Revista Exame

O fim da Onda Rosa?

Oliver Stuenkel avalia que partidos de esquerda devem perder espaço na América Latina, por causa de um sentimento antigoverno muito forte na população

Oliver Stuenkel (Divulgação/Divulgação)

Oliver Stuenkel (Divulgação/Divulgação)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 24 de agosto de 2023 às 06h00.

Última atualização em 24 de agosto de 2023 às 14h50.

Nos últimos anos, a esquerda venceu eleições presidenciais em vários países da América Latina: Argentina (2019), Chile (2021), Colômbia (2022) e Brasil (2022), em um movimento apelidado de Onda Rosa, vindo após uma série de governos de direita. Para o pesquisador Oliver Stuenkel, no entanto, essa onda caminha para o fim, pois os governos da maioria desses países não estão conseguindo resolver os problemas de seus cidadãos nem lidar com um sentimento generalizado antigoverno.

“A gente já está vendo os primeiros sinais do fim da Onda Rosa com as eleições da Argentina, onde é muito provável que a direita ganhe. O pêndulo está se movendo rapidamente porque poucos governos conseguem atingir alta taxa de aprovação”, diz Stuenkel, em entrevista à EXAME.

Para ele, as coisas só devem mudar se houver um novo boom de commodities, como nos anos 2000, quando a alta do preço de mercadorias exportadas trouxe muito dinheiro para a região. Isso favoreceu avanços sociais, como a saída de milhões de pessoas da pobreza no Brasil, mas os governos não usaram essa oportunidade para investir de verdade em áreas como infraestrutura e educação, que garantem desenvolvimento mais duradouro.

Stuenkel, que é analista político e professor de relações internacionais na FGV-SP e pesquisador no Carnegie Endowment, em Washington, e no Instituto de Política Pública Global (GPPi), ​​em Berlim, destrincha na entrevista a situação de vários países, como Venezuela e Equador, e as possibilidades de futuro para a região, que pode ter uma nova chance de avançar com a transição energética.

Como vê a América Latina que sai dos anos de pandemia?

Sou hoje mais otimista em relação à região do que em qualquer momento dos últimos cinco anos. A América Latina foi a região mais afetada em termos de custo humano. Mas também teve uma série de vantagens: os bancos centrais se movimentaram antes, e a região lidou, com algumas exceções, relativamente bem com a alta da inflação que ainda acomete outras regiões. É também uma área que está longe dos principais pontos de tensão geopolítica e que vai se beneficiar muito da transição energética. E, apesar das turbulências, a democracia latino-americana mostrou-se, na maioria dos países, ainda bastante resiliente. Comparada com outras regiões, a política está relativamente previsível. Muitas vezes, o investidor se assusta com a retórica radical. Na Argentina a gente pode ver novamente a ascensão de um candidato mais radical. Continuamos com muitos problemas na Venezuela, mas em vários outros países os temores em relação ao candidato, seja ele Lula, Gustavo Petro [presidente da Colômbia], seja Gabriel Boric [presidente do Chile], não se concretizaram.

Qual é sua análise sobre a vitória de Javier Milei nas primárias argentinas? O resultado pode trazer reflexos para outros países da região? 

Isso afeta a reputação da América do Sul. Depois das grandes reformas, com o Plano Real, havia um esforço do Brasil para combater a percepção de que todas as economias latino-americanas sofrem com inflação altíssima, e a Argentina, com a Venezuela, é o país que mais preocupa do ponto de vista econômico. A ascensão de Milei é reflexo de um ceticismo mais amplo com a elite política em toda a América Latina. A região passou por dez anos de crescimento muito baixo. No caso argentino, houve anos de inflação elevada, aumento da pobreza e uma classe política com muita dificuldade para lidar com os problemas que afetam a população. Se ele ganhar e fizer um trabalho que, mesmo superficialmente, gere bons resultados, certamente pode haver outros candidatos que se inspirem nele. Isso acontece neste momento com o presidente de El Salvador, Nayib Bukele. Apesar de ter uma abordagem muito problemática no combate ao crime organizado, ele é muito popular.

Nos últimos anos, presidentes de esquerda tomaram posse em vários países da região, como Brasil, Chile e Colômbia. Como vê o desempenho desses novos governos e o aumento da alternância de poder entre esquerda e direita no continente?

Essa alternância tem a ver com polarização e dificuldade- de governar. Há um sentimento anti-establishment muito profundo. A vasta maioria dos governos latino-americanos não conseguiu se reeleger nos últimos anos. Todos os presidentes, com exceção de Lula, são de primeiro mandato. A princípio, essa tendência vai permanecer. A Onda Rosa, a ascensão de políticos de esquerda, provavelmente não será um fenômeno de muita duração. A gente já está vendo os primeiros sinais do fim da Onda Rosa com as eleições da Argentina, onde é muito provável que a direita ganhe. Acho que o próximo governo chileno será de direita. Bukele, de El Salvador, inspira líderes em várias regiões em meio à incapacidade de governos de esquerda de fazer grandes avanços, como na Bolívia. O pêndulo está se movendo rapidamente porque poucos governos conseguem atingir alta taxa de aprovação. Essa grande troca de governos só vai mudar se existir outro boom de commodities que permita aumentar os gastos sociais de forma sustentável. 

Javier Milei: candidato mais votado nas primárias argentinas foi impulsionado pela insatisfação contra o governo (ALEJANDRO PAGNI/AFP/Getty Images)

A transição energética pode gerar um novo boom de commodities na América Latina, já que a região possui reservas de minerais importantes para novas tecnologias, como o lítio?

O próximo boom está chegando. Vai haver demanda brutal por cobre, lítio, terras raras.  Não tenho dúvida de que isso vai produzir uma onda temporária de prosperidade, mas não dá para saber quando. Pode ser daqui a dois, cinco anos, mas vai chegar. A América Latina tem baixo risco geopolítico, e isso atrai grupos [de investidores]. A questão é de que forma isso pode se tornar algo sustentável. Na vasta maioria dos booms de commodities na história latino-americana, os governos não souberam investir em -áre-as que produzissem retorno social no longo prazo: infraestrutura, educação e saúde. Vai depender da sabedoria de quem estará no poder naquele momento. Com alguns paí-ses, sou mais otimista: o Chile tradicionalmente tem lidado bem com isso. Com outros, sou mais pessimista. A Guiana vai se tornar um estado extremamente rico que não tem experiência com isso. Vejo um risco elevado de algo parecido com o que aconteceu na Venezuela: um excesso de riqueza natural que produz profundas distorções políticas.

A situação na Venezuela tem sido menos debatida em nível internacional nos últimos anos. A que isso se deve?

A Venezuela, em razão de sua riqueza natural, possui uma autonomia que torna a influência brasileira muito limitada. Eu morei na Venezuela no início dos anos 2000 e era evidente que, depois da tentativa do golpe contra [Hugo] Chávez em 2002, aquilo acabaria mal. Era um modelo econômico inviável, com gasto público insustentável. Houve uma piora paulatina, de ameaça contra juízes, imprensa, universidades. O Brasil não teve como influenciar esse processo. Nem os Estados Unidos nem a China. A tentativa com Juan Guaidó foi um erro. O reconhecimento [como presidente] antes de a pessoa ter assumido o controle político gera uma situação estranha. Foi uma tentativa americana de derrubar o [presidente Nicolás] Maduro sem o uso da força, de gerar uma pressão diplomática que o enfraquecesse a ponto de ele renunciar, mas isso não aconteceu. É um governo que, por causa da riqueza natural, pode irrigar uma pequena elite econômica aliada e o comando das Forças Armadas e não precisa do apoio popular para se manter no poder, da mesma maneira que em países do Oriente Médio, onde a legitimidade vem do controle sobre os recursos, e não do voto. 

Vai ser muito difícil mudar a situação da Venezuela, e atores externos não podem liderar um processo de transição. É um Estado praticamente falido que produz todo tipo de problema, desde a incapacidade de controlar o crime organizado até a destruição ambiental. Sempre advoguei a retomada das relações com Maduro porque há questões muito práticas a resolver, como vacas não vacinadas que cruzam a fronteira para o Brasil, trazendo doenças. É preciso lidar com isso, e não tem a ver com o presidente ser de esquerda ou direita. Lula talvez tenha se deixado levar por uma vertente mais radicalizada dentro do PT, e isso tirou a legitimidade do Brasil de tentar mediar negociações entre o governo venezuelano e a oposição porque ele questionou vastos relatos sobre abusos sistemáticos cometidos pelo governo Maduro, e assim acabou legitimando sua atuação. 

O governo Lula trouxe a proposta de reforçar a presença do Brasil no cenário internacional e buscar mais protagonismo em questões globais. Como vê os primeiros resultados desse plano?

Havia uma demanda para que o Brasil estivesse de volta. Alguns países precisam se esforçar muito para ser reconhecidos e convidados para grandes cúpulas. O Brasil é praticamente um convidado automático, a não ser que seu governo tenha uma postura muito radicalizada, como foi o caso do governo passado. O presidente Lula conseguiu gerar uma expectativa enorme no fim do ano passado. Ele chegou a ser convidado para o G7, visitou um monte de capitais ao redor do mundo. Existe um pouco de excesso de diplomacia presidencial. A investida no tema da Ucrânia me parece que não gerou resultados. Era bastante previsível que seria assim, e acabou contaminando a relação do Brasil com países europeus, que passaram muito tempo conversando sobre a Ucrânia com Lula e poderiam ter falado sobre investimentos, sobre mudança climática etc. Aquilo teve um saldo negativo porque não há como negociar uma paz neste momento. A tentativa de querer tematizar isso sem chance de encerrar o conflito foi um tempo desperdiçado. 

Um candidato a presidente foi assassinado durante a campanha no Equador. O que os governos poderiam fazer para evitar novos casos assim, de ações violentas na política?

O assassinato de Fernando Villavicencio é reflexo da atuação crescente do crime transnacional na América Latina, de grupos vindos do México, mas também com participação colombiana e tentativas de expansão por parte de grupos brasileiros. 

Isso levará a confrontos sobre quem controla quais portos. É a dinâmica na fronteira com os Estados Unidos. Se fecha um lugar, aumenta a violência nos outros que se mantêm abertos porque os cartéis os disputam. O Equador faz fronteira com dois dos principais produtores de cocaína do mundo, Colômbia e Peru. Todo mundo sabia que os chefes dos cartéis iam ao Equador para lavar dinheiro. Hoje acabou atraindo pessoas que vão para controlar espaços, incluir o país nas rotas e infiltrar-se na elite da política e da segurança pública. 

Porém, seria um engano acreditar que aquilo é um problema só do Equador. A cooperação entre governos em relação a esse tema é insuficiente, por falta de confiança mútua: com a infiltração cada vez maior do crime organizado nos governos, o incentivo para um governo compartilhar informações sigilosas com outro é muito pequeno, por temor de que essas informações cheguem ao crime organizado. O crime conseguiu se consolidar em muitas partes de países do continente. O fechamento das escolas facilitou muito o recrutamento. Durante a pandemia, foi a região onde as escolas ficaram mais tempo fechadas. O crime pode ameaçar a democracia, como a gente está vendo em El Salvador. Houve um desespero tão grande que as pessoas apoiam um cara que tem uma estratégia que viola direitos básicos. E há apoio porque a situação do país se tornou intolerável.

Falando em cooperação regional, tivemos em agosto a Cúpula da Amazônia. Como avalia os resultados do encontro?

A iniciativa foi boa. É importante colocar os temas em pauta e foi um sinal de que a recuperação na América do Sul precisa ter o tema ambiental como uma das questões-chave. Agora os resultados, os compromissos, não convenceram a maioria dos especialistas. Bolívia e Venezuela não firmaram esse acordo. Esses eventos mostram que a cooperação ainda é incipiente na região, e que o Brasil não tem como ditar o comportamento dos outros países. O Brasil representa 50% do território, da população e do PIB sul-americano, mas isso não quer dizer que tenha muita influência nas decisões dos vizinhos. O Brasil precisa investir em fortalecer as relações bilaterais para, de fato, poder ter mais poder de barganha na hora de, por exemplo, convencer a Bolívia a assinar um acordo para proteção da Amazônia.

Como vê as relações da região com Estados Unidos e China?

A questão decisiva é econômica. A relação com a China vem se tornando cada vez mais importante: 30% das exportações brasileiras vão para lá. Isso é mais do que todas as exportações para os Estados Unidos e para a Europa juntas. Já Joe Biden não tem muito o que oferecer. Nos Estados Unidos, a população hoje é predominantemente protecionista, ao contrário dos anos 1990, quando queriam firmar um acordo comercial com toda a América Latina. Não há mais espaço para isso, e parece cada vez mais provável que na Europa também não exista: o acordo com o Mercosul está sendo protelado. A China estaria feliz em firmar um acordo para ampliar ainda mais a relação comercial e seus investimentos na região. Mas isso não quer dizer que os Estados Unidos deixem de ser um ator econômico relevante. Ainda é o maior investidor no Brasil. É consenso na América Latina que a melhor estratégia é uma espécie de não alinhamento. Apesar da piora significativa entre Washington e Pequim, a melhor solução para toda a região é se equilibrar a ponto de garantir relações produtivas com as duas superpotências.


(Publicidade/Exame)

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