscal. Palavras não pagam dívidas.

Diferentemente do propagado pela comunicação oficial, as últimas semanas trouxeram deterioração importante da credibilidade de nossa política fiscal. Como lembrou o gestor Luis Stuhlberger em carta a seus cotistas, a situação fiscal brasileira remete à “Lei de Goodhart”, em referência ao economista Charles Goodhart: “Quando uma medida se torna um alvo, ela deixa de ser uma boa medida”.

Nosso grande objetivo de política fiscal virou a meta de superávit primário. Essa, no entanto, deveria ser um meio para o controle da dívida pública, que é o indicador realmente relevante, não um fim em si. Com algum esforço, uma pitada de sorte e muita criatividade contábil, até podemos respeitar a meta de primário para o ano. Mas a forma de obtê-la, em vez de melhorar a percepção sobre nossa trajetória fiscal, atua justamente em sentido oposto.

Para atingir a meta custe o que custar, introduzimos receitas primárias que não deveriam estar lá e retiramos do cálculo despesas que deveriam estar contempladas. A publicação oficial da meta vira uma peça de ficção.

O parafiscal ganha importância. Diversas outras despesas vão sendo criadas e empurradas para “debaixo da linha”; entram como despesas financeiras, fora do primário. Enquanto isso, o déficit nominal supera 9% do PIB, patamar atingido somente e de forma extraordinária na pandemia. Se nada for feito, caminharemos para uma relação dívida/PIB superior a 90%, muito acima de qualquer outro mercado emergente relevante.

O último relatório bimestral de receita e despesa foi o catalisador de uma crise mais geral de confiança. Enquanto se esperava um aperto fiscal a partir de bloqueio no Orçamento entre 5 bilhões e 10 bilhões de reais, aprendemos um verbo novo: descontingenciamos recursos! E trouxemos um bloqueio muito inferior ao esperado. O resultado líquido foi afrouxamento fiscal adicional. As consequências são óbvias e imediatas: os juros futuros disparam, o câmbio se desvaloriza, as expectativas de inflação sobem. Não há que se falar em melhora de rating.

As inconsistências do arcabouço fiscal ficam claras e testam a solidez do conjunto de regras. Despesas com saúde e educação estão vinculadas à receita e, por construção, crescem acima da despesa total. Gastos com Previdência são reajustados com base no salário mínimo, que, por sua vez, oferece ganhos reais. Em resumo, uma série de despesas obrigatórias cresce rápido demais. Como há um limite para a expansão da despesa total, as despesas discricionárias vão sendo esmagadas, comprimidas até o limite. Mas são esses dispêndios que fazem a máquina pública rodar.

Em resumo, chegamos a um momento-chave. Ou revisamos os gastos públicos e as regras do arcabouço ou chegaremos a uma paralisia dos serviços essenciais do governo. Shutdown à brasileira! Não é claro qual será o caminho. Previsões são sempre difíceis, especialmente sobre o futuro, insisto. No entanto, não parece ser do interesse da própria administração de turno incorrer na paralisia do governo.

Se, de fato, enveredarmos pelo caminho de alguma responsabilidade fiscal, será ótima notícia. As condições estão postas para que, mais uma vez, o Brasil honre sua tendência de regredir à média. Depois de um período muito ruim, poderíamos almejar vigoroso rali de final de ano, a exemplo do observado em 2023.

Os ativos locais parecem bastante baratos. Os modelos apontam valor justo do dólar em torno de 5,20 reais, sendo que as cotações correntes rondam 5,50 reais enquanto escrevo. A curva de juros aponta taxas superiores a 12% por toda sua extensão. O Ibovespa negocia a 8x lucros, ante uma média em torno de 11,5x, com lucros que crescem entre 15% e 20%, o que reduz bastante o risco de estarmos diante de uma armadilha de valor — podemos negociar a 6x ao final de 2025? Claro que sim, sempre pode piorar. O fundo do poço tem porão, mas as probabilidades estão a favor.

O cenário internacional se mostra amplamente favorável. Os principais Bancos Centrais do mundo cortam suas taxas de juro, sendo que o Fed o faz com intensidade, iniciando seu ciclo com uma redução de 50 pontos. O maior inimigo dos mercados emergentes desde 2022 era justamente o juro muito alto lá fora. Em paralelo, a China, depois de longo tempo de decepções, resolveu estimular sua economia, transformando o bull market americano num “all-in rally”, para usar a terminologia da empresa de pesquisa de investimentos Gavekal.

Obviamente, para capturar o exterior positivo, precisamos gerar algum idiossincrático razoável ou, pelo menos, interromper o ciclo de surpresas negativas. E se não o fizermos? Caso continue o pé na tábua fiscal, o que podemos esperar?

Aqui também há um possível consolo. Se formos pelo caminho negativo, teremos a chance de escrever o verdadeiro “Fausto brasileiro”. Não é o Grande Sertão: Veredas. A proposta vai assim: teremos de fazer um pacto de um ano. Conviveremos com Mefisto e o caminho ruim até o final de 2025. A partir daí, entraremos no grande debate de 2026, quando o sentimento anti-establishment e a migração da população mais para a direita devem fazer a sua parte.

É bastante tentador. Um para perder, nove para ganhar, num ciclo ditado pela migração do pêndulo político para a responsabilidade fiscal, o respeito aos contratos, a valorização do empreendedor, a obediência à sinalização do sistema de preços e um maior esforço institucional. Pode estar aí um belo trade. Vai exigir paciência e sangue-frio. Mas é um pacto que paga bem lá na frente. O diabo na rua, no meio do redemoinho.

Acompanhe tudo sobre:1268

Mais de Revista Exame

Aprenda a receber convidados com muito estilo

"Conseguimos equilibrar sustentabilidade e preço", diz CEO da Riachuelo

Direto do forno: as novidades na cena gastronômica

A festa antes da festa: escolha os looks certos para o Réveillon