Donald Trump no lançamento oficial de sua pré-campanha para 2020: o crescimento econômico e o baixo desemprego jogam a seu favor (Mandel Ngan/AFP)
David Cohen
Publicado em 4 de julho de 2019 às 05h30.
Última atualização em 8 de julho de 2019 às 15h07.
Quando a seleção brasileira de futebol de 1982 perdeu para o time da Itália, numa partida que passou para a história como “o desastre do Sarriá”, em alusão ao estádio na cidade espanhola de Barcelona, era comum ouvirmos de comentaristas que, se aquela seleção com Zico, Sócrates, Falcão e Cerezo jogasse dez vezes contra aquela Itália de Paolo Rossi e Gentile, ganharia nove. O fato é que não houve dez jogos. Não houve nem mesmo um segundo jogo. Mas o Partido Democrata dos Estados Unidos, que em 2016 sofreu uma derrota tão dolorosa quanto aquela do Brasil, quando sua candidata era franca favorita, terá em novembro do ano que vem uma segunda chance. Curiosamente, quanto mais se aproxima a data do jogo, menos analistas acreditam que uma segunda partida seria favas contadas para os democratas.
Para começar, o adversário ficou mais forte. Não só porque candidatos à reeleição são normalmente difíceis de derrotar, e desde os anos 80 só um presidente americano não se reelegeu (George Bush pai), mas também porque a economia do país se mantém em alta, pelo menos até agora. Seguindo uma recuperação que começou no governo Barack Obama, o produto interno bruto do primeiro trimestre cresceu a uma taxa anualizada de 3%, a maior expansão em dez anos. Em maio, o desemprego recuou para 3,6%, a menor taxa desde 1969, com a criação de 263.000 postos de trabalho. “Com a economia do país em crescimento e um discurso conservador que agrada a boa parte do eleitorado americano, Trump larga como o favorito”, diz Carlos Gustavo Poggio Teixeira, professor no curso de relações internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado e coordenador do Núcleo de Estudos sobre a Política Externa dos Estados Unidos.
Sempre pode haver uma reviravolta, e a guerra comercial que Trump ensaia com a China pode cancelar os efeitos positivos do corte de impostos que seu governo aplicou. Contar com isso, porém, seria muito arriscado. O melhor mesmo seria o Partido Democrata ter, para enfrentar um Trump fortalecido, um candidato mais empolgante do que teve na última disputa. Não deveria ser tão difícil: Hillary Clinton tinha muitos pontos fracos (como uma imagem de arrogância e conduta suspeita) e mesmo assim venceu o voto popular — só não se tornou presidente porque Trump teve votos em lugares mais estratégicos.
Pois esse é o segundo problema dos democratas. Não está fácil achar um candidato empolgante. Repare: nos Estados Unidos, não basta um candidato ser melhor do que o adversário. Como o voto não é obrigatório, é preciso vencer a inércia dos eleitores. Especialmente dos mais pobres, que costumam trabalhar mais longe do lugar em que votam. Para os democratas, mais identificados com a defesa das minorias, isso pesa ainda mais.
Até o final de junho, esse problema parecia pelo menos encaminhado. O ex-vice-presidente do governo Obama, Joe Biden, era tido como uma aposta segura para retomar as rédeas do Poder Executivo. Sim, ele é um senhor de quase 77 anos. Mas tem grande capital político e é de centro, a vertente que costuma somar os votos da esquerda (afinal, é do Partido Democrata) com os de eleitores mais tradicionais, que temem aventuras em um sistema que produz tanta riqueza. Nesse caso, teria ainda boa chance de angariar votos de republicanos que torcem o nariz para os maus modos e as tendências autoritárias de Trump. É isso o que indicam as pesquisas eleitorais. Está certo que as pesquisas também indicavam a vitória de Hillary, com folgada margem, mas elas são a única pista que se tem no momento.
E aí veio o primeiro debate entre os pré-candidatos democratas. Com um recorde de 24 postulantes, o evento foi dividido em duas noites, com dez debatedores em cada uma (e quatro ficaram de fora). A audiência da rede NBC e Telemundo também foi recorde: 18 milhões de espectadores, quase 20% mais do que no debate de 2015. Foi então que o mito do favoritismo de Biden começou a ruir. Numa intervenção bem mais agressiva do que se esperava, a senadora da Califórnia Kamala Harris, uma ex-promotora descendente de jamaicanos e indianos, questionou Biden sobre seu apoio, nos anos 70, a medidas contra o busing, uma determinação da Justiça americana de transportar crianças negras e hispânicas para estudar em escolas de comunidades brancas, e assim quebrar o segregacionismo no país. A discussão em si importa menos do que o fato de que Biden ficou atordoado com o ataque.
Nas pesquisas pós-debate, a liderança de Biden, que era de larga margem, reduziu-se muito. Uma delas, da Universidade Quinnipiac, divulgada no dia 2 de julho, deu a Biden apenas 22% das preferências, ante 20% para a própria Kamala (cuja campanha capitalizou a altercação, divulgando uma foto da senadora quando criança com os dizeres “eu era uma daquelas crianças do busing”). Atrás deles vêm a senadora Elizabeth Warren, com 14%, e o senador Bernie Sanders, com 13%. Dos demais, ninguém ficou com mais de 5%. Apenas um mês antes, a mesma universidade apontava Biden com 30% das intenções de voto e Kamala com apenas 7%.
Há pesquisas menos dramáticas para Biden. Numa delas, ele caiu de 39% para 31%, ainda bem à frente dos demais, enquanto Kamala saltou de 8% para 17%. Mais significativo do que isso, as pesquisas apontavam que 70% dos democratas acreditavam numa vitória de Biden sobre Trump; agora são 57%.
Um dos mais contundentes comen-tários sobre os efeitos do debate foi do colunista Gary Abernathy, do jornal The –Washington Post: “Biden já era. O cometa Sanders passou e se apagou em 2016. A senadora Elizabeth Warren é uma queridinha da mídia, mas soa como uma Hillary 2.0. O senador Cory Brooker e o ex-congressista Beto O’Rourke têm histrionismo e entusiasmo demais, ideias e liderança de menos. O prefeito de South Bend, Pete Buttigieg, surgiu como um prefeito de cidade pequena que é um sujeito legal. Os outros são apenas isso, os outros”. Kamala seria a única alternativa, porque não é branca, não é homem e não é velha.
Claro, Kamala Harris seria um ar de renovação indiscutível para o Partido Democrata. Mas aí está o dilema. Os democratas querem revigorar seu partido, dar-lhe um rumo mais progressista, ou querem ganhar a eleição? Essa já foi uma questão em 2015, quando Sanders se assumiu como uma opção socialista e impôs derrotas inesperadas a Hillary nas convenções estaduais de escolha do candidato. Em vez de estar resolvida, essa questão parece agora muito mais aprofundada. Não é à toa que há tantos candidatos no campo democrático. Sempre com um risco. “Políticos de um mesmo partido com posturas diferentes, como Biden e Sanders, podem tornar mais difícil a escolha do candidato e confundir o eleitor”, diz a analista política americana Lynn Vavreck, professora na Universidade da Califórnia.
É possível que, no final, os democratas escolham com mais racionalidade do que emoção. “Desta vez, não importam tanto as propostas dos candidatos, mas as chances de bater o presidente e ganhar as eleições”, diz Rubens Barbosa, ex-embaixador do Brasil em Washington. E aí Biden permanece como uma alternativa importante. Em sua campanha permanente pelas redes sociais, Trump tem batido na tecla de que o partido rival flerta cada vez mais com o socialismo e com as pautas da esquerda — e pretende liberar a imigração, enaltecer o movimento gay e, em última instância, levar o país à ruína. O discurso ecoa com seu eleitorado, mas Biden, que quando foi senador apoiou a invasão do Iraque e era simpático a pautas pró-mercado, é imune a esses argumentos.
O problema é que, se ficou atordoado num primeiro ataque de uma senadora jovem de seu próprio partido, as chances de ele enfrentar de igual para igual os debates com Trump, que costuma golpear abaixo da linha da cintura, não são lá essas coisas. Um dos outros candidatos ainda pode crescer, é claro. A campanha está apenas no começo. A senadora Warren é uma das mais consistentes. Com um tom um pouco mais moderado do que o de Sanders, ela defende tratamento humano a imigrantes, regulação de remédios genéricos e aumento de impostos sobre grandes fortunas. Beto O’Rourke, ex-roqueiro e skatista, uma das apostas para atrair o eleitorado mais jovem, já foi mais bem cotado. A senadora Amy Klobuchar, de Minnesota (onde Trump ganhou por pouco em 2016), tem fama de moderada. E Pete Buttigieg, prefeito de South Bend, em Indiana, um estado-chave nas eleições, é um político abertamente gay que serviu na Marinha. Mas um dos maiores indicadores de quem vai decolar até o ano que vem é a briga pela arrecadação de dinheiro. Sem dinheiro, não se faz campanha. E Biden ainda tem muito apoio nessa seara.