Revista Exame

O BNDES é bom para quem?

O banco estatal nunca emprestou tanto. Mas boa parte de seu crédito barato, em vez de estimular a inovação, serve para grandes grupos fazerem mais do mesmo — às vezes, com resultados desastrosos. Talvez seja a hora de reler a cartilha

Campeão perdedor: mesmo com dinheiro do BNDES, a produtora de leite LBR entrou em recuperação judicial (Alexandre Battibugli/EXAME.com)

Campeão perdedor: mesmo com dinheiro do BNDES, a produtora de leite LBR entrou em recuperação judicial (Alexandre Battibugli/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 7 de março de 2013 às 06h00.

São Paulo - Por mais despossuído que se considere, todo contribuinte brasileiro é hoje dono de parte da maior empresa produtora de carne bovina do mundo. E tem uma participação na maior fábrica de celulose do planeta. E outra em uma das maiores produtoras de leite do país. O contribuinte pode até se achar um desvalido, mas ele tem dinheiro para emprestar para a maior das fabricantes mundiais de cerveja. E para uma das maiores mineradoras da Terra. E para um universo tão heterogêneo de empresas que abraça desde a Petrobras até academias de ginástica.

Essa generosidade, cuja existência a maioria dos brasileiros certamente ignora, tem sido o ofício de fé do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social nos últimos anos. O BNDES, que completou 60 anos em 2012, jamais emprestou tanto dinheiro em sua história. Desde 2008, quando as operações de financiamento e compra de participações em empresas do banco embicaram em direção às nuvens, os desembolsos somam 700 bilhões de reais.

É mais, por exemplo, que toda a riqueza gerada em um ano pela economia da Dinamarca, um país rico. Com crédito farto e barato, essa nossa Dinamarca estatal manteve a economia rodando no momento em que os efeitos da crise internacional se instalavam por aqui. Em 2009, o produto interno bruto brasileiro teve retração de 0,3% — um soluço se comparado com o recuo de 3,4% do mundo desenvolvido. Se o BNDES ajudou a evitar problemas maiores na economia durante a crise, tudo certo, então?

Infelizmente, o raciocínio não se encerra na conclusão simplista. Os resultados financeiros mais recentes da estratégia adotada pelo banco revelam um quadro desolador para os brasileiros que são seus sócios anônimos — inclusive por meio do Fundo de Amparo ao Trabalhador, uma das fontes de dinheiro barato da instituição.

Em 25 de fevereiro, ao publicar seu balanço de 2012, o BNDES mostrou queda de 10% no lucro, para 8,2 bilhões de reais. Muito pior foi o retorno de seu braço de participações em empresas, o BNDESPar — nessa divisão, o banco teve perda de 93% no retorno financeiro, que caiu de 4,3 bilhões, em 2011, para 300 milhões de reais, no ano passado. 

Ajuda do tesouro

O BNDES atual começou a tomar forma em 2007. Não por coincidência foi o ano de início da presidência de Luciano Coutinho, economista da ala dos chamados “desenvolvimentistas” — e um dos arquitetos, por exemplo, da reserva de mercado no setor de informática no governo Sarney, que manteve o acesso dos brasileiros à tecnologia restrito a produtos defasados e caros até que o mercado fosse aberto, no governo Collor.


Desde 2008, o “desenvolvimentismo” foi materializado pela forte injeção no BNDES de recursos do Tesouro Nacional. Nos últimos cinco anos, foram transferidos 330 bilhões de reais. É certo que a atuação do banco, reforçada pelo Tesouro, foi providencial para contrabalançar a estiagem de crédito. Assim, em plena crise, o BNDES pôs 63 bilhões de reais na atividade industrial (63% mais que no ano anterior). E que atividade industrial era essa?

Entre outras coisas, era a expansão do frigorífico JBS no exterior. O BNDES comprou 3,5 bilhões de reais em debêntures da companhia, posteriormente transformadas em ações, para financiar compras feitas pelo grupo nos Estados Unidos. E, assim, o despossuído contribuinte brasileiro virou coproprietário da maior produtora de carne bovina do mundo.

Do ponto de vista legal, não há impedimento para a operação. Mas, do ponto de vista de estratégia do país, a decisão mostra que o BNDES está fazendo o que não deveria. “O governo está escolhendo os setores que quer que cresçam — e, dentro desses setores, as empresas de sua preferência”, diz Márcio Garcia, professor do departamento de economia da PUC do Rio de Janeiro. “Com isso, o banco está assumindo o papel de escolher, que é justamente aquilo que os mercados sabem fazer melhor.”

O papel de um banco público de fomento, como o BNDES, é muito mais seminal do que o de fazer nascer a maior fábrica de celulose do planeta (a Eldorado, localizada em Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul — aliás, também ela controlada pelo JBS). Esses bancos devem oferecer financiamento a setores-chave da economia para os quais eventualmente não haja crédito privado ou atuar como lanceiros das grandes guina­das na economia de um país.

O KfW, banco de desenvolvimento da Alemanha, foi criado em 1948 para atuar na reconstrução do país após a Segunda Guerra Mundial. Depois, nos anos 90, o banco foi igualmente crucial nos esforços de reunificação da Alemanha pós-queda do Muro de Berlim. A Coreia do Sul criou o Korea Development Bank em 1954. Na década seguinte, o KDB começou a injetar rios de dinheiro em grandes grupos empresariais do país.

O caso coreano costuma ser citado por quem defende a estratégia atual do ­BNDES. Mas, lá, estava em gestação a reforma completa da economia coreana, um país pobre na época. Grupos como Samsung, então do setor têxtil, só recebiam financiamento se o dinheiro fosse para projetos ligados a inovação, como a de eletrônica.

Essa estratégia, somada ao fortíssimo investi­mento em educação feito na mesma época, criou um dos países mais inovadores do mundo. Os coreanos gastam hoje 3,3% do PIB em inovação — mais que o triplo do Brasil. “Temos uma visão torta do que a Coreia fez no passado”, diz o economista Mansueto Almeida, pesquisador do Insti­tuto de Pesquisa Econômica Aplicada. 


Um dos exemplos da estratégia duvidosa do BNDES é a tentativa de ungir um campeão nacional do leite. Em 2011, o BNDES aportou 700 milhões de reais na criação da LBR, uma das maiores produtoras de leite do país. A empresa, dona das marcas Parmalat, Poços de Caldas e Bom Gosto, entrou em apuros a ponto de tirar de linha um terço das marcas e fechar 11 das 31 fábricas.

A LBR recorreu à recuperação judicial em 15 de fevereiro. O banco já informou que deu baixa contábil de 865 milhões de reais, referentes ao prejuízo com o in­ves­timento frustrado. O revés soma-se a outros que levaram o BNDESPar a fazer provisão de 3,3 bilhões de reais contra perdas em 2012 — no acumulado des­de 2008, são 4,6 bilhões reservados.  

Casos como o da LBR mostram como é grande a diferença entre ser “pró-mer­cado” — ou seja, a favor da livre con­cor­rência, independentemente do potencial de cada um dos competidores — e “pró-empresa”. Ao apostar numa úni­ca empresa do setor lácteo, da qual de­tém uma fatia de 30%, o BNDES acre­­ditava que reformaria um setor inteiro.

A realidade foi mais forte do que a uto­pia. Diz o economista Steven Horwitz, professor da Universidade Saint Law­rence, de Nova York: “Se um governo beneficia uma empresa, as concorrentes gastarão tempo e dinheiro com lobby para receber o mesmo benefício dado à eleita”.

Não é só dentro dos setores benefi­cia­dos pelo dinheiro farto e barato do ­BNDES que a competição fica fora de pru­mo. Também no próprio mercado de crédito a briga fica desigual. Cada empréstimo do banco estatal a uma grande empresa é, possivelmente, uma captação a menos no mercado de títulos. Mastodontes como Vale e Ambev, duas das empresas que mais recebe­ram crédito do BNDES nos últimos anos, fi­zeram o que lhes cabia: foram atrás do dinheiro mais barato que pudessem encontrar.

Qual o efeito de empresas desse porte — com capacidade de acessar os mercados de capitais para financiar suas atividades — terem à mão dinheiro que deveria ser reservado para moderni­zar a economia brasileira? “A concorrên­cia do mercado de capitais com o BNDES é direta e desigual”, diz um executivo do setor financeiro ouvido por EXAME. “Não dá para concorrer com um empréstimo subsidiado pelo governo.”

O governo deu sinais de que não será a ama de leite do BNDES para sempre. O secretário do Tesouro, Arno Augustin, já informou que os repasses neste ano serão menores que os 55 bilhões de reais de 2012. É o início de uma mudança nas cartas do jogo? O pano de fundo, pelo menos, não parece perto de ser revisto. Internamente, os executivos não admitem que o BNDES tenha elegido setores prioritários. Os recursos, argumentam, estão acessíveis a todo tipo de empresa e setor.


Basta um bom projeto para pleitear os financiamentos. Embora pareça um critério justo, é tudo que um banco de desenvolvimento não deveria fazer. Sérgio Lazzarini, professor da escola de negócios Insper, conduziu uma pesquisa que traçou paralelos entre os desembolsos do BNDES e seu impacto sobre a decisão de investimento das empresas. Conclusão: o que as empresas querem do BNDES é seu dinheiro barato, e não apoio a projetos inovadores.

Ou seja, elas continuam fazendo mais do mesmo, só que com financiamento público. Sendo assim, como estimular a inovação — um tema caro aos bancos de desenvolvimento mundo afora — se essa exigência não existe na hora de aprovar o crédito? “O dinheiro dos bancos de fomento tem de criar algo novo na economia”, diz Lazzarini.

O BNDES jamais emprestou tanto e nunca teve gama tão ampla de setores sob seu guarda-chuva. Repete-se a pergunta: onde está o problema? A economista Alice Amsden, professora do Mas­sachusetts Institute of Technology, mor­ta em 2012, enxergou a resposta. Após pesquisar diferentes bancos de fomento, entre eles o BNDES, ela concluiu: mais que um eventual investimento ruim, o maior pecado desses bancos é não enxergar seu verdadeiro papel — e, sem alvo claro, acabam atirando crédito para todo lado. Talvez seja a principal lição a ser assimilada pelo BNDES.

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