Revista Exame

O novo papel do presidente

A era dos executivos autocratas acabou. Agora, eles precisam prestar contas a ambientalistas, blogueiros e acionistas. A vida nunca foi tão dificil

Martins, da Eternit: bate-boca na defesa pública do amianto

Martins, da Eternit: bate-boca na defesa pública do amianto

DR

Da Redação

Publicado em 15 de março de 2011 às 12h19.

O goiano Élio Martins, presidente da Eternit, trabalha pelo menos 11 horas por dia. Metade dessa jornada é preenchida por compromissos agendados fora da empresa -- e não estamos falando de encontros com clientes ou fornecedores. Martins tem passado cada vez mais tempo defendendo a companhia dos ataques a uma de suas principais matérias-primas, o amianto -- fibra de origem mineral utilizada na fabricação de telhas e caixas-d'água.

Hoje banido em mais de 40 países por seu efeito cancerígeno, o amianto ainda é usado no Brasil. Por isso, Martins acabou se tornando uma espécie de "embaixador do amianto", cargo que pressupõe a construção de alianças com organizações que possam ajudá-lo na causa e a defesa pública do produto e da companhia.

Há alguns meses, Martins aceitou um convite para participar de um debate com ouvintes numa rádio, em São Paulo, sobre o uso do amianto. Segundo ele, a discussão ficou tão acalorada que os microfones tiveram de ser desligados para encerrar o programa. O cerco à Eternit, que faturou 445 milhões de reais no ano passado, está se fechando cada vez mais. Em agosto, uma lei estadual proibiu o uso do amianto em São Paulo.

Dias mais tarde, o Tribunal de Justiça de São Paulo considerou a decisão inconstitucional. Para acompanhar melhor discussões como essa, Martins decidiu voltar à sala de aula e estudar direito -- o curso deverá ser concluído neste ano. Seu principal argumento em defesa da Eternit é que consumidores e funcionários não correm riscos graças a procedimentos de segurança rigorosos. "Estamos no centro de uma polêmica mundial, e a pior estratégia para a companhia é me esconder", diz Martins. "Preciso ser político e me expor."

O AMERICANO JOSEPH FULLER, presidente mundial da consultoria Monitor Group, acaba de realizar uma série de entrevistas com 25 presidentes de grandes grupos mundiais e concluiu que muitos executivos ainda não se deram conta da grandeza do desafio que os cerca. A impressão geral é que a cobrança por uma postura mais ativa da porta para fora se trata apenas de episódios circunstanciais.

"Ora eles enxergam que há uma ONG ambientalista ali os espreitando, ora que há outra que quer que eles melhorem as condições de trabalho", disse Fuller a EXAME. "Mas são incapazes de ver o todo de uma maneira sistemática e continuam pautando sua conduta por exemplos e modelos mentais de executivos que tiveram sucesso no passado."


Ainda que as conquistas de executivos centralizadores típicos como Jack Welch não devam ser simplesmente apagadas, o cenário atual pede alguém com as habilidades de Jeffrey Immelt, seu sucessor. Mais conciliador e menos arrogante, Immelt é um político em tempo integral, sempre disposto a alardear as benesses e os resultados que a política ambiental da companhia trará para o planeta.

"A maioria dos presidentes ainda delega o papel de diplomata a subordinados, como diretores de relações institucionais ou com investidores", diz Fuller. "Mas o sucesso das empresas dependerá cada vez mais de até que ponto ele vai assumir esse papel."A rotina de Martins é um exemplo extremo de como a vida de presidentes de grandes empresas vem mudando -- no Brasil e em qualquer outra parte do mundo.

Guardadas as peculiaridades de cada caso, hoje esses executivos precisam cada vez mais negociar com públicos distintos, sejam eles ONGs, acionistas, blogueiros, clientes, funcionários (e até ex-empregados). A habilidade política, antes usada à exaustão apenas para articular o jogo de forças dentro da própria empresa, está sendo colocada à prova cada vez mais fora dos escritórios.

"O jogo dos negócios se transformou num jogo político", diz Alan Murray, colunista do The Wall Street Journal, em seu recém-lançado livro Revolt in the Boardroom (em português, "Revolta na cúpula"). "Por isso, aqueles que comandam grandes empresas passaram a atuar como políticos para atender às demandas de um número cada vez maior de personagens que querem fazer valer suas vontades."

Murray refere-se aos tão falados stakeholders, termo hoje usado para definir todos aqueles que podem influenciar de alguma maneira o negócio. Num mundo em que qualquer informação sobre uma empresa pode circular via internet em tempo real, todo o cuidado com esse grupo de pessoas é pouco. O autor conta que, durante uma entrevista com A.G. Lafley, presidente mundial da americana Procter & Gamble, ele perguntou quem seriam os stakeholders da companhia. "Ao concluir a resposta, Lafley tinha incluído na lista metade da população do planeta", descreve Murray.

Para muitos presidentes de empresas brasileiras, uma das maiores mudanças é o relacionamento com acionistas. Com o avanço de companhias nacionais na bolsa -- só no primeiro semestre deste ano, 30 delas abriram o capital na Bovespa --, muitos presidentes estão tendo de gastar parte de seu tempo em conversas com investidores.


O carioca Bernardo Hees, presidente da ALL, diz já ter se acostumado a receber e-mails de acionistas com sugestões para melhorar o desempenho da empresa. Todas, claro, têm de ser respondidas por ele mesmo. "Não é perda de tempo porque muitas das idéias são pertinentes", afirma Hees.

Recentemente, um desses acionistas (cujo nome Hees não revela) sugeriu a compra de um vagão próprio para o transporte de papel e celulose -- algo que ele havia visto numa visita a uma ferrovia na Austrália. Hees avaliou a idéia e decidiu acatá-la. Alguns meses depois, a ALL já tinha uma adaptação do modelo em funcionamento.

O novo cenário, como se vê, exige um bocado de jogo de cintura -- ainda que lidar com tanta gente, muitas vezes desconhecida, seja um processo desgastante. "Não se trata de uma mudança evolutiva, e sim de uma ruptura", diz Betania Tanure, especialista em comportamento organizacional da Fundação Dom Cabral, de Minas Gerais. "Não são poucos os executivos que gostariam de matar alguns acionistas."

O que os segura, diz ela, é a percepção de que o contexto cada vez menos permite reações intempestivas desses profissionais. "Eles já entenderam que não são mais o dono da bola e precisam contar até 40 antes de tomar qualquer decisão", afirma.

Aos poucos, essa capacidade de conciliar interesses distintos tem se tornado um dos requisitos para a promoção a cargos executivos. "Recentemente, passamos a avaliar essa característica também para selecionar os profissionais que são promovidos", diz Franklin Feder, presidente da Alcoa no Brasil e um "diplomata" em tempo quase integral.

"Hoje dedico mais horas de trabalho às questões institucionais do que às que dizem respeito diretamente ao negócio", afirma Feder. "E a tendência de que isso aumente é irreversível." No final do mês de agosto, ele viajou para o Pará exclusivamente para encontrar-se com a governadora do estado, Ana Júlia Carepa, e dois de seus secretários.

Também foi a Juriti, no oeste do estado, para jantar com o prefeito do município onde a empresa inaugurará uma obra para ampliar a exploração de bauxita, em 2008. O périplo incluiu ainda um café da manhã, em Brasília, com cerca de 300 parlamentares que compõem a Frente Parlamentar Ambientalista da Câmara, entre os quais os deputados Sarney Filho e Fernando Gabeira.


"Todos os nossos projetos, sejam eles de expansão ou de construção de uma hidrelétrica, afetam as comunidades e, por isso, são fruto de muita conversa, com muita gente", diz Feder, que, antes de se formar em administração de empresas, cursou por quatro anos ciências sociais na Universidade de São Paulo.

A necessidade cada vez maior de exposição exige cautela. Afinal, qualquer passo em falso pode assumir proporções antes inimagináveis e respingar na imagem da empresa. O caso notório mais recente é o de Paulo Zottolo, presidente da Philips para a América Latina. Logo depois de anunciar o apoio ao Cansei, movimento criado no final de julho para protestar, entre outras coisas, contra a inépcia na administração pública e a corrupção, Zottolo começou a sofrer críticas.

Os maiores ataques vinham de blogueiros, que criticavam o executivo por expor demais a si mesmo e a empresa. O tiro no pé veio quando Zottolo concedeu uma entrevista para se defender e declarou que "se o Piauí deixasse de existir, ninguém ficaria chateado". A declaração provocou tamanha confusão que ele teve de pedir desculpas ao estado por meio de um comunicado oficial da Philips. O estrago, porém, estava feito.

A rede de lojas Claudino, uma das grandes clientes da companhia e maior varejista do Piauí, avisou que não compraria mais produtos da empresa. Consumidores enfurecidos quebraram equipamentos da Philips numa praça pública em Teresina, e a Assembléia Legislativa do estado considerou Zottolo persona non grata.

"Ele reconheceu que foi um erro, ainda que não tivesse a intenção de manifestar menosprezo pelo Piauí", diz João Doria, amigo de Zottolo e articulador do Cansei. "Mas soube agir rapidamente e falar com o governador." As conseqüências da frase infeliz de Zottolo para ele próprio e para a empresa que ele representa são um alerta poderoso. Numa época em que reputação é quase tudo, deslizar em palavras e fechar os ouvidos pode ser devastador.

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