Amanhecer no Congresso: o Brasil é exemplo do combate à corrupção no mundo (Agência Pública/Divulgação)
Filipe Serrano
Publicado em 27 de julho de 2017 às 05h55.
Última atualização em 30 de agosto de 2017 às 17h45.
Curitiba — O dia 19 de maio de 2014 ficou marcado na memória dos procuradores da força-tarefa da Operação Lava-Jato em Curitiba. Fazia pouco mais de dois meses desde que a primeira fase da Lava-Jato havia sido deflagrada e 12 suspeitos estavam presos preventivamente — entre eles o doleiro Alberto Yousseff e Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras. Naquele momento já havia a suspeita da participação de políticos num esquema de lavagem de dinheiro.
A Polícia Federal havia interceptado trocas de mensagens entre Yousseff e os deputados André Vargas, do PT, e Luiz Argôlo, do Solidariedade. Numa estratégia de defesa, os advogados de Paulo Roberto Costa entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal questionando a competência de um tribunal de primeira instância — a 13ª Vara Federal, em Curitiba, do juiz Sergio Moro — de julgar o caso, alegando que havia suspeitos com foro privilegiado.
Naquele 19 de maio, o ministro Teori Zavascki, relator da ação (morto num acidente aéreo em 2017), autorizou que os suspeitos fossem soltos. No dia seguinte, Zavascki voltou atrás, mas manteve Paulo Roberto Costa em liberdade. A decisão ameaçava enterrar a Lava-Jato, como ocorreu com outras investigações antes dela. “Foi o momento mais difícil nos três anos e meio da operação”, diz o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, um dos principais integrantes da força-tarefa do Ministério Público Federal. “Nós corremos o risco típico de todas as ações contra a corrupção: o suspeito apostar numa solução judicial para ficar impune.” Por que isso não aconteceu? Por que, dessa vez, foi possível prender políticos e empresários, punir empresas e partidos, e revelar uma extensa rede de corrupção que alimentou o sistema político com propinas durante anos?
A explicação está num fenômeno observado em todo o mundo. As leis contra a corrupção ficaram mais duras. Os juízes estão mais rigorosos. Os procuradores têm mais meios para investigar os casos suspeitos. E a população hoje é mais bem informada e reage instantaneamente — nas redes sociais ou nas ruas — aos escândalos envolvendo figuras públicas. Na América Latina, na Europa e em algumas regiões da Ásia, essa é a nova realidade da política. Manifestações organizadas pelo mundo, como na Romênia no início de 2017 ou na Coreia do Sul em 2016 — que levou ao impeachment da presidente Park Geunhye —, são alguns dos exemplos desse novo cenário. É a reação de quem há muito tempo está descrente. Um levantamento da ONG Transparência Internacional em 103 países mostra que 65% das pessoas consideram os partidos políticos corruptos. Entre todas as instituições avaliadas eles estão na pior colocação.
A mudança estrutural que se materializa agora deu seus primeiros passos ainda no fim dos anos 70, quando os americanos aprovaram a lei conhecida pela sigla FCPA (Foreign Corrupt Practices Act), que criminaliza empresas e indivíduos nos Estados Unidos que pagam propina no exterior. Mas foi na segunda metade dos anos 90 que o combate à corrupção ganhou escala global, quando uma série de convenções internacionais foi assinada por dezenas de países, incluindo o Brasil. A primeira delas foi a convenção da Organização dos Estados Americanos em 1996, seguida por outra da OCDE em 1997 e uma terceira das Nações Unidas em 2003. Os países signatários comprometeram-se a adotar leis mais duras contra o pagamento de propina. Outra lei aprovada nos Estados Unidos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, com o objetivo de combater o financiamento a grupos terroristas e a lavagem de dinheiro, também acabou dificultando as demais transações com dinheiro ilícito.
Em um livro publicado recentemente, Jason C. Sharman, professor de relações internacionais na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, afirma que essa campanha global contra a corrupção representa a ascensão de um “regime anticleptocracia” no mundo, em que os governos estão sendo forçados a adotar práticas mais transparentes. “Nos últimos anos, muitos governos obrigaram os políticos a declarar bens, criaram agências anticorrupção e criminalizaram a lavagem de dinheiro. O que ainda está faltando hoje é o cumprimento e a fiscalização dessas regras”, diz Sharman.
De fato, todos os especialistas concordam que é mais difícil fazer que as leis sejam aplicadas do que aprová-las no Congresso. Patrick Moulette, diretor da divisão anticorrupção da OCDE, lembra que metade dos 41 países que assinaram a convenção anticorrupção da entidade jamais puniu uma única empresa ou pessoa por subornar autoridades no exterior. Na opinião dele, grandes escândalos de corrupção como os que foram revelados na Lava-Jato fazem a diferença porque aumentam o rigor no combate aos crimes. “Grandes investigações são um ponto de virada. Um exemplo é o escândalo envolvendo a multinacional alemã Siemens nos anos 2000. A empresa pagou uma multa de 1,6 bilhão de dólares e foi forçada a se comprometer a adotar práticas anticorrupção, o que levou outras companhias a fazer o mesmo”, diz.
Ainda é cedo para dizer que a Lava-Jato provocará uma reação parecida com a do caso da Siemens e mudará as práticas de empresários e políticos no Brasil. Como se viu na delação da companhia de alimentos JBS em maio, a Lava-Jato não havia sido suficiente para barrar as práticas de corrupção. Mas os sinais são positivos, para dizer o mínimo. “O Brasil deu um grande passo. Hoje, todos entendem que a impunidade não é mais a regra. Com a pressão da sociedade, isso deve ajudar o Brasil a reduzir a corrupção”, diz Roland Clarke, especialista em governança do Banco Mundial.
Do ponto de vista institucional, o Brasil fez avanços nas últimas décadas, a começar por uma maior independência do Ministério Público e da Polícia Federal, e pela criação de varas na Justiça especializadas em julgar crimes financeiros. Mudanças na legislação também foram decisivas para garantir o combate mais rigoroso aos crimes — entre elas a nova lei de lavagem de dinheiro, de 2012, a Lei Anticorrupção e a lei de combate ao crime organizado, ambas de 2013.
As três foram importantes porque definiram as bases legais para os acordos de leniência com as empresas, para as delações premiadas de investigados e também para o uso de ações controladas — o mesmo método de investigação usado na delação da JBS para flagrar a entrega de dinheiro ao ex-deputado Rodrigo Rocha Loures e ao primo do senador Aécio Neves, do PSDB. “Toda a corrupção que está sendo revelada não teria sido descoberta sem esses instrumentos de investigação. O Brasil finalmente está demonstrando uma capacidade de identificar, descobrir, revelar e punir esse tipo de crime”, diz Jorge Hage, que foi ministro da Controladoria-Geral da União (atual- Ministério da Transparência) de 2006 a 2015 e hoje é sócio da consultoria Hage, Fonseca, Suzart & Prudêncio.
É claro que não foram somente as leis e os instrumentos jurídicos que fizeram a Operação Lava-Jato avançar. A investigação também deve muito a coincidências que valem a pena ser relembradas. No caso de Paulo Roberto Costa, que abre a reportagem, o que evitou que ele continuasse solto foi uma ajuda inesperada de promotores estrangeiros. O Ministério Público da Suíça havia aberto uma investigação sobre os casos de lavagem de dinheiro descobertos no Brasil e encontrou 28 milhões de dólares depositados em contas de Paulo Roberto Costa no país. Os investigadores suíços, então, tomaram uma medida excepcional: autorizaram o Ministério Público Federal no Brasil a usar as provas imediatamente para pedir uma nova prisão contra o ex-diretor da Petrobras.
A troca de informação com a Suíça parece trivial, mas não é. Uma autorização assim costuma levar meses para sair e, segundo os investigadores, jamais foi feita com tanta rapidez quanto naquele caso. Com as novas provas, Paulo Roberto Costa foi preso novamente no dia 11 de junho de 2014, véspera da abertura da Copa do Mundo. Dois meses depois, o ex-diretor da Petrobras se tornaria o primeiro investigado pela Lava-Jato a assinar um acordo de delação premiada — hoje são 168, além de dez acordos de leniência.
No depoimento, Costa deu detalhes sobre o loteamento político das diretorias da Petrobras e sobre pagamento de propina e caixa dois a políticos, e explicou como as empreiteiras (incluindo Odebrecht, OAS e Camargo Corrêa) formaram um cartel para definir os ganhadores de licitações da estatal. Essas informações, como se sabe hoje, foram decisivas para que políticos e empresários fossem responsabilizados mais adiante. “Até aquele momento, os suspeitos achavam que conseguiriam alcançar a impunidade anulando o caso ou apresentando uma série de recursos. As delações premiadas mudaram o jogo”, diz Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba.
As delações são essenciais para dar continuidade às investigações. A cada delação, uma nova fase da operação é deflagrada. Mais provas são descobertas; e outros investigados, presos. Para reduzir a pena, alguns decidem colaborar e um novo ciclo se inicia. Na visão dos procuradores, a estratégia de fazer a investigação em fases e as delações premiadas são dois dos pilares da Lava-Jato.
Outros detalhes menos óbvios também contribuíram. O caso do mensalão teve dois reflexos na Lava-Jato. O primeiro foi a condenação do publicitário Marcos Valério a mais de 37 anos de prisão. A dura sentença serviu de alerta para os acusados da Lava-Jato. Muitos decidiram colaborar para evitar o mesmo destino de Valério. O segundo ponto é um detalhe mais técnico. Durante a investigação do mensalão, o Ministério Público Federal desenvolveu um software capaz de analisar os dados de contas bancárias e cruzar as transações financeiras.
Sem o programa, batizado de Sistema de Investigação de Movimentações Bancárias, boa parte do trabalho da Lava-Jato, anos depois do mensalão, teria de ser feito manualmente, o que emperraria a investigação. Ao todo, a operação quebrou o sigilo de mais de 1 000 contas bancárias, que trazem os dados de 26 milhões de transações num valor total de 1,5 trilhão de reais.
Fora do Brasil, a punição aos crimes de corrupção também cresceu num ritmo notável. Segundo um relatório da OCDE, de 1999 a 2014, foram revelados no mundo mais de 400 casos de corrupção internacional, nos quais mais de 260 indivíduos e 160 empresas e órgãos públicos foram investigados, denunciados e receberam algum tipo de sanção. O país mais ativo no combate a esses crimes ainda é, de longe, os Estados Unidos — o que mostra que os demais têm um longo caminho pela frente.
A boa notícia é que isso vem acontecendo. Alemanha, Coreia do Sul, Itália, Suíça, Reino Unido e França também aparecem na lista dos países que conseguiram identificar e punir os crimes (o Brasil ainda não havia punido as empresas da Lava-Jato quando o estudo foi feito). Olhando para os crimes de corrupção identificados pela OCDE, é possível identificar alguns pontos em comum entre eles. Na maioria dos casos, a propina é paga por executivos e empresários para obter contratos públicos com os governos, e em 80% deles o agente que recebe a propina é funcionário de uma estatal. Ou seja, existe uma correlação direta entre o tamanho do governo, a quantidade de gastos públicos e o número de estatais de um país com os casos de corrupção.
Para a OCDE, o resultado demonstra que os atuais controles para tornar as licitações públicas mais transparentes não têm sido suficientes para evitar os desvios de dinheiro em contratos públicos e é preciso fazer mais. “Oferecer mais ferramentas para prevenir, detectar e solucionar os crimes como corrupção, conluio e lavagem de dinheiro deve ser uma prioridade de governo”, diz o relatório. No entanto, isso é uma corrida. Os controles ficam mais restritos, mas os ladrões também encontram outras maneiras de driblá-los.
Uma pesquisa dos economistas portugueses António Afonso e João Tovar Jalles, publicada em 2015, analisou a ligação entre o tamanho do Estado, a eficiência das instituições e a atividade econômica em 140 países durante 40 anos. O resultado é que Estados inchados tendem a travar o crescimento do PIB per capita, e o efeito é pior ainda quando as instituições são fracas e o nível de corrupção é alto. Eis aí um retrato do Brasil. A novidade é que temos uma oportunidade histórica de sair dessa armadilha.