Revista Exame

Data centers movimentam investimentos bilionários no Brasil — e esta empresa lidera a aposta

Com a inteligência artificial generativa disponível no bolso e um consumo cada vez maior de internet, nunca foi tão importante processar dados como hoje. A paulista Scala mapeou essa necessidade e planeja investir 27 bilhões de reais no Brasil

Marcos Peigo, CEO da Scala: empresa aposta em alta demanda doméstica e em oportunidades internacionais (Leandro Fonseca/Exame)

Marcos Peigo, CEO da Scala: empresa aposta em alta demanda doméstica e em oportunidades internacionais (Leandro Fonseca/Exame)

Daniel Giussani
Daniel Giussani

Repórter de Negócios

Publicado em 23 de janeiro de 2025 às 06h00.

Quando o paulista Marcos Peigo usou pela primeira vez o ChatGPT, a ferramenta de inteligência artificial generativa da OpenAI, ele pensou: “Minhas filhas vão crescer em um mundo completamente diferente do meu”. A capacidade de processar dados e dar respostas inteligentes a problemas complexos em um espaço de tempo curtíssimo mudaria, para sempre, nossa forma de ver e entender a produção de informação. Com mais de duas décadas de experiência em TI, Peigo já tinha uma noção dessa revolução ao observar o impacto da inteligência artificial nas empresas pioneiras em adotar a tecnologia, no início dos anos 2010.

A grande diferença, ao testar o robô gratuitamente na internet, estava no alcance: algo antes restrito a algumas organizações agora poderia ser acessado por qualquer pessoa com conexão, em qualquer lugar do mundo. Só no Brasil, mais de 123 milhões de pessoas já utilizaram o ChatGPT. Assim, quando experimentou a ferramenta, Peigo soube que não apenas a vida de suas filhas mudaria para sempre, mas também a dele e, sobretudo, a do seu negócio: a Scala, uma das três maiores provedoras de data centers da América Latina. Isso porque, quando uma pergunta é feita à inteligência artificial, o usuário pode até não ver, mas centenas de supercomputadores entram em ação para processar, interpretar e construir a resposta solicitada.

Tudo acontece na nuvem, termo cunhado pelo setor para falar do armazenamento e processamento de dados em servidores remotos. Mas, a bem da verdade, a nuvem está bem firme no chão, mais especificamente nos data centers. Eles são a casa desses supercomputadores, grandes consumidores de energia. Ali, as máquinas processam toda a demanda gerada pelos usuários da internet, desde a pergunta enviada a uma IA até o filme visto por streaming. Por isso, o negócio de Peigo estava fadado a mudar para sempre: afinal, ele fornece o espaço onde todos esses dados são processados. E o volume de informações não para de crescer.

Complexo de data centers da Scala em Barueri, na Grande São Paulo: até o final do projeto, 4,5 bilhões de dólares serão investidos nesse segmento no bairro de Tamboré (Scala/Divulgação)

A demanda quase infinita de mais locais para processamento de dados não afetará somente a vida de Peigo. Ela pode abrir um novo caminho bilionário para o Brasil, e a Scala quer puxar a frente nessa estrada. Não à toa, a empresa já se comprometeu a investir 27 bilhões de reais na construção de novos data centers pelo país. A lógica é simples: os campos de processamento de dados necessitam de muita energia para funcionar. Até 2026, o consumo total de eletricidade dos data centers pode chegar a mais de 1.000 terawatts-hora, segundo a Agência Internacional de Energia. É praticamente o consumo de todo o Japão. O Brasil, por sua vez, tem energia em abundância para oferecer. E, o melhor dos mundos: renovável, vinda de fontes eólicas, solares e hídricas. “Temos sobrecapacidade de produção de energia, e o data center é um grande consumidor”, diz Felipe Hildebrand, especialista em tecnologia na consultoria Oliver Wyman.

Daí a oportunidade de ouro para o Brasil, e a aposta bilionária da Scala. Só em Tamboré, às margens do Rodoanel, em São Paulo, a empresa tem um investimento na casa de 10 bilhões de reais, quase metade dele já aplicada. Quem passa por ali bem sabe. De um prédio de data center em 2020, hoje são seis em funcionamento e outros quatro em construção, sem contar mais sete estruturados a serem erguidos no futuro. É praticamente um shopping, dado o tamanho do complexo. Mas, no lugar das lojas, há andares e andares de supercomputadores processando informações. Quando concluído, o campus terá capacidade total de 600 megawatts, o equivalente ao consumo energético da cidade de Brasília. Outros data centers da Scala estão espalhados por cidades como Rio de Janeiro e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e mais estão sendo construídos em municípios como Fortaleza, no Ceará, e em Jundiaí, em São Paulo.

Os investimentos da Scala refletem uma aposta global em data centers. O assunto é uma das galinhas dos ovos de ouro do próximo presidente dos Estados Unidos. Já na primeira semana de 2025, Donald Trump apresentou em uma coletiva de imprensa um projeto de 20 bilhões de dólares em data centers no país, um investimento liderado pelo bilionário árabe Hussain Sajwani, chairman da Damac Properties. Em uma carta aberta publicada no início de janeiro, o vice-presidente da Microsoft, Brad Smith, também chamou a atenção para a oportunidade na mesa. “Desde a invenção da eletricidade, o país não tinha uma oportunidade tão grande como a de agora para aproveitar novas tecnologias e dinamizar a economia nacional”, disse. “Em muitos aspectos, a inteligência artificial é a eletricidade da nossa era, e os próximos quatro anos podem construir uma base para o sucesso econômico dos Estados Unidos nos próximos 25 anos.” O texto foi acompanhado por um anúncio de investimento de 80 bilhões de dólares — algo na casa de meio trilhão de reais — no ano fiscal de 2025 para construir data centers capazes de lidar com cargas de trabalho de inteligência artificial. Mais da metade desse valor será destinada aos Estados Unidos, mas o CEO Satya Nadella anunciou recentemente um investimento de 14,7 bilhões de reais em infraestrutura de nuvem e inteligência artificial no Brasil nos próximos três anos.

É nesse cenário de cifras superlativas e demandas aquecidas que a Scala atua há cinco anos. Nascida com a pandemia de covid-19 em 2020, a empresa é fruto de um casamento entre o empreendedor Marcos Peigo e o fundo de investimento americano DigitalBridge. Formado em engenharia elétrica e economia, Peigo teve a primeira experiência empreendedora quando criou a Solvo, em 2001, uma empresa de infraestrutura de TI para ambientes críticos, aqueles sem nenhuma falha ou queda de operação. O negócio foi vendido para a UOL Diveo, o braço de data centers da plataforma de conteúdo UOL, em 2014. Peigo virou diretor de operações da compradora e se inteirou ainda mais no universo de processamento de dados. Foi também executivo da IBM antes de começar o namoro com a DigitalBridge. O fundo, gestor de 88 bilhões de dólares em ativos pelo mundo, buscava por alguém com o perfil de Peigo para colocar em pé no Brasil uma tese de investimento a partir de um aporte de 450 milhões de dólares. “A tese nasce ao olharmos para o momento de infraestrutura digital na América Latina e vermos uma defasagem enorme em relação à Europa e, principalmente, aos Estados Unidos”, diz Peigo. “A jornada para a nuvem era uma verdade, e estávamos atrasados. Sabíamos que o Brasil precisaria de muito mais capacidade de processamento de dados do que tinha. Decidimos acompanhar essa jornada de crescimento.”

Satya Nadella, CEO da Microsoft: gigante americano investirá 80 bilhões de dólares no ano fiscal de 2025 para construir data centers (Leandro Fonseca/Exame)

Qual é o mercado de data center no Brasil

Até os anos 2000, os data centers eram internos. Computadores dentro da empresa processavam as informações das companhias. “A partir da virada do século, nasceu um mercado terceirizado”, diz Alison Takano, sócio da CBRE, consultoria responsável pela transação de mais de 5 milhões de metros quadrados de data centers na América Latina. Nesse movimento, empresas de saúde, seguradoras e varejistas, por exemplo, deixaram de ter os próprios centros de processamento de dados e contrataram empresas terceirizadas para administrá-los. Foi quando nasceram empresas como a americana Equinix, a pioneira entre as grandes operadoras de data center de relevância mundial, e, mais para a frente, a Ascenty, uma joint venture da Digital Realty, maior empresa de data centers do mundo, e da gestora de ativos canadense Brookfield. “Por volta de 2015, o conceito de nuvem se popularizou. As empresas contratam todo o serviço de hospedagem e processamento de dados com a garantia de funcionamento, sem saber exatamente onde o servidor está localizado”, afirma Takano. “E isso virou um fenômeno, com a maioria das empresas migrando seus data centers para nuvens.” Quem opera dois terços dessas nuvens pelo mundo são três gigantes de tecnologia: a Amazon, com a AWS, a Microsoft e o Google. Mas nem todos os data centers são, necessariamente, próprios. Em muitos países e regiões, as big techs contratam a infraestrutura de operadoras de data center. Esse foi o alvo da Scala. “Decidimos trazer para o Brasil a mesma abordagem de países desenvolvidos, de prédios inteiros dedicados aos clientes.” Deu certo. A perspectiva inicial era ter 70 megawatts de capacidade até 2028. Agora, já deve bater 300 megawatts neste ano, numa toada de crescimento garantida pela entrada de novos investidores (como o Banco Mundial e o fundo árabe Olayan Group) e pela emissão de debêntures verdes no Brasil. Cerca de 4,5 bilhões de reais já foram levantados nessa estratégia de captação.

Duas apostas ajudam a explicar os anúncios bilionários da Scala. A primeira está na gigantesca demanda doméstica. Os brasileiros passam, em média, 9 horas e 13 minutos por dia na internet. É o segundo maior tempo no mundo, atrás apenas da África do Sul. “O brasileiro consome muito streaming e redes sociais, o que gera uma necessidade enorme de processamento de dados”, afirma Takano, da CBRE. Para processar esses dados, é fundamental ter um data center perto do usuário final, diminuindo o tempo de latência. É o que explica, em parte, o fato de São Paulo liderar os investimentos em data centers. Já a segunda aposta está fora do país. Os Estados Unidos concentram a maior parte dos data centers do mundo, mas, eventualmente, chegará a um teto, principalmente por falta de energia. Empresas como a Amazon já discutem a possibilidade de comprar usinas nucleares para gerar energia capaz de processar os dados. E um mercado de usinas elétricas móveis, para atender regiões mais inóspitas, também surge nos Estados Unidos. A tese de Peigo e da Scala é que, quando esse teto bater, as big techs vão procurar em outros mercados a possibilidade de processar dados sem a exigência de um tempo de resposta tão curto. “Com o streaming e os carros autônomos, por exemplo, é necessário processar os dados em milissegundos”, diz Hildebrand, da Oliver Wayman. “Mas nem toda demanda precisa estar tão próxima do consumo. Se a empresa quiser apenas treinar um robô, pode fazer isso mais longe de casa, com um tempo de latência maior.” Quando chegar a hora de procurar data centers, o Brasil terá um diferencial competitivo fortíssimo: hoje, produz mais energia do que consome. Todo esse excedente poderá ser usado para processar dados externos.

A maior crença da Scala nessa tese está num anúncio de investimento inicial de 3 bilhões de reais no Sul do país. Em Eldorado do Sul, o município mais atingido pelas enchentes no Rio Grande do Sul em maio de 2024, a empresa de Peigo pretende construir uma “cidade de data centers”, um espaço de 10 milhões de metros quadrados pronto para receber centenas, se não milhares, de prédios de processamento de dados. “Quando vimos a oportunidade na mesa, varremos mais de 200 subestações de energia pelo país para encontrar uma boa para esse projeto. Encontramos em Eldorado”, diz Peigo. “Ali, há uma subestação com 5 gigawatts potencial e apenas 50 megawatts consumidos. Compramos um terreno de 10 milhões de metros quadrados numa área que não oferece risco de inundação no entorno dessa joia e projetamos a Scala AI City para uma demanda inexistente ainda.” Quando no limite de operação, o complexo terá recebido um aporte de 50 bilhões de reais.

As pedras no caminho

Para o investimento realmente vingar, há pedras a serem removidas do caminho. A primeira é legislativa. No final de 2024, o Senado Federal aprovou a regulamentação da inteligência artificial no Brasil, criando mecanismos de proteção de direitos autorais em usos comerciais e prevendo sanções (inclusive financeiras) para infrações. O texto vai agora para a Câmara. No texto, Peigo espera uma -garantia para as big techs de que seus dados não sejam vasculhados enquanto transitam em solo brasileiro. “Pense na Scala como um aeroporto. Os aviões são de empresas como AWS e Microsoft. Os passageiros, as aplicações, como o ChatGPT. E as bagagens são os dados”, diz Peigo. “Precisamos criar um aeroporto de trânsito. O passageiro não entra no Brasil, só passa por aqui. Assim, você até pode conferir no raio X se ele não tem uma bomba ou droga, mas não pode abrir a mochila para ler o dado.” Para o senador Eduardo Gomes (PL-TO), relator do projeto, trata-se de uma garantia já prevista pela lei. “Todas as condições serão dadas, todo diálogo será aberto. Acredito muito no projeto da Scala. Só precisamos garantir que, quando uma propriedade intelectual for usada, haja o pagamento para isso.” Questões tributárias também podem inviabilizar esse projeto, principalmente a importação de equipamentos de tecnologia, como os chips de processamento de dados. Importá-los hoje encarece a operação, o que a deixa pouco competitiva. Por fim, há uma questão de estratégia das próprias big techs. Capacidade de processamento o Brasil terá. “A questão mais importante é saber para onde as big techs vão querer mandar seus dados. E isso dependerá de uma estratégia de cada empresa”, diz Takano, da CBRE. “Podem optar pelo Brasil pela energia renovável e por certa proximidade com o mercado americano, mas também podem escolher algo na Ásia, por exemplo.” Hoje, o Brasil até está à frente quando comparado com o mercado europeu, extremamente restrito energeticamente, mas há concorrentes de peso, como o Sudeste Asiático (Singapura e Malásia) e a Índia. Para garantir a competitividade, Peigo e seu time têm trabalhado no Congresso para mostrar as oportunidades de agregar valor ao excedente de energia brasileiro. E não há tempo a perder. “Nas minhas pregações por aí, sou muito claro em dizer que temos de nove a 18 meses para nos apresentarmos como uma alternativa viável”, diz o CEO da Scala.

Marcos Peigo, CEO da Scala, e Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul: empresa de data center firmou um compromisso de investimento de 3 bilhões de reais na cidade gaúcha de Eldorado do Sul (Mauricio Tonetto/SECOM/Divulgação)

Fato é que todos esses investimentos e apostas em inteligência artificial são apenas a ponta do iceberg. A inteligência artificial generativa acessível ainda está engatinhando. À medida que novas tecnologias e aplicações forem desenvolvidas, mais e mais dados precisarão ser processados, e cada vez mais rápido. Uma pesquisa no ChatGPT requer dez vezes mais energia do que uma no Google, e isso é só o começo de uma nova era na internet. Um entendimento comum entre praticamente todos os especialistas no assunto, do vice-presidente da Dell, Erik Day, que afirma que nunca houve nada maior do que a IA na história, ao futurista americano Ray Kurzweil e ao bilionário do setor de tecnologia Bill Gates. “Durante minha vida, vi duas demonstrações de tecnologia que me pareceram revolucionárias”, escreveu Gates em seu blog. “A primeira vez foi em 1980, quando fui apresentado a uma interface gráfica de usuário. A segunda veio com a inteligência artificial generativa.” Em breve, chegará a hora de criar álbuns musicais e vídeos em alta qualidade, para dizer o mínimo. Carros autônomos serão dirigidos, cirurgias remotas serão realizadas, e até softwares serão criados com IA. Haja computador, energia e espaço para acomodar e processar tantos dados. Há muitos futuros possíveis para Peigo, suas filhas e toda a humanidade ver. 

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