Cidade de Xangai, na China: entre 2000 e 2008, o país duplicou sua demanda de energia (Getty Images/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 12 de maio de 2011 às 10h19.
A cidade que esbanja luz na foto acima não está nos Estados Unidos, na Alemanha ou em outro país rico do mundo. É Xangai, a “cabeça do dragão”, a locomotiva da China, nação que entre 2000 e 2008 viu seu consumo de energia se multiplicar por 2. O salto foi provocado por novas fábricas, obras de infraestrutura, consumidores ávidos por eletrodomésticos e carros.
Será justamente na Ásia, e pelos mesmos motivos, que a demanda por energia irá crescer — e crescer de forma voraz — nas próximas décadas. A China, desde 2009 o maior consumidor de energia do mundo, deverá continuar sua escalada no ritmo dos últimos anos. Espera-se que outros países sigam o mesmo caminho.
Até 2030, segundo estimativas da Agência Internacional de Energia, a fatia da Ásia no consumo de energia global será maior do que a da América do Norte e a da Europa juntas. Para o conjunto da humanidade, trata-se de uma conquista a comemorar. Somente na Índia, são 400 milhões de pessoas às escuras, número equivalente a duas vezes a população brasileira.
Mas, para iluminar o continente asiático — e, em menor escala, o latino-americano e o africano —, o mundo terá de aumentar a produção de energia em 30% até 2030. Trata-se de um desafio que já estava colocado, mas que assumiu proporções dramáticas desde o início do ano. Primeiro, as revoltas no Oriente Médio jogaram o preço do petróleo nas alturas.
Depois, a crise nuclear no Japão fez renascer antigos pavores. O desafio energético, hoje mais do que nunca, preocupa não apenas os países emergentes, ansiosos para seguir avançando, mas os ricos também, que terão de dividir os recursos energéticos de que dispomos hoje.
De onde virá a energia que vai iluminar nossas cidades e movimentar nossas fábricas? Ninguém tem respostas acabadas, mas alguns consensos começam a surgir. “Se não existisse o petróleo, teríamos de inventá-lo.” A frase de Robert Bryce, autor de Power Hungry — the Myths of “Green Energy” and the Real Fuels of the Future (“Fome de energia — os mitos da energia verde e os reais combustíveis do futuro”, numa tradução livre), vale também para o carvão e o gás natural.
Nos anos 70, essas três fontes dominavam a matriz do planeta. Hoje, ainda reinam — respondem por 81% da oferta. Daqui a 20 anos, a participação deve cair, mas elas ainda terão uma fatia de 75%. “O petróleo é essencial para o transporte, e o carvão é o responsável por 40% da geração de energia elétrica do mundo”, diz Lynn Orr, diretor do Instituto Precourt de Energia da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Por isso, a ideia de que podemos viver sem petróleo é simplesmente errada.
Mudanças lentas
Essa dependência explica a esperança que o mundo passou a depositar na energia nuclear na última década. Em 1973, ela representava apenas 1% da matriz. Hoje, responde por 5,8%. O colapso na usina japonesa de Fukushima, porém, trouxe à tona os fantasmas do acidente de Chernobyl, na Ucrânia.
Os especialistas não acreditam que o episódio — ainda sem desfecho — fará com que a energia resultante da fissão dos átomos seja esquecida. “O que vai haver é uma desaceleração”, afirma William Hogan, professor de política energética global da Universidade Harvard e editor do recém-publicado The Natural Resources Trap (numa tradução livre, “A armadilha dos recursos naturais”). “Cerca de 80% da eletricidade da França vem das usinas nucleares”, diz o físico José Goldemberg, um dos maiores especialistas em energia do Brasil. “Eles vão desativá-las? Claro que não.”
A China tem 14 usinas em operação, 26 em construção e outras 28 planejadas. A Índia conta com 18 em funcionamento e 11 entre as que já começaram a ser montadas e as que ainda estão no papel. O Brasil está construindo sua terceira usina, Angra 3. Pela crescente pressão da opinião pública, é provável que governos de diferentes países decidam construir usinas mais seguras e reformar as existentes, o que fará com que o custo da energia suba.
Uma das principais características do setor de energia é sua lentidão. As obras costumam ser grandes e caras. A construção de hidrelétricas e de usinas nucleares, a exploração de novos poços de petróleo e a operação de gasodutos podem demorar anos. É por isso que se costuma comparar o setor a um transatlântico — e navios desse porte não dão cavalos de pau. “É bom ninguém esperar mudanças radicais de uma hora para outra”, diz José de Sá, sócio da consultoria Bain & Company, em São Paulo.
As previsões da Agência Internacional de Energia dão força a esse argumento. A estimativa é que as renováveis, hoje responsáveis por 12% da matriz mundial, terão uma fatia de 17% em 2030. Uma evolução, sem dúvida — mas não uma revolução.
Nos países emergentes, a corrida das renováveis já começou. No ano passado, pela primeira vez, o volume total de energia eólica instalada nos países em desenvolvimento superou o dos Estados Unidos e o da Europa juntos. Só a China colocou de pé 16 000 megawatts em 2010, pouco mais de uma Itaipu, e até 2035 é o país que mais deverá investir na expansão de fontes renováveis de eletricidade — algo como 1,4 trilhão de dólares.
A Índia tem instalados 13 000 megawatts em eólicas e realizou em 2010 o primeiro leilão para incentivar também a energia solar. Em março, a chanceler alemã Angela Merkel se comprometeu a acelerar a transição para as energias limpas. Hoje, as turbinas eólicas geram 9,3% da eletricidade da Alemanha, pouco se comparado à Dinamarca, onde a fatia é de 24%.
Apesar do justificado entusiasmo pelas fontes renováveis, a grande estrela do cenário energético global nos próximos anos deverá ser o gás natural. Algumas razões explicam seu status de bola da vez. Uma delas é o apelo ambiental.
Entre os fósseis, ele é de longe o mais limpo: emite cerca de 50% menos CO2 do que o carvão e 40% menos do que o petróleo. “É o combustível ideal para a transição a uma economia de baixo carbono”, diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. Outro motivo é sua própria oferta. Diferentemente do petróleo, a trajetória do gás como commodity é recente.
Foi só no início da década de 80 que a tecnologia para que ele pudesse ser liquefeito e, assim, transportado sem o uso de gasodutos começou a ser economicamente viável. Países como a Rússia, detentora das maiores reservas do mundo, devem se beneficiar da nova onda do gás, assim como o Brasil — que pode ter no pré-sal volume suficiente para entrar nessa disputa.
No ano passado, a Petrobras ofereceu ao mercado cerca de 2 milhões de barris por dia. Para 2020, considerando o pré-sal, estima-se que o volume poderá chegar a 7 milhões. É um chute calibrado. O que se sabe hoje é que as reservas de petróleo e gás podem ser de até 44 bilhões de barris equivalentes de petróleo — mas o que o país terá de um ou do outro só poderá ser conhecido quando a exploração começar.
Há cerca de cinco anos, o desenvolvimento de uma tecnologia para extrair reservas de gás que estão aprisionadas sob o solo — o chamado gás de xisto, ou shale gas, em inglês — fez aumentar a oferta do combustível. Nos Estados Unidos, em 2000, o shale gas representava apenas 1% do abastecimento do insumo.
Hoje, ele é cerca de 25% e pode subir para 50% dentro de duas décadas. Como quase toda geração de energia, essa também tem seus críticos. A técnica para extração nos Estados Unidos inclui a injeção de agentes químicos no solo para a retirada do gás, e tem causado polêmica.
Numa cena do documentário Gasland, indicado ao Oscar neste ano, americanos que arrendaram suas terras para as empresas que exploram o shale gas mostram como a água que sai de suas torneiras literalmente pega fogo — resultado da contaminação dos lençóis freáticos. “Não acredito que a atividade será proibida, mas o risco ambiental deve encarecer bastante a exploração”, afirma Robert McNally, da consultoria Rapidan Group, especializada em energia.
No lado da oferta, não resta dúvida de que as energias sujas continuarão a ter um papel importante nas próximas décadas. No lado da demanda, existe a certeza de que os asiáticos, em particular, e os emergentes, em geral, vão ser a mola propulsora do mercado. Por uma razão simples — sempre que uma pessoa avança economicamente, seu consumo de energia se multiplica.
Em média, um americano consome cinco vezes mais do que um latino-americano, seis vezes mais do que um asiático e dez vezes mais do que um africano. À medida que as populações vão enriquecendo, crescem as demandas por habitação, transporte e energia elétrica. Esse movimento é muito mais pronunciado em países em estágios iniciais de desenvolvimento e industrialização.
De 1990 a 2008, o PIB da China cresceu como nenhum outro — a taxas médias anuais de 10%. Esse ritmo permitiu que um mundo de gente saísse da pobreza. Segundo o FMI, em 2000 a renda média dos chineses era de 945 dólares. Em 2010, atingiu 4 280 dólares. Nos últimos três anos, a frota de carros e caminhões dobrou e chegou a 40 milhões.
A perspectiva é que o ritmo das vendas continue a galope, mas o país — felizmente — continua longe do modelo americano. A China tem cerca de 30 carros para cada 1 000 habitantes — ante 700 nos Estados Unidos.
Além das ruas, as casas chinesas estão se transformando. As vendas de TVs no país somaram 35 milhões de unidades em 2010 — um crescimento de 45% em relação ao ano anterior. Dados como esse, associados ao fato de que a China é, desde 2009, o maior exportador mundial de bens manufaturados, explicam o pulo da demanda da indústria local por energia.
Em 2000, o setor fabril chinês consumia 16% da energia demandada pelo segmento industrial em escala global. Hoje, a proporção é de 28%. A Índia segue um caminho semelhante. Segundo a fabricante coreana de eletroeletrônicos LG, o país deve se transformar no seu maior mercado de aparelhos de ar-condicionado em 2012.
Hoje, o continente asiático já responde por 30% do consumo mundial de energia. Até 2030, a fatia deverá subir para 38%. Quem perderá o primeiro lugar serão os Estados Unidos, onde os aparelhos de ar-condicionado têm 90% de penetração — na Índia, eles têm só 3%.
Os Estados Unidos, aliás, hoje são vistos como exemplo a ser evitado. Em média, um europeu gasta a metade da energia consumida por um americano, embora tenha acesso ao mesmo conforto material. O principal motivo para a diferença é o urbanismo. Na Europa, as grandes cidades são, em geral, compactas e contam com uma boa rede de transporte público.
Nos Estados Unidos do pós-guerra, a classe média decidiu morar nos subúrbios e andar de um lado para o outro com seus automóveis. “Pedir a um americano para largar o carro é o mesmo que falar para ele abandonar a casa”, diz Edward Glaeser, professor de economia na Universidade Harvard e um dos maiores especialistas mundiais em urbanização. “O mundo emergente, onde muito ainda está por construir, pode evitar esse erro.”
Brasil, potência energética?
Num mundo faminto por energia, o Brasil aparece como solução, não como problema. Poucos países contam com um potencial enérgico tão magnífico. Hoje, as reservas nacionais de petróleo e gás natural somam 16,9 bilhões de barris equivalentes de petróleo, mas podem mais que dobrar até 2020.
Produzimos 90 000 megawatts de energia elétrica nas usinas hidrelétricas, mas temos um potencial de 170 000 megawatts. Isso sem falar no etanol, na biomassa de cana, na energia eólica e na solar. Mas entre ter o potencial e usá-lo há um mar de discórdias.
O grosso do que sobrou de rios a ser explorados está no Norte do país, mais precisamente na Amazônia, onde a construção das usinas é questionada pelas ONGs. “Nenhum país deve desperdiçar potencial hidrelétrico”, afirma uma das mais importantes autoridades do país no tema ambiental, que prefere não se identificar. “Mas precisamos discutir calmamente o assunto, não de maneira atabalhoada e tardia como aconteceu com a usina de Belo Monte.”
Se quisermos mesmo aproveitar nosso potencial, alguns obstáculos terão de ser superados. No momento, está faltando etanol nos postos de combustível, e a resposta do governo até agora se resume a reclamar dos usineiros e das empresas do setor. “Está faltando álcool, entre outros motivos, porque o consumo cresceu muito com o carro flex, e a produção não acompanhou”, afirma Pires. “É preciso definir uma política para o etanol, e não transformá-lo ora em herói, ora em bandido, como nos últimos anos.”
O governo podia definir também políticas claras para a eletricidade gerada da biomassa da cana. Hoje, sobra bagaço, mas faltam nas usinas caldeiras modernas de alta pressão para gerar energia e um sistema elétrico adaptado para jogá-la na rede. O resultado é que no estado de São Paulo, berço do setor sucroalcooleiro, apenas 30% das 184 usinas existentes exportam energia para a rede elétrica.
A modernização das caldeiras é necessária porque apenas 38% das que estão em operação têm menos de dez anos. Não é, porém, um processo barato. Calcula-se que ele custe até 4 milhões de reais por megawatt gerado, mas faltam linhas de financiamento. “Sabemos do significado estratégico e ambiental dessa energia e queremos encontrar uma maneira de viabilizá-la”, diz José Aníbal, secretário paulista de Energia.
Adaptar a rede para receber a energia das usinas é uma questão importante também para a indústria de energia eólica, que começa a sair do papel. O país tem 930 megawatts de capacidade instalada de energia dos ventos. É pouco. Quando os 4 000 megawatts vendidos nos últimos leilões se transformarem em realidade, e isso deve acontecer até 2013, é provável que deparem com o mesmo problema. Também não há ainda nenhuma diretriz clara para a energia fotovoltaica — que converteria a incidência de sol em eletricidade.
Por tudo isso, o Brasil corre o risco de não aproveitar o momento. Sabemos que a demanda por energia não vai parar de crescer. Sabemos também que a maioria dos países terá de fazer muito, com poucos recursos energéticos, para manter o crescimento econômico. “Aqui temos tudo: vento, sol, biomassa, rios, petróleo”, diz Goldemberg. “Infelizmente, só isso não basta.”