Revista Exame

O Google vai à guerra

Para o Google, crescer não basta. É preciso que seja astronomicamente. E, para o Google, isso só será possível atacando os territórios de Apple, Microsoft e Facebook

"Googleplex", a sede do Google em Mountain View, nos Estados Unidos (Maria Ly/Flickr)

"Googleplex", a sede do Google em Mountain View, nos Estados Unidos (Maria Ly/Flickr)

DR

Da Redação

Publicado em 8 de abril de 2011 às 17h53.

No início do ano, em meio à euforia causada pelo lançamento do iPad, Steve Jobs decidiu que era hora de atacar um velho aliado. Por anos, a Apple de Jobs e o Google protagonizaram uma das parcerias mais famosas do Vale do Silício. Eric Schmidt, o presidente do Google, sentava-se no conselho de administração da Apple. Jobs, por sua vez, era um dos mentores dos fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin. Mas, de um ano para cá, essa fraternidade to da deu origem a uma disputa que já foi apelidada de “terceira guerra mundial” e “maior briga de egos da história”. A origem da discórdia é o mercado de computação móvel, no qual as duas empresas pretendem reinar — a Apple com seu iPhone, o Google com seu sistema operacional Android.

No ano passado, Schmidt foi chutado do conselho da Apple. Em janeiro, tratou de lançar o primeiro telefone celular criado pelo Google. E o clima, que já estava ruim, pesou de vez. Jobs, como um general que discursa para as tropas, atacou os novos rivais numa palestra para funcionários da Apple, em janeiro. “Nós não entramos no mercado de busca”, disse, referindo-se ao tradicional domínio do Google e, claro, jogando no outro lado a culpa pelo início das hostilidades. “Não se enganem. Eles querem matar o iPhone. Mas nós não permitiremos.” Um funcionário, então, perguntou o que ele achava do lema do Google — “Não seja mau”. Jobs respondeu: “Papo furado”.

Steve Jobs não é o primeiro magnata a sair do sério em reação às ambições do Google. Em sua trajetória de quase 12 anos — da salinha na Universidade Stanford à supremacia da internet mundial —, a empresa de Brin, Page e Schmidt acumulou uma razoável lista de inimigos (Rupert Murdoch, o todo-poderoso controlador do grupo de mídia News Corp., parece ter encontrado um prazer especial em chamá-los de “ladrões” do conteúdo de seus jornais). Mas a retórica belicosa de Jobs reflete uma mudança no comportamento do Google, que vive hoje uma fase particularmente expansionista.

A briga com a ex-amiga Apple é uma manifestação dessa nova postura. O Google prepara, até o fim do ano, mais uma série de ataques a antigos e novos rivais. A empresa lançará seu primeiro sistema operacional para computadores, num petardo direcionado à Microsoft e seu onipresente Windows. Incomodará a Amazon no mercado de livros eletrônicos ao inaugurar o site Google Editions. Além disso, vai estender seus tentáculos à televisão com o lançamento da Google TV. O último alvo da lista é o site de relacionamentos Facebook. Segundo a mídia especializada, o Google prepara aquela que será sua mais ousada investida no crescente mercado de redes sociais. “Eles estão em ‘modo de guerra’”, diz Colin Gillis, analista de tecnologia da corretora BGC Partners.


Tamanha agressividade é consequência de um paradoxo. Avaliado pelos padrões usados para medir o desempenho de empresas normais, o Google vive uma fase espetacular. Suas receitas cresceram 24% no segundo trimestre do ano, o lucro foi de quase 2 bilhões de dólares e a companhia tem mais de 30 bilhões de dólares em caixa. O problema é que os padrões normais não valem para o Google. Entre 2001 e 2009, seu faturamento foi multiplicado 273 vezes. Assim, é inevitável que os números atuais sejam vistos como decepcionantes. Para piorar, seu ritmo de expansão só fez diminuir nos últimos sete anos. As ações da empresa, antes uma garantia de retornos espetaculares, caíram 20% em 2010. De sua fundação até hoje, o Google só inventou uma forma de ganhar dinheiro: a venda de anúncios, exibidos nas páginas em que aparecem os resultados de cada busca. Foi um achado e tanto e fez do Google a empresa extremamente rentável que é até hoje. Mas esse mercado passa por uma natural desaceleração, principalmente nos países ricos — e o modelo que garantiu ao Google sua incrível expansão na última década dificilmente fará o mesmo na próxima. “Os investidores começam a ficar impacientes”, diz Scott Kessler, analista da Standard & Poor’s.

“Eles não conseguem encontrar uma nova fonte de crescimento, e isso preocupa.” O momento vivido pelo Google é típico do setor de tecnologia, em que tudo vem mais rápido, seja o sucesso, seja o ostracismo. Em nenhum mercado aquele velho clichê dos gurus da administração — a necessidade de “reinvenção” constante — vale tanto. Apple e Microsoft são ótimos exemplos disso. A Microsoft ainda é a empresa de tecnologia mais lucrativa do mundo. Mas, como não inventa nenhum produto de impacto desde os anos 90, suas ações são um mico há mais de uma década. Já a Apple, originalmente uma fabricante de computadores, lançou o iPod há nove anos, o iPhone há três e o iPad no início de 2010 — e vem ganhando muito dinheiro com cada um deles. O mercado devolve esse sucesso todo com um amor incondicional. Assim, embora a Microsoft ainda tenha um lucro maior que o da Apple, hoje a empresa de Steve Jobs vale mais na bolsa. E eis, simplificado ao máximo, o receio que começa a surgir em relação ao futuro do Google — que a companhia esteja ficando mais parecida com a Microsoft, menos parecida com a Apple.

É exatamente o que Eric Schmidt, o cinquentão que comanda o Google ao lado dos dois fundadores, está tentando impedir ao colocar a empresa em “modo de guerra”. O sucesso da fórmula Google na última década fez de Schmidt um dos executivos mais ricos da história americana. Sua fortuna era estimada em 6,3 bilhões de dólares no início do ano — a queda recente nas ações, portanto, custou-lhe mais de 1 bilhão de dólares. “Eu nunca estou feliz”, disse ele a EXAME em sua minúscula sala de reuniões na sede do Google, em Mountain View, na Califórnia. “Estamos investindo no futuro da empresa, e leva tempo até que essas iniciativas se transformem em negócios significativos.” Nos primeiros sete meses de 2010, 15 empresas foram compradas pelo Google, um recorde. Em meio à anêmica recuperação econômica americana, Schmidt está contratando — foram mais de 1 000 funcionários de um ano para cá.

Para explicar sua atual estratégia, ele desenha uma série de gráficos numa lousa. Cada um deles começa com uma curva de crescimento acelerado, seguida de um período de estabilidade. O objetivo, diz, é ter diversos novos negócios para compensar a freada daqueles mais antigos. “Com o passar dos anos, empresas tendem a ficar mais conservadoras, a arriscar menos. Vamos arriscar mais.” Com 30 bilhões de dólares em caixa e agressivo como nunca, o Google se arma para iniciar seu aguardado segundo ato.


De todas as disputas em que o Google está metido, nenhuma é tão importante quanto aquela que coloca Schmidt e Steve Jobs em campos opostos. O crescimento nas vendas de smartphones (os celulares que têm características semelhantes a computadores) está mudando a cara da indústria. Segundo estimativa do banco de investimento Morgan Stanley, em cinco anos a maior parte dos acessos à internet acontecerá de celulares, não mais de computadores. Apple e Google, portanto, estão brigando pela supremacia naquele que será um dos maiores mercados para empresas de tecnologia. Na “terceira guerra mundial”, as duas empresas entram com táticas totalmente diferentes. Jobs ganha dinheiro com a venda dos aparelhos — estima-se que a margem de lucro de cada iPhone seja superior a 50%. Já o Google cede seu sistema operacional Android a fabricantes como Motorola, HTC ou Samsung. O mais importante, portanto, é garantir que o maior número possível de celulares chegue ao mercado com seus programas de busca instalados — é com essas buscas que o Google quer ganhar dinheiro. Segundo Schmidt, o Google pode faturar 10 bilhões de dólares por ano dessa maneira — quase metade de suas receitas em 2009.

Para chegar lá, Schmidt separou mais de 300 engenheiros com a missão de criar programas para smartphones. “As melhores pessoas, os maiores investimentos estão concentrados na telefonia móvel”, diz ele. Essa força-tarefa tenta extrair o máximo permitido pela atual tecnologia de celulares. Um dos produtos mais impressionantes desenvolvidos até agora é o Google Goggles: com a câmera do celular, é possível, entre outras coisas, traduzir um menu de restaurante ou descobrir se aquele quadro pendurado no museu é de Monet ou de Manet. Os engenheiros desenvolvem agora um sistema de tradução simultânea com base no reconhecimento de voz dos usuários. Assim, um turista americano poderá tirar dúvidas sobre o metrô de Berlim sem precisar falar ou entender uma só palavra de alemão — bastará falar no microfone do celular, que traduzirá a frase e, depois, a resposta do berlinense. “Esse sistema deve chegar ao mercado em menos de um ano”, diz o mineiro Hugo Barra, diretor responsável pelo projeto. Até agora, o Android é um sucesso. Quase 5 milhões de aparelhos são ativados por mês. Impulsionado por esses números, o Google está desenvolvendo um concorrente para o iPad em aliança com a operadora de celular Verizon.


A guerra com a Apple ilustra perfeitamente a estratégia central do Google: entrar em novos mercados, puxar os preços para baixo, desafiar a hegemonia dos líderes e aumentar, ao fim do processo, o número de usuários de seu sistema de busca. Como a ideia é ganhar dinheiro com publicidade, o Google pode se dar ao luxo de não cobrar por seus sistemas, e os produtos acabam mais baratos na ponta final. Assim como o Android, a Google TV e o sistema operacional Chrome OS serão oferecidos de graça aos fabricantes. Antes do Natal, a Sony começará a vender televisores com a Google TV embutida. Schmidt quer transformar aparelhos de TV em computadores nos quais as pessoas naveguem na internet, façam buscas e, claro, cliquem em links patrocinados.

Com o Chrome OS, a mesma coisa. O sistema operacional foi desenhado para funcionar o tempo inteiro conectado à internet — ninguém precisará baixar programas, já que todos eles estarão disponíveis na rede. “Essas brigas são uma maneira de ganhar mais dinheiro com a venda de anúncios”, diz Tim Bajarin, fundador da consultoria Creative Strategies. Mas, hoje, as ambições do Google são maiores que isso — a companhia também vem, aos poucos, aprendendo a vender produtos diretamente a empresas e consumidores. O Google incomoda a Microsoft num de seus mercados mais importantes: a venda de programas para empresas. Mais de 2 milhões de clientes já contrataram seus serviços. E, em julho, o Google obteve uma vitória ao conseguir a autorização para vender ao governo americano. Sua expectativa é que esse negócio, hoje ainda pequeno, gere bilhões de dólares em receitas no futuro. O site de livros eletrônicos Google Editions é outra forma encontrada para ganhar dinheiro fora do mercado de publicidade. Estima-se que o novo site terá milhões de títulos disponíveis já em seu lançamento, previsto para acontecer até o fim do ano.

Enquanto ataca em tantas frentes novas, porém, o Google é obrigado — talvez pela primeira vez — a se defender de um poderoso adversário em seu espaço vital, a internet. Trata-se do Facebook, rede social fundada por Mark Zuckerberg. O crescimento da empresa, fundada em 2004, é o maior fenômeno da internet desde que Sergey Brin e Larry Page criaram seu mecanismo de busca. Em 2010, o Facebook ultrapassou a marca dos 500 milhões de usuários, e sua participação no mercado americano de internet superou a do Google. A rivalidade entre as duas empresas vem crescendo na mesma velocidade. “Eles não representam o futuro da tecnologia, de forma alguma”, disse um executivo do Facebook à revista Wired. “Não há como comparar as duas empresas.” Não satisfeito em contratar executivos do rival, Zuckerberg foi buscar no Google até mesmo seu chef de cozinha.


A hipertrofia do Facebook cria inúmeras dificuldades para o Google. A mais óbvia é o nascimento de um poderoso ímã para anunciantes na internet, já que nenhuma empresa conhecerá tão a fundo os gostos e os hábitos de seus usuários quanto o Facebook. Outro problema, talvez mais grave, é o fato de a expansão do Facebook criar um enorme espaço na internet onde a busca do Google não chega. “Se as informações do site que mais cresce no mundo não estão ao alcance do Google, então, sua capacidade de servir como o mecanismo de busca definitivo pode estar em risco”, escreve o jornalista David Kirkpatrick no recém-lançado livro The Facebook Effect (“O efeito Facebook”, numa tradução livre). Diante dessa ameaça, o Google prepara o lançamento de um concorrente para o Facebook. Até agora, pouco se sabe sobre o projeto. Segundo uma reportagem recente do jornal The Wall Street Journal, Schmidt vem negociando com as líderes do mercado de jogos eletrônicos para produzir conteúdo para o novo site. “Não queremos criar outro Facebook”, disse Schmidt a EXAME. “Mas recomendo que fiquem de olho nessa área.”

Não é competição demais para uma empresa só? O Google pode fazer celulares melhores que os da Apple, vender mais livros que a Amazon, produzir programas melhores que os da Microsoft, ser mais popular que o Facebook — e, ao mesmo tempo, defender sua supremacia no mercado de busca do constante ataque de empresas como a Microsoft? Schmidt gosta de dizer que a diferença do Google é sua maneira inovadora de entrar em cada mercado. Mas nem sempre esse jeitão faz sucesso. O mercado de redes sociais é um exemplo já clássico. O site Orkut emplacou no Brasil e na Índia, mas foi um fiasco no resto do mundo, assim como as outras tentativas de ganhar espaço nesse segmento.

Há quem veja na arrogância o calcanhar de aquiles do Google. No início do ano, ao lançar seu celular Nexus One, a empresa prometeu transformar o mercado ao vender os aparelhos diretamente aos consumidores, sem o intermédio das operadoras. Deu tão errado que o projeto de venda direta foi suspenso poucos meses depois. “Tentamos fazer diferente e, quando dá errado, desistimos, sem problemas”, diz Schmidt. “Mas temos tanto dinheiro que não faz sentido não arriscar.”


Não bastassem todas essas brigas, o Google tem enfrentado outro tipo de adversário em sua busca por crescimento: governos. A briga com o Partido Comunista Chinês em torno da censura à internet impede o crescimento da empresa no maior mercado de internet do mundo. Na Europa, as dores de cabeça do Google têm origem diferente: sua expansão é vista como uma constante ameaça à privacidade. O projeto Street View, no qual câmeras do Google fotografam ruas, lojas e casas, está sendo investigado em países como Alemanha, Espanha e República Checa por violação de privacidade. Em fevereiro, a Justiça italiana condenou três funcionários do Google pela exibição de um vídeo que mostrava um portador de síndrome de Down sendo molestado por adolescentes. Depois disso, o governo Silvio Berlusconi fez uma campanha para regular sites de vídeo como o YouTube, do Google — que classificou a investida de “séria ameaça à internet”.

Ao mesmo tempo em que é pressionada por investidores a acelerar seu crescimento, a empresa tem de lutar contra a ideia de que já é poderosa demais — e que o governo americano deveria intervir para diminuir esse poder. Em julho, um editorial do jornal The New York Times defendeu que os reguladores estudassem uma maneira de controlar o Google. O jornal repete uma preocupação de concorrentes: a empresa, que domina dois terços do mercado, mostra os melhores resultados para cada busca ou aqueles que refletem seus interesses comerciais? Essa polêmica traz problemas concretos.

A aprovação de grandes aquisições será cada vez mais difícil, por exemplo. A compra da empresa de publicidade móvel Admob, que custou 750 milhões de dólares, levou quase seis meses até ser aprovada, em maio. Em resposta a esse temor, os executivos do Google costumam dizer que a empresa tem um grande incentivo para fazer as coisas certas: é um bom negócio. Os concorrentes, afinal, estão a um clique de distância, e os consumidores fugirão caso o Google meta os pés pelas mãos. As investidas mais recentes são uma demonstração de que, por mais barulhenta que seja, a crescente oposição não diminuirá as ambições do Google. “Queremos ajudar o consumidor”, diz Eric Schmidt, ecoando o velho mantra do Google — aquele que Steve Jobs considera papo furado. “Ainda há muito por vir.”
 

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