(YouTube/Divulgação)
Lucas Agrela
Publicado em 23 de abril de 2020 às 05h15.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h33.
O violão, o microfone, a mesa de som, estava tudo pronto para o show. Mas, em vez de os cantores Chitãozinho e Xororó estarem lado a lado com uma plateia diante deles, cada um permanecia em sua casa. Olhando para uma câmera, a dupla sertaneja cantou o sucesso Evidências em uma transmissão recente pela internet a milhares de pessoas.
A cantora Marília Mendonça tem uma história parecida: de chinelo, ela fez um show para mais de 3,3 milhões de pessoas ao mesmo tempo da sala de seu apartamento. Acostumada aos estádios lotados, ela fez uma apresentação de mais de 3 horas diante da câmera.
E não são só os artistas que andam fazendo transmissões pela internet nas últimas semanas. Com as academias fechadas, a personal trainer Carla Pinheiro reinventou as aulas produzindo vídeos ao vivo para o aplicativo Instagram. Pinheiro ensina os exercícios, motiva os alunos e interage com eles do outro lado da tela. Até o comércio entrou na onda. É o caso da loja Twenty Four Seven, de moda feminina. Em transmissões ao vivo, vendedoras mostram às clientes os diferentes looks. Tudo para vender as peças de roupa pela internet e compensar o fechamento da loja física. Fora do Brasil, a tendência também é vista nas mais diferentes atividades. No Reino Unido, a companhia de balé English National Ballet transmite ao vivo aulas no YouTube. Nos Estados Unidos, o Zoológico da Filadélfia, o mais antigo do país, tem feito interações ao vivo no Facebook para falar sobre os animais e responder a perguntas do público. Até o papa Francisco transmitiu pela internet a tradicional missa de Páscoa.
Os casos citados são parte de um fenômeno que ganhou força durante a pandemia da covid-19. Como boa parte das pessoas teve de permanecer em casa, artistas, empresas, empreendedores, professores, padres e prestadores de serviço descobriram nas transmissões em vídeo uma nova maneira de interagir com o público. A atual onda de lives — termo em inglês pelo qual as transmissões ficaram conhecidas — impulsionou o consumo de um formato de vídeo que até a pandemia era utilizado apenas em situações especiais. Em 2012, vale lembrar, o salto do paraquedista austríaco Felix Baumgartner a uma altitude de 39 quilômetros — no limite da estratosfera — teve uma audiência de 8 milhões de visualizações simultâneas na internet. Mas, de lá para cá, raros eventos ao vivo mobilizaram grandes quantidades de pessoas na web. Com a pandemia, o cenário mudou, e as lives ganharam uma dimensão nunca vista. No sábado 18 de abril, milhões de pessoas assistiram ao festival online One World: Together at Home (“Um mundo: juntos em casa”, numa tradução livre), com a participação de dezenas de artistas, entre eles o músico Paul McCartney.
A explosão das transmissões ao vivo não tem precedente. Segundo dados do YouTube obtidos pela EXAME, as buscas por conteúdo ao vivo cresceram 4.900% no Brasil na quarentena. O fenômeno é mundial. A consultoria americana Tubular Labs, especializada no segmento de vídeos na internet, indica que houve um crescimento de 19% nas transmissões ao vivo pelo YouTube no fim de março — média de quase 3,5 bilhões de minutos de conteúdo por dia. “Há um sentimento de comunidade que as pessoas encontram nos vídeos neste período de distanciamento social. Isso elevou os vídeos ao vivo a um novo patamar”, diz Amy Singer, diretora do YouTube para a América Latina e o Canadá e maior autoridade da empresa na região (leia a entrevista abaixo). O que impulsiona o formato é a espontaneidade. De acordo com um estudo da consultoria Forrester e da IBM, a audiência das lives é de dez a 20 vezes maior do que a dos vídeos gravados.
A indústria de entretenimento é a parte mais visível do movimento. Com o cancelamento de shows, o jeito foi recorrer à internet. Uma das primeiras artistas a explorar o formato foi a cantora Anitta, que começou a dar aulas de francês pelo Instagram em março, com público médio de 30.000 pessoas por dia. “Queria dar algum tipo de auxílio aos trabalhadores e estudantes afetados pelo isolamento social”, diz Anitta. Em seguida, artistas de música sertaneja começaram a fazer performances. Numa live de 4 horas e meia, a dupla Jorge e Mateus teve uma audiência simultânea de 3 milhões de pessoas. Dias depois, um show da cantora Marília Mendonça atingiu a marca de 3,3 milhões. “Tem sido uma grande adaptação, a gente precisa fazer tudo com uma equipe reduzida ao máximo e tomar todos os cuidados necessários. São muitos detalhes, não é só ligar a câmera e começar a cantar”, diz Marília Mendonça.No campo da ciência, as lives também tiveram destaque. Atila Iamarino, doutor em microbiologia e divulgador científico, fez vídeos ao vivo no YouTube sobre o novo coronavírus que tiveram a audiência de 380.000 pessoas simultaneamente. “A transmissões ao vivo são o formato mais parecido com as aulas, que já estou acostumado a dar. Nelas, é possível passar muitas informações e responder a perguntas”, diz.
No entanto, as lives não se restringem à música ou à ciência. Com o comércio fechado, as empresas precisaram se reinventar. É o caso da brasileira Centauro, do grupo SBF. A varejista realiza transmissões no Instagram com personal trainers ensinando a fazer exercícios em casa. Serão 100 aulas até o fim de abril. As sessões ocorrem três vezes por dia. “As lives têm uma informalidade genuína, e isso ajuda na conexão com o público. Já decidimos que vamos continuar a fazer vídeos ao vivo no longo prazo. É barato e todo mundo sai ganhando”, diz Gustavo Milo, gerente executivo de marketing da Centauro. Para Eric Messa, coordenador da graduação em publicidade e propaganda da Faap, com mais pessoas em casa, é hora de as empresas testarem novos formatos. “As pessoas estão experimentando novos conteúdos; e as empresas procuram um novo canal de comunicação. Eventualmente, as novidades se tornarão parte do dia a dia”, diz. Para as empresas, o conteúdo ao vivo aumenta a visibilidade dos produtos. “A live é uma forma de se conectar às pessoas que estão vivendo em isolamento, entretê-las e promover nosso produto final”, diz Fernanda Romano, líder de marketing da Alpargatas, dona da marca Havaianas, que patrocinou a live da cantora Marília Mendonça. Na semana da transmissão, o produto mais vendido no site da marca foi o chinelo que a cantora usou durante o vídeo.
O que se vê é que o Brasil começou a experimentar um fenômeno que já havia ocorrido na China. Por lá, os vídeos ao vivo já eram parte da rotina das pessoas. Mas a quarentena elevou o formato a um novo patamar. O shopping Shanghai New World fez três transmissões ao vivo com 12 horas de duração em março que foram vistas por 130.000 pessoas. No vídeo, os vendedores apresentavam os produtos das lojas e respondiam a dúvidas dos clientes. A venda por meio de lives ganhou até um apelido: shopstreaming. A consultoria iiMedia estima que o faturamento desse modelo de vendas será de 129 bilhões de dólares em 2020, um crescimento de 111% em relação a 2019. “As empresas estão reavaliando se a venda presencial é mesmo a melhor forma de experiência para o cliente. Poderemos ver uma mistura maior do mundo online com o offline daqui para a frente”, diz Dustin Pozzetti, sócio-líder de tecnologia, mídia e telecomunicações da consultoria KPMG no Brasil.
Em meio a essa transformação, as redes sociais também precisam se reinventar. O aplicativo Instagram, que tem uma ferramenta de vídeos desde 2016, agora permite que as transmissões fiquem gravadas e sejam vistas depois no computador, como ocorre com o YouTube. O Brasil está entre os primeiros países a testar o novo recurso. A decisão foi tomada depois de a audiência das lives dobrar durante a quarentena. “As pessoas se aproximaram ainda mais do Instagram para interagir com amigos, parentes, artistas e marcas”, diz Gonzalo Arauz, diretor de parcerias do Instagram para América Latina. O Facebook, dono do Instagram, também observou um aumento no número de vídeos ao vivo de artistas e empresas. “Desde o lançamento do Facebook Live, já vimos mais de 8,5 bilhões de transmissões ao vivo”, diz Mauro Bedaque, diretor de parcerias de entretenimento do Facebook para a América Latina.
O aumento do uso de vídeo foi tão grande que as empresas de internet tiveram de se adaptar à nova realidade. Segundo a Akamai, maior rede de distribuição de conteúdo online do mundo, o tráfego de dados global aumentou 30% entre o final de fevereiro e o final de março. Para Luiz Fernando Bittencourt, membro do Instituto de Engenheiros Eletricistas e Eletrônicos (IEEE), a internet ficou sobrecarregada devido a dois motivos: o aumento de transmissões de vídeo ao vivo e o aumento de videoconferências. Por causa disso, empresas como YouTube e Netflix reduziram a qualidade de vídeos reproduzidos na web. O que se vê é que, com a quarentena, os vídeos ganharam uma relevância ainda maior na web. A empresa de tecnologia Cisco estima que 80% do tráfego de dados na internet será de conteúdo de vídeo até 2021 e a tendência é que isso cresça ainda mais. Para Laércio Albuquerque, presidente da Cisco no Brasil, a visualização intensa de vídeos tende a se tornar o “novo normal” depois que o isolamento social chegar ao fim. “Todos estão abraçando esse formato. As pessoas descobriram que as lives foram extremamente produtivas e são benéficas para elas e para as companhias”, afirma.
A explosão das transmissões ao vivo levanta uma questão: elas vieram para ficar ou são uma onda passageira? Na visão de especialistas, as lives são um caminho sem volta. Muitos negócios e artistas experimentaram essa tecnologia pela primeira vez e perceberam o poder de conexão com o público. As companhias agora coletam dados sobre a audiência para criar experiências novas no futuro pós-pandemia. Para Pozzetti, da KPMG, o uso dos vídeos ao vivo só ocorreu porque as empresas deram uma chance a eles. “Não foi o distanciamento social que impulsionou as lives. Foi a iniciativa das empresas de levar as lives sem custo ao público. As companhias que experimentaram esse formato sairão fortalecidas”, afirma. Para que as transmissões ao vivo continuem de forma regular no longo prazo, entretanto, as empresas precisarão encontrar modelos sustentáveis, que tragam retorno financeiro. É a live mostrando a que veio.
Com a quarentena, os serviços de streaming viram sua base de assinantes crescer e a audiência disparar | Tamires Vitorio
No início de abril, mais de um terço da população mundial estava recolhido em casa por causa da pandemia quando o violão da música My Life Is Going On, tema de abertura da série La Casa de Papel, tocou nas telas ao redor do mundo. Em 3 de abril, uma sexta-feira, a quarta temporada da produção estreou no serviço de streaming Netflix, em um momento muito propício para picos de audiência. Em 2019, a série foi a mais assistida no Brasil e a de produção de língua não inglesa mais vista na plataforma no mundo.
Outras empresas do ramo também têm se beneficiado no momento atual, apesar da crise. A Disney, que está com uma de suas principais fontes de renda comprometida — os parques de diversão —, encontrou um refúgio em seu recém-lançado serviço de streaming, o Disney+. Em apenas dois meses, a base de assinantes do serviço subiu de 30 milhões para 50 milhões, especialmente depois do lançamento na Europa, em 24 de março. Com isso, a empresa levou apenas cinco meses desde a estreia do Disney+ nos Estados Unidos para atingir o mesmo número de assinantes que a Netflix demorou sete anos para conquistar. No Brasil, o streaming da Disney deve ser inaugurado no fim deste ano ou no começo do próximo.
Por aqui, o Globoplay, streaming da Globo, viveu algo semelhante: no primeiro trimestre de 2020, a plataforma teve um crescimento de 123% em relação ao mesmo período de 2019. A empresa não divulga o número exato de assinantes. “Passado o primeiro mês de isolamento, notamos que os brasileiros estão mais adaptados às novas rotinas em casa”, diz Paulo Marinho, diretor dos canais Globo. Já o Telecine abriu todos os canais nas operadoras de TV a cabo durante o período de isolamento e liberou o uso gratuito de sua plataforma de streaming por 30 dias para novos clientes. Com a mudança, veio um aumento de 150% na audiência entre 16 e 22 de março. A empresa não divulgou o número de usuários novos do streaming, mas no total o serviço tem 1,5 milhão de assinantes. “Nosso foco é atender aos desejos de um novo perfil de consumidor que busca assistir ao que quiser e na hora que desejar”, diz Eldes Mattiuzzo, diretor-geral do Telecine.
Não é de estranhar que globalmente a audiência das plataformas de streaming de vídeos tenha crescido 20% de 9 e 23 de março, de acordo com a Conviva, consultoria americana especializada no mercado de vídeos. Para 2020, a estimativa é que a pandemia acelere o crescimento da base de novos assinantes de serviços de streaming no mundo. A consultoria Strategy Analytics prevê um total de 949 milhões de assinantes até o fim do ano, 5% mais do que a estimativa calculada antes do novo coronavírus. Em 2019, eram 805 milhões. Com isso o faturamento do mercado, que alcançou 24 bilhões de dólares no ano passado, também tende a acelerar. No dia 16 de abril, as ações da Netflix atingiram seu maior valor da história, 439 dólares, o que fez a empresa superar o valor de mercado da Disney pela primeira vez. Como se vê, a Netflix e os demais serviços de streaming podem sair da quarentena ainda mais fortes.
Para Amy Singer, principal executiva do YouTube para América Latina e Canadá, as transmissões ao vivo oferecem a artistas e empresas a oportunidade de se conectar com o público de forma mais natural | Lucas Agrela
Na empresa desde 2010, Amy Singer é a maior autoridade do YouTube para América Latina e Canadá, coordenando a operação em mais de 30 países. Em entrevista exclusiva à EXAME, ela afirma que o crescimento das transmissões ao vivo durante a quarentena é algo que nunca havia sido visto antes numa escala tão grande e que, na opinião dela, esse novo hábito veio para ficar. “Não acho que um artista vai parar de fazer transmissões ao vivo depois de conhecer o poder desse formato”, diz a diretora do YouTube.
As transmissões ao vivo ganharam um novo grau de importância na quarentena. Por quê?
O engajamento no YouTube está acima do normal porque as pessoas procuram informações sobre saúde, culinária, exercícios e também vídeos de entretenimento. Há um sentimento de comunidade nos vídeos neste período de distanciamento físico. Isso eleva as transmissões ao vivo a um novo patamar.
Como vê o crescimento das lives no YouTube?
Sempre tivemos os vídeos ao vivo. Muitas lives incríveis foram feitas antes da pandemia. Mas estamos felizes em ver como as pessoas têm tirado valor dos vídeos ao vivo hoje. Há muitos artistas que nunca tinham feito uma transmissão e agora usam o recurso para se conectar com o público. São vídeos mais íntimos. No Brasil, as lives de música são as maiores do mundo todo. Os artistas estão reunindo pessoas de uma forma que nunca vimos antes. É por isso que acreditamos que não seja algo passageiro. As pessoas amam o conteúdo ao vivo. A cantora Marília Mendonça reuniu mais de 3 milhões de pessoas. Isso é o poder de uma comunidade online.
As lives trazem retorno financeiro ao YouTube?
A geração de receita é importante para nós. O que queremos oferecer às marcas que anunciam é uma audiência engajada com o conteúdo. No caso dos vídeos ao vivo, temos receitas com os anúncios exibidos antes de a live começar. Viabilizamos a exibição de produtos patrocinados nos vídeos e temos o recurso de Super Chat, que é pago e permite destacar os comentários numa transmissão.
As transmissões ao vivo continuarão a ser importantes depois da quarentena?
Como as pessoas não podem sair para ir a um bar ou a um restaurante, elas descobriram o poder dos vídeos ao vivo. Isso não será esquecido. Não acho que um artista parará de fazer transmissões ao vivo depois de conhecer o poder desse formato. As lives ajudam o artista a se conectar com fãs que não podem pagar ingressos para ir a um show.
As empresas também vão continuar a usar as lives?
As marcas estão vendo que, se tiverem informação relevante para o público, as pessoas poderão gostar dos vídeos não roteirizados, naturais. Por isso, as empresas devem continuar a usar o recurso para se conectar com consumidores quando voltarmos ao normal.
As lives ajudam a elevar o número de assinantes?
Entre outros fatores, sim. As pessoas passam mais tempo em casa assistindo a vídeos. Por isso, a experiência de ver vídeos sem anúncios se torna mais importante.
Para o YouTube, qual é o objetivo de oferecer as transmissões ao vivo gratuitas?
Pensamos nas lives dentro de um conjunto de serviços. Os criadores de conteúdo fazem transmissões relevantes e atraem pessoas. Com isso, a plataforma se torna benéfica para as marcas. É um círculo virtuoso. Não temos planos de cobrar pelas lives. Só queremos continuar a oferecer a melhor experiência de visualização de vídeos. Pensando no longo prazo, ver o alto engajamento nas lives é muito bom.