Hamilton Lana, da Belgo: tecnologia dispensa uso da internet (Rafael Motta/Belgo Arames/Divulgação)
Jornalista colaborador
Publicado em 29 de outubro de 2024 às 06h00.
Última atualização em 30 de outubro de 2024 às 09h47.
Até 2050, a população mundial deverá aumentar cerca de 20% e atingir 9,7 bilhões de pessoas, segundo projeções das Nações Unidas, o que exigirá aumento gradual da produção alimentar, para garantir o prato de comida para toda essa gente. Ao mesmo tempo que cresce a demanda por alimentos, os produtores agropecuários são pressionados a melhorar a produtividade sem expandir áreas de plantio e pastos para os rebanhos de animais, em nome da sustentabilidade ambiental e preservação das áreas verdes nativas.
A adoção de novas tecnologias e formas de automação na era 4.0 é considerada essencial para resolver essa complexa equação alimentar e aumentar a produtividade no campo, dispensando a ocupação de novas terras e com vistas à proteção do meio ambiente. Aliar a tecnologia de ponta à produtividade rural não é algo recente. Começou a partir da segunda metade do século 20, com a chamada Revolução Verde, que levou intensa mecanização ao setor agrícola, por meio da adoção de novos maquinários, práticas de manejo e diversificados tipos de sementes.
A Revolução Verde trouxe ganhos expressivos à agroindústria, em um processo contínuo de inovação ao longo das décadas, que foi turbinado após o advento da internet. Ferramentas como drones de pulverização, tratores e irrigadores sofisticados equipados com computadores de última geração, sensores, imagens de satélite e equipamentos dotados de inteligência artificial (IA) expandem as fronteiras tecnológicas e provocam uma nova revolução no campo, desta vez com o auxílio dos algoritmos.
“Para compatibilizar a necessidade do aumento de produção com a manutenção ou redução das áreas cultivadas, podemos contar com tecnologias como a agricultura de precisão”, explica Marina Pereira, gerente de pesquisa e desenvolvimento da Associação Brasileira de Automação — GS1 Brasil. Segundo ela, a automação e a tecnologia de ponta despontam como ferramentas potencializadoras para dar tração e escala aos produtores, impulsionando a eficiência e o desempenho produtivo.
“Com a crescente demanda global por alimentos, a agropecuária enfrenta o desafio de aumentar a produtividade de forma sustentável, com menos impactos ambientais”, justifica Pereira. Ao otimizarem o uso de recursos, reduzirem o impacto ambiental e aumentarem a eficiência, explica a gerente da GS1 Brasil, tecnologias inseridas no conceito 4.0 podem contribuir para a garantia da segurança alimentar global e a preservação do meio ambiente às futuras gerações.
Estudos mostram os avanços e a disseminação da tecnologia no meio rural. Desde 2019, a GS1 Brasil acompanha, por meio do Índice Agrotech, a evolução na adoção da automação, tecnologia e digitalização dos processos de produção da agricultura e pecuária no Brasil. A pesquisa anual avalia desde o avanço na utilização de maquinários e equipamentos automatizados até a coleta e integração da informação aos sistemas de gestão.
“De 2019 a 2023, o índice de automação no campo evoluiu, de maneira geral, 29% na agricultura e 28% na pecuária”, diz Pereira. A edição mais recente do estudo foi divulgada em setembro deste ano. No total, foram ouvidos 449 representantes de propriedades rurais, de todos os portes e espalhados por todo o país.
Outro estudo divulgado no segundo semestre deste ano, elaborado pela consultoria McKinsey, mostra que os produtores brasileiros de algodão e de grãos despontam como os que mais utilizam tecnologias de ponta em suas propriedades. No caso do algodão, 90% dos que se dedicam à cultura afirmaram que utilizam pelo menos um tipo de agtech no dia a dia, como equipamentos de agricultura de alta precisão, softwares de gestão, tecnologias com sensores remotos e automação robótica.
No geral, o índice de produtores rurais brasileiros que utilizam pelo menos um modelo de tecnologia focada nas operações saltou de 42% dos entrevistados em 2022 para 55% em 2024. Aí estão incluídos produtores de grãos, café, frutas, hortaliças e cana-de-açúcar. “Os agricultores veem a melhoria da produção por meio de produtos e equipamentos inovadores como a principal oportunidade de aumentar os lucros”, diz trecho do relatório da McKinsey.
O levantamento da consultoria, em que foram ouvidos 757 agricultores no total, mostra que os esforços em agronomia digital estão concentrados, principalmente, no controle de doenças, pragas e ervas-daninhas que ameaçam as lavouras. Quase metade dos entrevistados — 43% — diz adotar atualmente algum mecanismo tecnológico na proteção de suas plantações contra os agressores naturais. Outros 23% destacam o uso da agricultura de precisão — aplicação de fertilizantes e pulverizadores — e, por fim, 22% estão conectados a programas sofisticados de gestão agrícola.
“A tecnologia e a automação são essenciais em todos os processos no campo para que haja aumento da produtividade de forma responsável e sustentável. A agricultura hoje é um setor de ponta, porque a tecnologia está presente para auxiliar os agricultores”, diz Bruno Visconti, gerente de ciência e inovação da Corteva Agriscience.
As áreas de pastagens no Brasil, explica Visconti, são caracterizadas por grande número de espécies de plantas daninhas, por causa do clima tropical. Muitas vezes, a identificação e o monitoramento das plantas invasoras no pasto são feitos manualmente, em um processo que pode ser longo e demorado, o que compromete a eficiência nas tomadas de decisões, principalmente nas regiões mais distantes e de difícil acesso por estradas e outros meios.
A Corteva desenvolveu a LandVisor, uma solução digital para identificação e classificação das espécies de ervas-daninhas existentes nos pastos brasileiros. O objetivo é o monitoramento em grande escala das áreas, por meio de uma combinação de imagens de satélite e uso de drones. Com os dados nas mãos, o pecuarista identifica com maior precisão a ervadaninha no pasto e a melhor forma de manejo para a solução do problema.
Os criadores modernos também podem, graças à tecnologia, controlar a movimentação e o comportamento de seus rebanhos bovinos na palma da mão. A Belgo Arames já investiu 3 milhões de reais na startup Instabov, que desenvolveu um sistema de monitoramento preciso por meio de um sistema de geolocalização que emite sinais de GPS para uma antena instalada na fazenda.
A partir de uma coleira instalada no pescoço do animal, o produtor controla, pelo aplicativo instalado no seu smartphone, a localização, o deslocamento e até o número de passos dados pelo boi. “A tecnologia permite que os dados sejam computados pela torre sem que os colares estejam conectados à internet, já que funcionam à base de uma bateria com durabilidade de cinco anos, e com atualizações a cada 10 minutos, o que facilita a empregabilidade no ambiente rural”, explica Hamilton Lana, diretor de produtos comerciais da Belgo Arames. Atualmente, são monitoradas 1.000 cabeças de gado pelo sistema, mas até 2025 a meta é atingir 6.000 colares acoplados em rebanhos.
De olho nas tendências do agronegócio 4.0, grandes empresas agropecuárias estão investindo pesado em tecnologia. Considerada uma das maiores produtoras de commodities do mundo, em especial no cultivo de grãos, a SLC Agrícola criou, em 2019, o seu próprio Centro de Inteligência Agrícola (CIA). No total, em cinco anos, foram investidos mais de 16,1 milhões de reais em um ambiente digital de pesquisa que atua com agricultura de precisão, sistemas integrados de gestão e tecnologias para automação.
O trabalho dos técnicos especializados do CIA é oferecer suporte tecnológico e novas ações para a melhoria da produtividade em todos os setores de atuação da companhia, que incluem, além de uma área plantada superior a 650.000 hectares (safra 2023/2024), criações de gado, produção e comércio de sementes de soja e de algodão.
“O CIA surge na transição da agricultura 3.0, que emprega a agricultura de precisão e softwares de gestão, para a agricultura 4.0, com o uso de big data, de sensores e imagens de satélite”, explica Ronei Sana, gerente de agricultura digital da SLC Agrícola. Segundo ele, o CIA colabora para a estratégia da companhia, que é buscar na inovação o game changer, ou seja, procurar a máxima eficiência de cada tecnologia, visando o uso racional de insumos e o aumento de produtividade.
“Como consequência, cria-se um círculo virtuoso de redução de custos e do impacto ambiental”, afirma Sana. Diariamente, são disponibilizados aos gestores do grupo cerca de 30 indicadores táticos e operacionais, por meio de reuniões, relatórios e metas a serem atingidas. Em cada fazenda são apresentadas, em tempo real, soluções de planejamento, controle de produção e agricultura digital.
O esforço e os investimentos tiveram bons resultados. No ano passado foram economizados 82 milhões de reais nas receitas do grupo, graças aos processos gerados a partir de projetos e mecanismos desenvolvidos pelo CIA. Para 2024, a projeção é de uma economia ainda maior: cerca de 90 milhões de reais.
Um exemplo de uso racional é a utilização de sensores em pulverizadores, que possibilitam a identificação da erva daninha e aplicam o herbicida em tempo real, evitando a aplicação na área total. “A economia do produto, nesse caso, é de 73%, em média”, diz Sana. As práticas desenvolvidas pelo CIA também contribuíram para a redução no consumo de insumos, água e cerca de 115 toneladas de embalagens, em cinco anos.
As metas da SLC para os próximos anos estão ligadas ao monitoramento das operações agrícolas, cada vez mais integradas com informações de clima, pragas, ervas daninhas, doenças, qualidade do solo e otimização operacional. “Tecnologias como inteligência artificial, o uso de drones e robôs vão proporcionar automação cada vez maior de processos e alavancar as prescrições agronômicas, tornando a agricultura cada vez mais preditiva”, explica Sana, destacando também as metas de redução de gases de efeito estufa, por meio da utilização de equipamentos elétricos, como os drones.
IA no campo
Em épocas de eventos climáticos extremos, a inteligência artificial (IA) entra em campo para auxiliar o produtor a lidar com as oscilações — e os eventuais prejuízos — resultantes das mudanças de clima. Desde 2012, o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), empresa global de ciência dedicada à cana-de-açúcar com sede em Piracicaba, no interior de São Paulo, tem direcionado esforços a programas de melhoramento genético de plantas para ambientes com condições restritivas e climas mais extremos.
“As variedades resultantes dessa tecnologia apresentam características aprimoradas, incluindo melhor performance em ambientes de estresse abiótico, como maior tolerância à seca e eficiência no uso de água e nutrientes, fatores cruciais para enfrentar os cenários futuros de mudanças climáticas”, explica César Barros, CEO do CTC.
A partir de 800 experimentos realizados ao longo de dez anos, utilizando dados meteorológicos diários e informações sobre produtividade do solo, o CTC desenvolveu uma ferramenta que utiliza a inteligência artificial para prever, em uma localidade como uma usina ou fazenda, qual variedade de cana terá melhor desempenho em um ciclo específico, seja uma safra no início, no meio, seja no final. Em um ano de El Niño intenso, por exemplo, a ferramenta avalia qual tipo de cana deve ser plantado naquele solo e períodos específicos, sem perder em produtividade durante a incidência do fenômeno climático.
Para o pesquisador do Insper Agro Global, Leandro Gilio, o Brasil tem uma tendência maior a adotar novas tecnologias, em parte pelo próprio perfil dos agricultores brasileiros, principalmente nas grandes propriedades e empresas agropecuárias. “Enquanto o perfil dos produtores de países competidores do Brasil, como Estados Unidos e Europa, passa por um processo de envelhecimento, aqui os produtores são mais jovens e com tendência maior a adotar novas tecnologias, elevando a produtividade do agro”, diz Gilio.
Head de inovação e gestão do planejamento estratégico da SLC Agrícola, Frederico Logemann confirma essa tendência. “O Brasil tem sido referência em difusão de novas tecnologias para o agro. Isso tem muito a ver com a idade média do produtor rural brasileiro, ante o americano e o europeu, e com o tamanho das propriedades, principalmente no Cerrado, onde atuamos”, diz Logemann.
Os desafios e os gargalos, entretanto, são proporcionais às grandes extensões brasileiras. Um deles é a armazenagem. Novamente, a tecnologia exerce papel fundamental. Desde a seleção das sementes até o pós-colheita, unidades de beneficiamento e armazenagem de grãos conectadas e dotadas de alta tecnologia e automação serão decisivas para melhor conservação e fluxo dos grãos.
“O grão precisa seguir padrões de temperatura e umidade para não perder valor. Sensores e softwares com IoT permitem, por exemplo, fazer uma leitura segura sobre a qualidade e o volume armazenado”, explica Bernardo Nogueira, CEO da Kepler Weber, uma das principais gestoras do país em estocagem de safras. A empresa conta com unidades de beneficiamento e armazenagem nas fazendas monitoradas e operadas à distância. Softwares permitem até 98% de precisão no controle de volume dentro de um silo.
Além de conferir maior segurança no monitoramento do volume e da qualidade dos grãos, a tecnologia reduz a necessidade de pessoas trabalhando em uma unidade armazenadora. “O software também proporciona uma visualização em 3D das unidades de armazenagem, permitindo que os clientes acompanhem, em tempo real, a distribuição e a movimentação dos grãos em cada silo”, explica Nogueira.
Conectividade
Num país de dimensões continentais e áreas de difícil acesso, a conectividade é um desafio que ainda deve ser superado para que a tecnologia de ponta deslanche de maneira efetiva por todo o território, em especial nas áreas agrícolas mais remotas. O Índice Agrotech 2024 mostra que 77% das fazendas brasileiras possuem acesso à internet, mas apenas 42% delas têm cobertura de sinal em toda a propriedade.
“É fundamental que o campo tenha uma rede de qualidade, com cobertura ampla que atenda a todas as áreas das fazendas, permitindo a conexão automática de máquinas e equipamentos com softwares de controle e gestão”, afirma Marina Pereira, da GS1 Brasil. “Quando a conexão é limitada ou de má qualidade, há obstáculos na adoção de inovações, no monitoramento em tempo real e nas tomadas de decisões com base em dados atualizados”, completa.
Para minimizar a carência de sinal, grandes empresas agropecuárias investem em parcerias com operadoras para a expansão do sinal em suas propriedades. A BrasilAgro, gigante no setor de produção de grãos, fez uma parceria com a TIM Brasil para levar conectividade 4G para mais de 45.000 hectares em duas fazendas próprias, no sul do Maranhão, a partir da cidade de São Raimundo das Mangabeiras. “Essa iniciativa não só facilitou a gestão remota das operações como também abriu caminho para a expansão de tecnologias digitais em outras áreas agrícolas de nossas operações”, diz André Guillaumon, CEO da BrasilAgro.
A Claro oferece programas para ampliar a conectividade no campo. Entre eles o Campo Conectado, cujo objetivo é oferecer soluções para diferentes perfis de produtores rurais, dos familiares aos de grande porte. Lançado no final de 2020, o projeto, desenvolvido em parceria com a John Deere, tem o propósito de levar a conectividade e a agricultura 4.0 ao campo brasileiro, com base em um modelo no qual o produtor não precisa fazer investimentos próprios em infraestrutura de telecomunicações. “Já são cerca de 7 milhões de hectares conectados por meio da colaboração, área equivalente às dimensões da Holanda e da Bélgica juntas”, explica Eduardo Polidoro, diretor de IoT da Claro.
Além das coberturas 4G e 4.5G, os produtores, segundo Polidoro, podem contar com redes CAT-M e NB-IoT (internet das coisas), que permitem habilitar novas soluções com base em sensores, para viabilizar a automação de equipamentos, com foco no conceito de fazenda conectada.
“A expansão da conectividade ainda é um desafio no agro, mas já houve muitos avanços”, diz Gilio, do Insper, que destaca outro desafio: a falta de mão de obra qualificada para lidar com os avanços tecnológicos no campo. “A demanda de mão de obra é uma carência não só no agronegócio mas em qualquer setor da economia”, diz o pesquisador, que também chama a atenção para a sustentabilidade. “O desafio hoje não é apenas aumentar a produtividade, mas conciliar esse aumento de produção com a sustentabilidade ambiental.”