Protesto na Venezuela: antes de Hugo Chávez, o país tinha uma democracia com nível igual ao da França (Carlos Garcia Rawlins/Reuters)
Raphaela Sereno
Publicado em 24 de agosto de 2017 às 05h28.
Última atualização em 24 de agosto de 2017 às 19h03.
São Paulo — As vitórias de políticas economicamente autodestrutivas em nações bem educadas batem de frente com a noção de que a racionalidade tende a prevalecer em nações democráticas, apesar da praga do voto desinformado. O Brasil, com nível educacional não tão alto assim, tem pela frente eleições em que o povo decidirá se topa ou não os custos elevados de um acerto de contas que não poderá ser adiado por muito tempo.
Dá para ter segurança de que o nosso sistema democrático colocará no Palácio do Planalto um presidente capaz de desviar o país da trilha que leva ao abismo — se é que existe esse alguém?
É claro que a população pode acertar, se pelo menos houver uma opção. No entanto, não há a menor garantia de que isso ocorra. No mundo, a boa notícia é que, sob um prisma de longo prazo, o avanço da democracia ocorreu pari passu com um aumento expressivo da prosperidade econômica no período após a Segunda Guerra Mundial.
Quando se vê bem de longe, portanto, é cedo para afirmar que os tropeços recentes nos Estados Unidos e no Reino Unido impliquem uma mudança inexorável para pior — vide a vitória do bom senso entre os franceses. Infelizmente, as evidências não são tão óbvias para o Brasil.
Uma inspeção dos dados sobre a democracia brasileira sugere que as ondas democráticas do país não podem ser associadas a maior prosperidade para a população, como nos Estados Unidos. A base de dados Polity IV, consultável livremente na internet, classifica os sistemas de governo dos países com uma nota que vai de 0, para autocracias, a 10, para democracias. Trata-se de uma forma conveniente de ‘medir’ a evolução da democracia mundo afora.
Usando essa base de dados, dividi a história recente brasileira em quatro períodos de acordo com o sistema de governo. Entre 1930 e 1945, após o golpe de Getúlio Vargas, o regime foi autoritário. A renúncia do ditador deu início a uma fase de redemocratização meio mambembe que durou até o golpe militar de 1964. A ditadura se encerrou com a eleição de Tancredo Neves em 1985 e, desde então, o país tem uma democracia aparentemente mais sólida.
Veja, na primeira parte do quadro abaixo, o nível de democracia por período. O quadro traz também dois outros indicadores para medir a ‘prosperidade’ em uma primeira aproximação: o crescimento médio da renda per capita brasileira e a relação dela com a renda americana. O intuito é captar o dinamismo da economia e a capacidade de progredir em direção à fronteira tecnológica, fatores que dependem de escolhas nem sempre muito fáceis — como a de fazer menos estádios para realizar uma Copa do Mundo e mais estradas.
É interessante observar que os ciclos de autoritarismo e democracia no Brasil não parecem ter muita relação com a capacidade de expansão da economia, pelo menos não a expansão que gostaríamos de ver. De modo geral, o crescimento econômico sobreviveu aos vaivéns políticos, mas o país não foi capaz de escapar da armadilha que tem prendido nossa renda em um patamar entre 25% e 30% da renda americana. O fato de a economia não ter deslanchado nas fases democráticas sugere que temos encontrado dificuldade em firmar um contrato pró-desenvolvimento no sentido estrito usado aqui.
Chama a atenção que o período democrático recente, o mais vistoso de nossa história, tem sido marcado por um desempenho econômico particularmente medíocre. É possível mostrar que, após a estabilização no início dos anos 90 e do empurrão que recebemos da China nos anos 2000, a renda por habitante chegou a bater em 30% da americana, mas por períodos breves, parecidos com o voo de galináceos. Recentemente, as barbeiragens perpetradas sob a Nova Matriz Econômica, no governo de Dilma Rousseff, trouxeram a renda novamente para perto de 25% da renda dos americanos. Dava para saber que ia dar errado, mas o povo escolheu seguir esse caminho assim mesmo.
Os números não trazem tranquilidade. É evidente que a estabilidade (e, talvez, a democracia) não sobreviverá se o país continuar crescendo como a economia americana no longo prazo. É preciso quebrar esse padrão de desenvolvimento que tem prevalecido desde 1930. O problema é que os fracassos sucessivos de governos democraticamente eleitos aumentam sensivelmente o risco de a população escolher uma saída populista que conduza a uma recaída autoritária, como na Venezuela. É comum ouvir a opinião de que estamos livres dessa sina porque ‘aqui as instituições funcionam’. Será?
Oxalá, mas as instituições também funcionavam no país de Nicolás Maduro. A força da antiga democracia venezuelana atingiu um patamar que o Brasil nunca viu. O sistema venezuelano tinha nota 9 entre os anos 1969 e 1991. De 1992 a 1998, a nota caiu para 8 e despencou após a chegada de Hugo Chávez ao poder. O fato extraordinário é que, por 23 anos, os venezuelanos experimentaram um período democrático com uma qualidade igual ao da França atual. No final dos anos 90, nossos vizinhos não eram capazes de imaginar a degradação que seria produzida pelo ‘socialismo do século 21’ nem nos piores pesadelos. Em 1969, o poder de compra dos venezuelanos equivalia a 83% da renda americana, um pouco mais do que a razão atual entre as rendas dinamarquesa e americana. Impressiona ver que um país democrático com renda comparável ao do segundo país mais feliz do mundo nos dias de hoje tenha sido capaz de chegar aonde a Venezuela chegou, sem ter sofrido uma guerra. O declínio resultou exatamente de escolhas livres dos cidadãos.
Como se deu a catástrofe? Na época em que Chávez assumiu o comando, em 1999, a renda havia caído para 38% da americana, percentual que, em termos absolutos, nem é tão ruim. No século 20, por exemplo, os brasileiros experimentaram esse mesmo gostinho apenas em 1980. O problema não é o retrato, mas o filme. A renda per capita venezuelana havia encolhido 13% entre 1969 e 1998. Com esse desempenho econômico desastroso, é fácil entender as opções — também desastrosas — que os eleitores venezuelanos fizeram. Corrigir o estrago custará caro.
Guardadas as devidas proporções, a opção dos americanos em eleger o presidente Donald Trump e a dos britânicos em votar pela saída da União Europeia também devem ser entendidas como o final de um filme desagradável para uma parcela relevante da população, como o que contaminou a Venezuela naquela época. Essa é uma lição que serve aos brasileiros e constatar que as ‘instituições estão funcionando’ não refresca muito.
A situação deplorável da economia brasileira, o desencanto com a classe política, a percepção de que as camadas mais privilegiadas não participam dos ajustes, a inacreditável sobrevivência da crença de que o governo anterior não foi o maior responsável pelo buraco em que nos metemos, a consequente falta de consenso sobre como arrumar a economia e, para coroar a lista, a nossa propensão a ouvir o canto das sereias são fatores que acendem uma luz amarela para 2018.”