Xi Jinping e Donald Trump: um embate que vai além da questão comercial (Kyodo News/Getty Images)
Filipe Serrano
Publicado em 5 de julho de 2018 às 06h12.
Última atualização em 5 de julho de 2018 às 06h12.
Quando o presidente americano, Donald Trump, disse em março que guerras comerciais são “-boas e fáceis de vencer”, a atenção dele e dos demais líderes mundiais ainda estava voltada para a decisão dos Estados Unidos de impor pesadas tarifas de importação sobre o aço e o alumínio no país. O que se viu de lá para cá foi uma escalada das ameaças dos americanos contra seus principais parceiros comerciais — incluindo os países aliados. Em primeiro lugar, o governo Trump decidiu revogar a isenção dada à União Europeia, ao México e ao Canadá sobre as tarifas de aço e alumínio. Depois, pediu a abertura de uma investigação a respeito da importação de automóveis — com o claro objetivo de atacar as montadoras europeias. E, ao mesmo tempo, decidiu impor à China uma tarifa de 25% sobre as vendas de 1.100 produtos que, só no ano passado, somaram 46 bilhões de dólares em importações americanas.
O primeiro conjunto de tarifas, sobre 34 bilhões de dólares de comércio, estava previsto para entrar em vigor no dia 6 de julho. Os líderes chineses prometeram responder na mesma medida, retaliando os Estados Unidos com tarifas sobre produtos como soja, carne bovina, petróleo e equipamentos médicos. E Trump, por fim, ameaçou impor ainda mais tarifas — aplicadas a 80% das exportações chinesas para os Estados Unidos (o que soma 400 bilhões de dólares).
Em meio à troca de farpas entre líderes das duas maiores economias mundiais, investidores e empresas se veem diante da possibilidade cada vez mais real de os Estados Unidos e a China entrarem num ciclo de imposição de tarifas e retaliações de consequências imprevisíveis — em outras palavras, uma guerra comercial. O impacto já está sendo sentido. As bolsas de valores dos países desenvolvidos fecharam o primeiro semestre com o pior desempenho desde 2010 para o período. O preço da soja nos Estados Unidos caiu para o pior nível em mais de dez anos. As máquinas de lavar — também taxadas por Trump no começo do ano — hoje estão 15% mais caras no mercado americano. Os alertas contra as medidas protecionistas vêm principalmente das empresas. A montadora General Motors enviou uma carta ao governo americano dizendo que as tarifas vão causar demissões, menos investimentos e salários mais baixos.
A Harley-Davidson, famosa fabricante de motocicletas, não quis esperar o desenrolar da disputa tarifária e decidiu mudar parte da produção para o exterior com o objetivo de contornar as tarifas impostas pela União Europeia em retaliação aos Estados Unidos. “Num mundo de cadeias produtivas globalizadas, insumos e produtos cruzam fronteiras várias vezes antes de chegar ao consumidor final. Ações que dificultam e encarecem esse fluxo penalizam produtores, comerciantes e consumidores em todo o mundo, mesmo em países que não aparecem nas manchetes. Todos saem prejudicados”, afirma Roberto Azevêdo, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (leia entrevista abaixo).
Em meio à disputa, os dois lados fazem exigências. A China pede tratamento igual para suas empresas de tecnologia nos Estados Unidos e a abertura do mercado de aviação civil a fornecedores chineses, entre outras medidas. Os Estados Unidos exigem o corte dos subsídios estatais para empresas de tecnologia e a redução do déficit comercial em 100 bilhões de dólares nos próximos 12 meses. “Pressionar a China a se abrir é legítimo. No entanto, a obsessão com o déficit comercial bilateral é equivocada. Se os Estados Unidos quiserem reduzir seu déficit comercial global, precisam economizar mais, inclusive aumentando impostos”, diz o economista David Dollar, ex-emissário do Tesouro americano para a China no governo de Barack Obama e ex-diretor do Banco Mundial para a China.
Os líderes chineses têm dado sinais de que estão dispostos a ceder e negociar. No fim de junho, a China reduziu a lista de setores em que as empresas estrangeiras são proibidas ou restringidas de operar no país, abrindo o caminho para a entrada de investidores externos nos setores financeiros, de transporte e de agricultura.
É provável que a China e os Estados Unidos cheguem a um acordo, mas, enquanto isso não ocorre, o temor é uma persistência na política de toma lá, dá cá, com sérios prejuízos para o comércio e a economia no mundo. Segundo os cálculos de economistas do banco Goldman Sachs, os países da zona do euro podem perder até 0,7% do produto interno bruto em três anos. No Brasil, o prejuízo seria de 0,3% do PIB — uma notícia ruim num momento em que as previsões de crescimento da economia para 2018 e 2019 são cada vez mais desanimadoras.
Exemplo claro é o da soja, um dos principais produtos exportados do Brasil para a China. Por causa das ameaças tarifárias, o preço da soja para contratos futuros caiu perto de 15% em junho. Na estimativa de José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil, isso equivale a uma perda de 4 bilhões de dólares nas exportações do país em 2019. “Numa guerra comercial, o minério de ferro, o petróleo e todas as commodities terão queda de preço também. Para o Brasil, é um jogo de perde-perde”, diz Castro. O recuo nos preços prejudica o Brasil justamente quando a demanda da China por produtos agropecuários cresce em ritmo acelerado. Até 2030, a previsão é de um aumento entre 11% e 13% ao ano no consumo desses produtos. Para Luiz Augusto de Castro Neves, presidente do Conselho Empresarial Brasil-China e vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, é fundamental que o Brasil invista em infraestrutra para se tornar competitivo e se proteger de eventuais choques na economia mundial. “Os chineses têm interesse de que a infraestrutura no Brasil seja modernizada porque isso torna a exportação mais barata”, afirma.
“É MAIS FÁCIL CULPAR O QUE VEM DE FORA”
Para o diretor-geral da OMC, Roberto Azevêdo, é urgente interromper
o aumento das tensões comerciais | FILIPE SERRANO
A Organização Mundial do Comércio (OMC), dirigida pelo diplomata brasileiro Roberto Azevêdo, vive uma prova de fogo com a escalada das disputas comerciais entre os Estados Unidos, a China e a Europa. Em entrevista a EXAME, ele diz que o comércio internacional não é o culpado pela perda de empregos.
Apesar dos alertas, o governo Trump está disposto a adotar tarifas contra a China. Qual é a gravidade dessa situação?
Uma escalada de medidas restritivas e de retaliações mútuas seria muito grave. Ela pode causar sérios danos à economia mundial. Mas, além do impacto econômico, devemos nos preocupar com as motivações e as consequências sistêmicas. As raízes dessas tensões comerciais são as profundas transformações trazidas pelas novas tecnologias, responsáveis por cerca de 80% dos empregos perdidos. Medidas comerciais protecionistas não vão resolver o problema — ao contrário. A piora nas condições do emprego é debitada na conta do imigrante ou do produto importado, mas na verdade é estrutural. É mais fácil culpar o que vem de fora do que aceitar que os problemas são estruturais e que são necessários ajustes importantes e demorados nas políticas nacionais.
Ainda é possível evitar uma guerra comercial?
É essencial evitar uma guerra comercial. Precisamos reverter urgentemente esse processo de escalada nas tensões. Estamos trabalhando duro em Genebra para isso — ainda que muitas vezes fora do radar da opinião pública. O ideal é sempre que as partes cheguem a soluções mutuamente satisfatórias e saudáveis para o sistema como um todo. Mas um diálogo franco e objetivo em busca de soluções nem sequer começou propriamente e será demorado.
Caso as tensões continuem durante o governo Trump, como o Brasil seria afetado?
Numa economia mundial interconectada, tensões comerciais impactam todos, mesmo aqueles não diretamente envolvidos. O Brasil não será exceção. Mas o Brasil está mais bem posicionado do que outros países menores. Conta com um mercado doméstico grande. Tem uma atividade econômica diversificada. Atua tanto no setor industrial quanto no setor agrícola e de serviços. Tem uma pauta exportadora sortida e destinada a vários e diferentes mercados. Mas, assim mesmo, haverá impacto. Uma forma de reduzi-lo seria ampliar o acesso a mercados externos, como o Mercosul tem procurado fazer, por exemplo, com a União Europeia.
O sistema multilateral de comércio vive uma crise?
É claro que medidas protecionistas e retaliações recíprocas colocam o sistema sob muita pressão. Mas, por mais paradoxal que possa parecer, elas também evidenciam o valor de contar com uma organização que promove um ambiente previsível, transparente e seguro para os negócios. É impressionante o nível de apoio que temos recebido do setor privado e de lideranças políticas de peso. E vale lembrar que essa não é a primeira vez que a OMC enfrenta uma prova de fogo. Após a crise financeira de 2008, passamos por um período muito crítico de pressões protecionistas. E nós só não tivemos uma guerra comercial naquele momento graças ao sistema multilateral de comércio.