A preocupação dos especialistas é direcionada ao comportamento dos governos federal e estaduais (Andrew Milligan/Getty Images)
Thiago Lavado
Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 05h57.
Última atualização em 17 de dezembro de 2020 às 11h36.
AS PANDEMIAS INVARIAVELMENTE ACABAM. Pode parecer um conceito difícil de sintetizar diante da enxurrada que foi 2020. Mas a tão almejada chegada da vacina aponta para um caminho um pouco mais otimista em 2021. Foram mais de 200 imunizantes desenvolvidos por diferentes laboratórios e pesquisadores pelo mundo — que receberam investimentos astronômicos por parte de farmacêuticas e governos —, e agora uma dúzia deles está nas fases finais de testagem, e alguns começam a ser aplicados em caráter emergencial.
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É notório que o desenvolvimento rápido de uma vacina contra a covid-19 foi parte de uma resposta acelerada contra a pandemia. Dez anos de pesquisa científica e testes clínicos foram realizados em apenas dez meses. A expertise científica permitiu desenvolver vacinas de vírus inativado, como a Coronavac, do laboratório chinês Sinovac, ou vacinas de adenovírus modificado, caso da AstraZeneca em parceria com a Universidade de Oxford.
O histórico de pesquisas trouxe também a técnica do RNA mensageiro, presente na vacina do gigante farmacêutico Pfizer, aliado do laboratório alemão BioNTech, que pretende programar as proteínas do corpo humano para combater o coronavírus. É uma vacina inédita, mas fácil de produzir em grande escala, ainda que de difícil armazenagem, pois requer temperatura de -70 °C.
Se o plano seguir como o esperado, até o final de 2021 a humanidade terá produzido uma quantidade suficiente de vacinas para imunizar parte significativa da população, atingir a imunidade coletiva, diminuir os riscos de casos graves da doença, reduzir a incidência dos sintomas mais severos ou mesmo evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde ao redor do mundo. A covid-19, embora possa levar anos para desaparecer (se é que algum dia ela vai sumir completamente), ficará aos poucos em segundo plano em vez de estar no centro do palco.
Mas, apesar do desenvolvimento acelerado, o ano de 2021 impõe novos desafios para a medicina, os governos e as empresas, que agora precisam encarar como distribuir e aplicar os imunizantes enquanto lutam contra a pandemia — afinal, a segunda onda da doença no Hemisfério Norte e o crescimento de novos casos no Brasil apontam que o combate ao coronavírus ainda deve levar meses, senão o ano todo.
Entender como será a distribuição é crucial. Uma análise feita pela Universidade Northeastern aponta que, se 2 bilhões de doses de vacinas com eficácia acima de 80% forem distribuídas aos 50 países mais ricos, serão prevenidas 33% das mortes. Mas, se as mesmas doses forem destinadas a todos os países proporcionalmente de acordo com a população, a imunização poderá salvar quase duas vezes mais pessoas, com 61% das mortes evitadas.
É bem provável que a corrida pelas vacinas incorra em problemas diplomáticos. Os Estados Unidos já reservaram 1 bilhão de doses para seus 328 milhões de habitantes (algumas versões dos imunizantes requerem duas doses). Outras nações, como Japão, Reino Unido e Canadá, seguem caminhos semelhantes. Há iniciativas que buscam contornar a preferência dos países ricos e negociar doses para as nações mais pobres, a fim de garantir que uma parcela maior da população seja imunizada e mais vidas possam ser salvas.
A Gavi Alliance, que trabalha com distribuição de vacinas em países em desenvolvimento, em parceria com a Fundação Bill e Melinda Gates, desenvolveu a iniciativa Covax Facility para garantir o acesso global às vacinas e conta com o apoio da Unicef, da Organização Mundial da Saúde e de mais de 180 países, incluindo o Brasil. A meta é fornecer 2 bilhões de doses aos países participantes, sendo 92 nações de renda baixa e média, até o final de 2021.
Infectologistas preveem que programas de imunização bem-sucedidos nos países ricos podem culminar no envio do estoque excedente de vacinas para outras regiões. Uma projeção feita pela consultoria geopolítica Eurasia dá boas chances (70%) de que os americanos compartilhem vacinas ou invistam no programa global Covax, reforçando a imagem de internacionalista do presidente eleito Joe Biden.
No Brasil sobram incertezas sobre a vacinação. O Programa Nacional de Imunização, originado em 1973, é reconhecido pela capacidade e abrangência, e o Brasil foi, durante anos, uma referência internacional. Para Rosana Richtmann, médica infectologista do Instituto Emílio Ribas, o país é sedutor para as fabricantes de vacinas: tem uma população enorme, bom histórico de aceitação das imunizações e boa cobertura vacinal. “Vislumbro um ano em que o coronavírus ainda será central, mas veremos uma diminuição progressiva da transmissibilidade, conforme vacinamos os principais grupos de risco e os profissionais de saúde”, diz.
“O primeiro semestre será de muito trabalho. Espero que a política não interfira no que tem de ser feito.” A preocupação dos especialistas é direcionada ao comportamento dos governos federal e estaduais. Com a falta de uma organização centralizada no Ministério da Saúde, há o temor da regionalização da vacina dentro do país, com diferentes articulações políticas — uma espécie de repetição do cenário externo, mas internamente.
Para o médico José David Urbaez, consultor de infectologia do Alta Diagnósticos e diretor científico da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, o manejo da pandemia e da vacinação é uma tarefa complexa. “Se todo o sistema que já temos é bem sedimentado, tem hierarquia técnica, somos capazes de levar adiante essa campanha, mas temos de entrar em sintonia de discurso”, diz.
Além de adquirir a vacina, é preciso ter recursos como seringas e agulhas, profissionais treinados e salas de vacinação equipadas. A campanha de imunização requer um trabalho extra de angariar informações: será preciso monitorar quem tomou as vacinas, quais doses, de quais lotes, quando e onde. Só assim eventuais efeitos adversos e reações não conhecidas durante os testes preliminares da fase 3 poderão ser acompanhados.
Embora o desenvolvimento tenha sido rápido e as etapas de teste acompanhadas em tempo real, a pesquisadora Elena Caride, gerente do Programa de Vacinas Virais de Bio-Manguinhos/Fiocruz, explica que os testes dos imunizantes seguem até o final de 2022 e 2023, e que a eficácia divulgada até o momento é interina, feita para implementação rápida e para frear a pandemia.
“Não sabemos se a vacina terá efeito esterilizante, que impede que uma pessoa vacinada transmita o vírus”, diz. De acordo com os especialistas, medidas como uso de máscara, distanciamento social e higienização das mãos e de objetos ainda serão realidade em 2021. “Precisamos de uma vacina com eficácia alta. Mas, se tivermos eficácia menor, a cobertura vacinal precisará ser maior. Esse balanço é crítico”, afirma.
Outra dúvida que ronda a vacinação é como será seu desempenho no longo prazo. Por definição, é impossível saber por quanto tempo a imunidade se manterá. “A vacina contra a febre amarela existe desde 1930 e sabemos que boa parte dos vacinados ainda tem anticorpos neutralizantes 40 ou 50 anos depois.
Mas foram necessários 50 anos para saber disso”, diz o infectologista Carlos Fortaleza, professor na Unesp e membro do Comitê de Contingência da Covid-19 no estado de São Paulo. “O que se sabe é que os indivíduos infectados com o Sars-CoV-2 [o vírus da covid-19] vão perdendo imunidade no decorrer dos meses. Há casos de reinfecção. São raros, mas é um alerta de que as vacinas podem não gerar imunidade permanente.”
Além disso, pouco se sabe sobre efeitos duradouros da covid-19 para quem já se recuperou. O ano começa com a vacina, mas ainda continua cercado de incertezas. Distribuir 10 bilhões de doses para 7,8 bilhões de pessoas é apenas o primeiro passo — embora bem-vindo — para o fim da pandemia.
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