Tigre: a cidade turística argentina triplicou o número de visitantes depois de investir em segurança | Yadid Levy/AGB Photo /
André Jankavski
Publicado em 6 de dezembro de 2018 às 05h40.
Última atualização em 6 de dezembro de 2018 às 15h04.
Segurança é prioridade em qualquer cidade. Se for um polo turístico, mais ainda — os visitantes tendem a simplesmente não aparecer caso não se sintam seguros. Essa era a ameaça que pairava nos anos 2000 sobre a cidade argentina de Tigre, conhecida por ser uma espécie de “Veneza portenha”. Localizado a 32 quilômetros de Buenos Aires, o pequeno município, que abriga aproximadamente 35.000 moradores, vinha sofrendo principalmente com sequestros e roubos de carros. A cidade era conhecida como a capital da extorsão. O turismo, praticamente sua única fonte de receita, estava sendo afetado.
Em 2007, a prefeitura de Tigre buscou soluções que não fossem muito custosas para evitar a escalada do crime. Optou pela vigilância: instalou cerca de 1.000 câmeras inteligentes pela cidade. Com uma tecnologia da fabricante japonesa de equipamentos eletrônicos NEC, as câmeras têm sensores de reconhecimento e são conectadas ao sistema da polícia. Com isso, são capazes de identificar criminosos pelo rosto, assim como placas de carros roubados. As câmeras também fazem rastreamento de humanos e de carros, contagem de pessoas e detecção na multidão. Sua instalação deu bons resultados: os sequestros ficaram mais raros; e o roubo de carros caiu 80% de lá para cá. “Só o fato de poder ser identificado já ajuda a inibir um criminoso”, diz Masazumi Takata, presidente da NEC na América Latina. A ação ajudou a fomentar o turismo, que mais do que triplicou em dez anos, para uma média de 5 milhões de visitantes ao ano.
Casos como o de Tigre, localizada em um país emergente que passa por problemas fiscais, como o Brasil, mostram que o conceito de cidade inteligente não precisa ficar restrito ao mundo rico. Ao contrário, investir na inteligência pode ser um caminho para tornar a cidade mais rica, pelo controle de suas mazelas e ineficiências. Essa foi uma das conclusões do EXAME Fórum Cidades Inteligentes, realizado em São Paulo no dia 28 de novembro. “Precisamos criar uma agenda para definir o que é a cidade inteligente brasileira e o que queremos dela”, diz Diego Conti, professor na Uninove e doutor em cidades sustentáveis pela Leuphana Universität Lüneburg, na Alemanha. “A cidade inteligente precisa ter como meta melhorar a qualidade de vida da população. A adoção de uma tecnologia mais simples já pode resultar em grandes melhorias.”
Cidades inteligentes são comumente lembradas por tecnologias de última geração, como carros autônomos, redes conectadas de energia limpa e outras maravilhas modernas. O acesso a essas coisas demanda investimento, é claro. Mas esse não é um jogo de tudo ou nada. O problema é que as cidades brasileiras estão atrasadas até nas tecnologias mais simples, como mostrou um estudo do NIC.br, órgão executor do Comitê Gestor da Internet no Brasil. O transporte é um exemplo. Somente 4% das cidades brasileiras têm semáforos inteligentes, com sensores capazes de ajustar automaticamente o tempo de sinal verde ou vermelho, dependendo do trânsito, permitindo mais fluidez ao tráfego. Nas capitais, a proporção é de 69%. Bem melhor, mas ainda insuficiente: às vezes, um único semáforo desajustado no caminho provoca engarrafamentos.
Outro ponto é a quantidade de ônibus equipados com sistemas de GPS, de localização geográfica. Por meio da tecnologia, disponível até em smartphones mais baratos, o usuário pode saber onde o ônibus está e economizar tempo de espera no ponto. Sem contar que o GPS permite a criação de uma série de dados para a cidade, como rotas mais rápidas e eficientes e identificação de pontos perigosos pelos quais os ônibus passam. Apesar das vantagens, apenas 14% dos municípios e 58% das capitais têm ônibus com GPS.
Nas tecnologias mais avançadas, o atraso é maior. Cerca de 70% dos municípios com população acima de 500.000 pessoas dispõem de algum projeto de cidade inteligente. “É assustador pensar que ainda 30% das cidades de grande porte não estejam trabalhando no tema”, disse, durante o EXAME Fórum, Américo Tristão Bernardes, diretor do Departamento de Inclusão Digital do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. No total das cidades, a situação é bem mais crítica: apenas 18% têm algum plano desse tipo.
Para mudar esse cenário, alguns gestores públicos estão buscando alternativas que tragam resultados rápidos. Um exemplo é a cidade de Santos, no litoral paulista. A prefeitura passou a digitalizar os processos para ganhar tempo nas tomadas de decisão. O plano é que, em 2019, ações judiciais e emissão de certidões e de licenças estejam digitalizados, gerando uma economia de 1,4 milhão de reais. Os resultados já começaram a aparecer. O tempo para cadastramento de fornecedores na prefeitura de Santos caiu de 119 para sete dias.
“As cidades precisam conversar entre si e entender o que as vizinhas estão fazendo para melhorar a gestão pública e a vida dos cidadãos”, diz Conti. Exemplos de fora do Brasil também podem ajudar. A companhia chinesa Huawei convidou alguns prefeitos brasileiros para visitar cidades da China e conhecer algumas tecnologias que podem ser aplicadas aqui. Uma das preferidas foi o sistema de monitoramento urbano, similar ao de Tigre. Na cidade de Shenzhen, a tecnologia apoiada em mais de 1,3 milhão de câmeras instaladas permitiu que a criminalidade caísse 25% só em 2017. Cerca de 60% dos crimes de lá são resolvidos com a ajuda da videovigilância. De 2006 para cá, houve diminuição de 86% no número de sequestros e 82% no de assaltos. Um detalhe: só 3% das câmeras foram pagas pelo governo. A maioria foi instalada por postos de combustível, lojas e hotéis.
No Brasil, há um plano-piloto da Huawei em Campinas, no interior de São Paulo. A intenção do município, além de combater a violência, é monitorar riscos ambientais, como deslizamentos de terra e alagamentos, a fim de evitar desastres. Outra cidade que se interessou pela tecnologia foi Porto Alegre. No total, a prefeitura de lá estima que haja 1.200 câmeras na cidade, contando com as de estabelecimentos comerciais — menos de 0,1% do total de Shenzhen, cuja área é quatro vezes maior do que a da capital gaúcha. Para fazer o número crescer, há diversas barreiras. “Muitos estados e prefeituras não contam com dinheiro agora”, diz Nelson Marchezan Júnior, prefeito de Porto Alegre. “Mal temos fibra óptica nas grandes cidades, e algumas regiões do Brasil não têm nem mesmo acesso à internet.”
De fato, a quantidade e a qualidade das conexões de internet no país deixam a desejar. Um estudo da empresa de internet americana Akamai mostra que a velocidade da banda larga no Brasil é de 6,4 megabits por segundo. Esse resultado deixa o país na 85a colocação no ranking feito pela companhia. No Chile, a média é de 9,3 Mbps. Na Coreia do Sul, a líder, a velocidade é de 26 Mbps. Outro estudo do NIC.br mostra que apenas 61% dos domicílios brasileiros tinham acesso à web em 2017. Isso deixa o Brasil mais distante de aproveitar o filão do mercado de cidades inteligentes, o qual, segundo a consultoria IDC, movimentará 80 bilhões de dólares neste ano em tecnologias e equipamentos. Em 2021, deverá chegar a 135 bilhões.
Mais do que o mercado potencial, a qualidade de vida da população aumenta muito com as soluções tecnológicas. De acordo com a consultoria McKinsey, uma cidade de 5 milhões de habitantes mais conectada pode diminuir em 40% a criminalidade, gastar 15% menos com saúde, economizar até 80 litros de água por cidadão ao dia e oferecer um ganho de tempo de 30 minutos diários por habitante graças a serviços mais eficientes, como agendamento de consultas de saúde pela internet e transporte público mais fluido.
O caminho para isso seria investir na tão falada internet das coisas — uma infraestrutura que habilita a conexão de “coisas” físicas e virtuais (como câmeras que se comunicam com a base de dados da polícia ou a geladeira que “percebe” que está na hora de você comprar leite e manda um recado ao seu celular avisando). Essa é a base das cidades inteligentes e uma tecnologia que gera um rápido retorno. Segundo um relatório do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o uso de tecnologias assim levaria a um ganho econômico de 27 bilhões de dólares no Brasil em 2025. Os setores que trariam maior economia seriam iluminação pública, monitoramento do tráfego em tempo real, gestão eficiente da saúde pública e redução da mortalidade por violência.
São investimentos que podem ajudar a diminuir a desigualdade. A companhia italiana Planet instalou na cearense São Gonçalo do Amarante, a 50 quilômetros de Fortaleza, a primeira “cidade inteligente social” do mundo. O projeto começou há cinco anos, em uma área de 330 hectares arrendada perto do Porto de Pecém, um dos principais do Nordeste. “Procuramos um lugar que tivesse uma economia forte e com alto déficit habitacional”, diz Susanna Marchioni, presidente no Brasil da Planet. O investimento é de 50 milhões de dólares. A estrutura inclui iluminação pública inteligente com LED, retenção de água da chuva e plantio de vegetais que aguentem o clima seco da região, além de um hub de inovação e cultura (onde há benefícios como aulas gratuitas de inglês e informática).
As casas de 45 metros quadrados começam com preço de 97.000 reais, dentro da faixa 1 de financiamento do programa Minha Casa, Minha Vida. Os moradores do condomínio, que está prestes a ser inaugurado, têm um aplicativo que dá acesso a câmeras que monitoram suas casas e espaços como parquinhos, e fornece uma programação de atividades. No futuro, diz Susanna, o app oferecerá aos moradores seguros de carro mais baratos e descontos na compra de eletrodomésticos, pelo poder de barganha que os usuários terão com fornecedores por estarem conectados numa rede. Os próximos alvos da Planet são Natal, no Rio Grande do Norte, e alguma cidade na Índia. Por melhores que sejam os resultados desse projeto, é claro que ele não vai resolver o problema do Brasil. Mas pode servir de exemplo, mostrando que não só os ricos que podem morar em lugares com facilidades de Primeiro Mundo.
Com reportagem de Naiara Bertão
Para Carlo Ratti, do MIT, as cidades devem ter o próprio modelo de inteligência | André Jankavski
O arquiteto e engenheiro italiano Carlo Ratti é um dos maiores especialistas em cidades inteligentes do mundo. Ele dirige o Senseable City Lab, ligado ao Massachusetts Institute of Technology (MIT), e também dá aula na tradicional universidade. Para Ratti, é necessário que a cidade inteligente seja vista menos como um conjunto de tecnologias e mais como uma maneira de melhorar a vida das pessoas que vivem ali. Exatamente por essa razão, não adianta imitar o que outras cidades já fizeram: cada lugar tem suas próprias necessidades.
Como você define uma cidade inteligente?
Eu vejo o conceito de cidade inteligente como um reflexo das tendências tecnológicas atuais: os espaços à nossa volta estão sendo permeados por dados digitais. A internet está se tornando uma internet das coisas, que é como se fosse uma fusão de bits com átomos. Esse processo já começou e suas manifestações estão em toda parte, da energia à gestão de resíduos, da mobilidade à distribuição de água, do planejamento urbano ao engajamento do cidadão. No entanto, prefiro usar o termo “cidade sensível”. Penso que ele demonstra melhor os benefícios sociais obtidos pela incorporação de tecnologias da internet das coisas em nossos espaços urbanos.
Quais são os melhores exemplos de cidades inteligentes?
Acho difícil determinar os melhores exemplos, porque muitas cidades estão explorando diferentes dimensões. Por exemplo, Singapura está testando projetos interessantes relacionados à mobilidade futura; Copenhague, à sustentabilidade; Boston, à participação cidadã. Milão foca a integração entre a natureza e a arquitetura, e assim por diante.
Os países emergentes, como o Brasil, podem ser tão evoluídos nessa área quanto os países desenvolvidos?
A inovação está acontecendo em todos os lugares. Pense no uso generalizado de pagamentos móveis na China. O dinheiro gasto em plataformas móveis no país é 50 vezes maior do que nos Estados Unidos. E por muitos anos se pensava que os cartões de crédito nunca decolariam na China por causa da fixação do país pelo pagamento em dinheiro. O que acabou acontecendo foi o contrário. A China se desenvolveu tanto no sistema de pagamento móvel, e de forma tão eficiente, que ficou à frente do resto do mundo. Países emergentes podem seguir o mesmo caminho.
Quais os principais desafios para os emergentes desenvolverem suas cidades de modo mais inteligente?
É difícil dizer exatamente, mas acho que um dos maiores desafios está no desenvolvimento de projetos. A tentação de “copiar e colar” modelos de cidades inteligentes que estão funcionando em outro lugar tem de acabar. Nenhuma solução serve para todos. Cada cidade tem de pensar em seu próprio modelo.
Qual é o papel dos governos na evolução desse tema?
Os governos podem usar seus fundos para desenvolver um ecossistema orgânico voltado para cidades inteligentes, de forma semelhante ao que está ocorrendo nos Estados Unidos. Isso vai além do apoio a incubadoras tradicionais. Devem ter como objetivo produzir e nutrir marcos regulatórios que permitam que as inovações prosperem. Considerando os obstáculos legais que continuamente infestam aplicativos como Uber ou Airbnb, esse nível de apoio é extremamente necessário.
No EXAME Fórum Cidades Inteligentes, em São Paulo, empresários e especialistas discutiram o potencial e os entraves dessa evolução | Fotos Flavio Santana