Movida pela busca da conciliação, a chanceler evitou o colapso do euro e da União Europeia na crise de 2008 (Florian Gaertner/Photothek/Getty Images)
Carolina Riveira
Publicado em 16 de setembro de 2021 às 05h01.
Última atualização em 25 de setembro de 2021 às 11h34.
Em um evento com recém-formados em Leipzig, no leste da Alemanha, Angela Merkel frisou em 2019: “Não desprezem a conciliação”. A frase seria repetida por ela em outros discursos e, na melhor tradução do alemão, refere-se ao termo em inglês compromise, quando duas partes abrem mão de alguns pontos para chegar a um meio-termo. Poucas coisas descrevem melhor seus quase 16 anos como chanceler, que se encerram a partir das próximas eleições alemãs, em 26 de setembro. Eleita pela conservadora União Democrata-Cristã (CDU) e seu partido irmão, a União Social-Cristã (CSU), Merkel chegou ao poder em 2005, então aos 51 anos, tornando-se a primeira mulher no cargo na história do país.
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De lá para cá, os jovens hoje na casa dos 20 anos não conheceram outro líder à frente da Alemanha. De coalizão em coalizão — que incluiu três alianças com os então rivais sociais-democratas do SPD —, Merkel foi reeleita para quatro mandatos, em uma trajetória que se confunde com a própria história recente alemã. Seu governo termina com cerca de 80% da população o avaliando positivamente, enquanto no exterior a chanceler é a mais bem-vista entre os principais líderes globais, segundo sondagem da empresa de pesquisas YouGov. “Da crise do euro ao Brexit, Merkel foi uma figura de estabilidade e segurança em um mundo de muitas incertezas”, diz o cientista político alemão Kai Enno Lehmann, professor na Universidade de São Paulo.
Na mais recente dessa lista de incertezas, a Alemanha chega à eleição de setembro com a casa relativamente arrumada diante do coronavírus. A pandemia afetou em cheio os alemães, com o produto interno bruto (PIB) caindo 4,8% no ano passado. Mas a indústria forte e o acesso ao mercado europeu foram pilares importantes para a economia, que se saiu melhor do que o resto da União Europeia (UE). O desemprego também seguiu baixo, mesmo no auge da crise, e hoje figura abaixo de 4%, o que facilita a recuperação — o governo alemão, como outros países, adotou uma política de arcar com parte dos salários para evitar demissões.
Neste ano, o setor de serviços também voltou a engrenar, com mais de 60% da população totalmente vacinada, apesar dos gargalos nas entregas da AstraZeneca no começo do ano. Antes disso, a Alemanha conseguiu controlar em partes a pandemia, sobretudo no ano passado. Ao todo, foram mais de 92.000 mortes em uma população de 83 milhões de pessoas, mas a taxa foi muito menor do que a média europeia, ou de potências vizinhas como Reino Unido e França.
“A Alemanha se saiu relativamente bem na pandemia, e isso também foi resultado de uma boa liderança política”, diz Carsten Brzeski, diretor global de macro da casa de análise ING, na Alemanha. “No fim, Angela Merkel foi uma extraordinária gestora de crises — em um período marcado por muitas, muitas crises”, afirma.
Nascida em 1954, ainda na Alemanha dividida, Merkel entrou de vez na política após a queda do Muro de Berlim, em 1989. Com uma postura pragmática, galgou seu espaço em um tempo em que havia pouca abertura às mulheres. A chanceler nunca fez dos costumes sua plataforma, embora tenha sido favorável a pautas como o casamento homoafetivo e a licença-paternidade, muitas vezes indo contra a base de seu partido cristão.
Foi só no começo de setembro, no entanto, prestes a deixar o cargo, que disse pela primeira vez ser, sim, feminista — “todos nós deveríamos ser”, completou, após anos fugindo da pergunta. Analistas apontam que a presença de Merkel abriu caminho para uma geração de políticas que viriam a seguir, de Jacinda Ardern, na Nova Zelândia, a Ana Brnabić, na Sérvia. Mas seus posicionamentos são por vezes complexos de classificar, e não por acaso.
“Os alemães parecem gostar de partidos e governos de centro. E Merkel posicionou a CDU o mais perto possível do centro, o que às vezes os levou até um pouco para a esquerda”, diz Eric Langenbacher, do Departamento de Governo da Universidade Georgetown, nos Estados Unidos, e coautor do livro A Política Alemã (2017).
Na eterna busca pelo meio-termo, a Alemanha da era Merkel optou por poucas mudanças estruturais, em uma estratégia ora lida como um necessário pragmatismo, ora como inação. Entre os críticos e jovens, a chanceler ganhou um verbo em alemão — merkeln —, usado de forma pejorativa para descrever certa procrastinação nas decisões mais difíceis. Em outro espectro, em parte por precisar do apoio dos sociais-democratas, seu governo muitas vezes foi palco de decisões que irritaram aliados conservadores.
Dois momentos são marcantes nas raras brigas que Merkel escolheu comprar: após a Primavera Árabe e as guerras que se instalaram no norte da África, a Alemanha aceitou 1 milhão de refugiados, a maioria síria. O episódio se tornaria a principal pauta da extrema-direita alemã, que chegaria ao Parlamento pela primeira vez em 2017 com o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), criado por dissidentes ultraconservadores da CDU.
Anos antes, com o desastre de Fukushima no Japão, em 2011, o governo Merkel também bancou o plano de encerrar gradualmente o programa nuclear alemão, em decisão contestada por empresas do setor e que foi parar na Justiça. “Embora conhecida por buscar consensos, nesses casos Merkel tomou decisões ousadas e chamou a responsabilidade, arcando com um alto custo político. São momentos em que alguns de seus valores ficaram claros”, diz Timo Klein, especializado em Europa Ocidental na consultoria IHS Markit.
Ao longo dos anos, Merkel e a Alemanha também foram cruciais em negociações como o plano europeu de 750 bilhões de euros para socorro na pandemia, o complexo acordo para a saída do Reino Unido da União Europeia ou as sanções à Rússia em 2014 pela anexação da Crimeia. Mas, ao elencarem o momento mais marcante do governo, dez entre dez analistas citam mesmo a crise econômica da década passada, que quase levou a Zona do Euro ao colapso.
Com o atual formato desde 1993, a União Europeia nunca havia sido tão testada como no pós-crise de 2008. Países da chamada “periferia da Europa”, como Grécia, Portugal e Espanha, quase deram calote na dívida pública, e houve a possibilidade real de deixarem a União Europeia. Costurada majoritariamente pela Alemanha de Merkel, a saída envolveu empréstimos bilionários do Fundo Monetário Internacional e da UE (liderada por bancos alemães), em troca de medidas de austeridade que colocassem as contas em ordem.
Deu certo, e a União Europeia como se conhece sobreviveu. Mas uma crítica recorrente é que, ao impor cortes em aposentadorias e programas sociais, Merkel tenha privilegiado os bancos alemães em detrimento da população nos países afetados. Dentro da própria Alemanha, a estratégia foi criticada pela oposição, que argumentou que a conta da crise não foi paga pelos mais ricos, e que a austeridade barrou o desenvolvimento alemão.
Defensores do governo, por sua vez, afirmam que essa era a única estratégia possível e que a Alemanha também arcou com custos altos para tirar a Europa do buraco. Naquele período, Merkel usou com frequência o termo alternativlos (“sem alternativa”, na tradução do alemão). “Há todo um debate sobre essa escolha de palavras, se é democrático dizer que não há opção, mas eu acredito que ela estava certa”, diz o cientista político Michael Borchard, diretor na fundação alemã Konrad Adenauer.
Tudo somado, Merkel ficará na história como a chanceler que salvou o euro e a unidade europeia, mesmo com as discussões sobre se isso poderia ter sido feito de outra forma. A recuperação da última década é descrita por economistas como o “segundo milagre” alemão — o primeiro foi a retomada pós-Segunda Guerra Mundial.
“Em 2010, a visão de muitos era que, se o euro se enfraquece, a Europa se enfraquece. Merkel tinha uma convicção muito forte nessa linha e conseguiu acordos quase no limite do que era possível”, diz Borchard.
Apesar do consenso de que Merkel deixa um legado importante à Alemanha, mesmo os admiradores de seu governo admitem que, passada mais de uma década, é hora também de repensar os rumos. O sinal de alerta ficou claro como nunca no verão europeu, após as trágicas enchentes na região norte do país, que deixaram pelo menos 117 mortos. O episódio se tornou decisivo na disputa eleitoral.
O candidato do partido de Merkel, Armin Laschet, é também governador da Renânia do Norte-Vestfália, uma das regiões mais afetadas. Além de Laschet não ter conseguido empolgar na campanha eleitoral, seu pior momento veio quando foi fotografado rindo em um local devastado pelas enchentes.
Pegou mal, e as intenções de voto da CDU despencaram (veja os principais candidatos no quadro da pág. 77). Já os sociais-democratas do SPD, sem Merkel como rival, têm a maior chance em anos de voltar ao comando do país sob a liderança de Olaf Scholz, político experiente e atual ministro das Finanças.
Entre os erros da CDU, a campanha sem gafes de Scholz e algum desejo de mudança da população, o SPD encabeçava as pesquisas até o fechamento desta edição. Os sociais-democratas prometem medidas como taxações maiores aos ricos e combate à desigualdade social. Uma vitória do partido poderia levar a Alemanha a uma guinada à esquerda, ainda que de forma moderada, uma vez que o vencedor precisará negociar uma coalizão que poderá incluir legendas como os liberais do FDP ou a própria CDU.
Com a crise climática entrando no cardápio de todos os partidos, os principais definidores da eleição poderão ser também os Verdes, que caminham para saltar de 9% para até 20% dos votos e ser cortejados a participar da coalizão governista. Merkel prometeu que a Alemanha zerará as emissões de carbono até 2045, mas os Verdes tendem a pressionar por mudanças mais profundas.
“Há uma visão geral de que o statu quo em muitos temas não funciona mais, e que políticas transformacionais são necessárias”, afirma Constanze Stelzenmüller, do instituto de pesquisa Brookings. “Está menos claro, no entanto, se os eleitores estão dispostos a pagar o preço por isso”, diz. Um paradoxo é na transição energética: quase metade da matriz alemã ainda é não renovável, e um desafio aos políticos progressistas será encorajar o desuso de fontes poluentes sem encarecer o custo de vida dos mais pobres.
Mas, seja qual for a coalizão formada, economistas concordam que o futuro governo na Alemanha terá de lidar com frentes que Merkel não priorizou, como a digitalização da economia. A indústria alemã também tem perdido espaço no mercado externo para a produção da Ásia, sobretudo da China. “A Alemanha está inadequadamente preparada para o futuro não só em energia mas também em outros setores da economia”, escreveu em relatório sobre o legado dos governos Merkel o Institute for Economic Research, sediado em Munique.
A indústria automotiva, uma das estrelas alemãs, virou um símbolo desses desafios depois de a Volkswagen ser descoberta em 2015 fraudando testes de poluentes, em um dos maiores escândalos da história da empresa. “O escândalo da Volkswagen acordou a opinião pública — e os líderes em Berlim — para os riscos de se agarrar às vantagens nos mercados mais antigos e não investir em novas tecnologias”, diz Naz Masraff, diretora para a Europa da consultoria Eurasia.
Para o Brasil, a má notícia é que as preocupações ambientais crescentes deverão fazer com que o acordo entre Mercosul e União Europeia siga estacionado. O tratado de livre-comércio foi fechado em 2019, mas ainda precisa ser ratificado pelos 27 parlamentos da UE, onde há interesses diversos, incluindo lobby do agro europeu. “O Mercosul é uma questão absolutamente secundária na Europa, e não há sinalização de nenhum candidato alemão de que a ratificação será prioridade”, diz o professor Tullo Vigevani, da Universidade Estadual Paulista.
Na França, Emmanuel Macron deve ser reeleito no ano que vem e, sem Merkel, será o veterano da sala nas decisões da União Europeia. A depender do cenário, pressões ambientais e regulatórias sobre empresas brasileiras poderão aumentar, diz Vigevani.
No restante das relações internacionais, frente em que Merkel teve destaque em seus mandatos, o papel da Alemanha e da UE na ordem global é também cheio de incógnitas, às quais o futuro governo terá de responder. O ex-presidente americano Donald Trump — com quem Merkel teve uma relação pouco harmoniosa — vinha pressionando a Alemanha a aumentar seu gasto em defesa de 1,3% para 4% dentro da Otan, a aliança militar do Ocidente.
O presidente Joe Biden diz que a Otan é vital e que quer se reaproximar dos aliados, mas tende a participar menos dos conflitos internacionais, como mostrou a criticada operação de saída do Afeganistão, com europeus tendo de evacuar embaixadas às pressas. Um aumento da instabilidade na região e uma nova crise de refugiados é tudo de que um novo chanceler alemão menos precisa. O sucessor de Merkel terá ainda de encontrar um equilíbrio para a relação com a China, a maior parceira comercial da Alemanha, com 213 bilhões de euros transacionados.
Os europeus têm tentado uma postura independente na guerra comercial com os Estados Unidos, mas Merkel é criticada por parte dos progressistas ao não tomar posições mais duras contra Pequim. A relação com a Hungria de Viktor Orbán, considerada por muitos a “primeira ditadura na União Europeia”, caminha em dilema parecido. Nesse cenário, uma boa notícia: as pesquisas indicam que dentro da Alemanha o partido de extrema-direita (AfD, hoje com 87 cadeiras) não deve ampliar seu peso.
Os desafios são inúmeros, e há debates sobre quanto o governo Merkel poderia ter ajudado a amenizá-los mais cedo. Mas por todas as óticas, quando for às urnas em 26 de setembro, a Alemanha encerrará um capítulo marcante de sua história. Angela Merkel assumiu um país unificado fazia menos de 15 anos, garantiu seu crescimento econômico e sua transição para as primeiras décadas do século 21 com maestria.
Com seu sucesso, trouxe um horizonte à própria democracia ocidental, que, independentemente dos posicionamentos políticos, vê na Alemanha de Merkel um modelo a ser seguido em um planeta em crise. “A Alemanha é hoje mais poderosa e admirada do que nunca — e até ganhou outra Copa do Mundo”, brinca Langenbacher, da Georgetown. Após anos do esforço de Merkel pela conciliação, a Alemanha colhe os frutos, mas precisa escolher o projeto que a levará a uma nova era.