Sistema de captação de água do sistema de abastecimento Cantareira na represa de Jaguari, em Joanópolis (Paulo Whitaker/Reuters)
Da Redação
Publicado em 26 de novembro de 2014 às 09h36.
São Paulo - O ano de 2014 fez de cada paulistano um especialista em hidrologia. É o grande assunto da cidade, que acompanha, ansiosamente, o que acontece com os reservatórios que abastecem suas casas. Até o fechamento desta edição, o índice que mede a capacidade do sistema estava em 10,8% do total.
Num tema complexo e absolutamente impopular como esse, é natural que todos os envolvidos se eximam de culpa pela falta de água. A prefeitura aponta o governo estadual como responsável, o estado diz que a culpa é da natureza, o governo federal diz que não tem nada a ver com o problema.
No meio disso tudo está uma empresa que, pelo menos até o início da crise, era vista como exemplo a ser seguido pelas demais companhias estaduais de saneamento — a Sabesp. Cabe a ela operar todo o sistema de água do estado, do reservatório às torneiras. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) municipal foi criada para apurar sua responsabilidade no enrosco.
A gritaria é grande, mas a cúpula da Sabesp tem, de fato, culpa? Nas últimas semanas, EXAME ouviu dezenas de executivos, conselheiros e especialistas do setor para responder a essa pergunta. E chegou a uma série de problemas de gestão que tornaram o que já seria um problemão numa crise sem precedentes na história recente brasileira.
Tudo começa na estratégia de investimentos da Sabesp — ou melhor, na falta de uma estratégia funcional. Dinheiro
nunca foi problema. Nos últimos sete anos, a companhia lucrou quase 10 bilhões de reais.
É uma das 20 empresas mais rentáveis do país. Desse montante, distribuiu 3,4 bilhões de reais a seus acionistas — o governo estadual é dono de 50,3% das ações e, portanto, o maior beneficiado pela generosidade. Distribuir dividendos é algo esperado, até porque a lei obriga um pagamento mínimo de 25% do lucro.
Mas a Sabesp foi muito mais mão aberta do que precisava. Os dividendos distribuídos superaram 48% o mínimo legal. Nenhuma das grandes companhias de saneamento com papéis negociados na bolsa de Nova York deu retorno tão bom em dividendos quanto a Sabesp.
Diante disso, sobrou, em média, 1,7 bilhão de reais anuais para investimentos na última década. Para complicar, o dinheiro foi gasto de maneira desequilibrada. Grande parte foi destinada a atividades como aumento da base de clientes — algo ao mesmo tempo louvável do ponto de vista social, já que dá água encanada a quem não tinha, e lucrativo.
Em cinco anos, a Sabesp fez 1 milhão de novas ligações. Mas os gastos com a redução de perdas e a captação não cresceram na mesma proporção. Resultado: o desperdício em São Paulo ainda está na casa dos 36% (são 435 bilhões de litros por ano), abaixo dos 40% de oito anos atrás.
É um número melhor do que a média brasileira, mas especialistas são unânimes em afirmar que uma empresa com a saúde financeira da Sabesp poderia ir além. A mineira Copasa perde 29% da água. A Sabesp não deu entrevista.
De acordo com executivos próximos à companhia, a estratégia de investimentos reflete incentivos distorcidos. “Não há metas de eficiência, então sai mais barato perder água do que reduzir as perdas”, diz um consultor que presta serviços à Sabesp.
Segundo o estatuto da empresa, os diretores ganham bônus se fecharem cada trimestre com lucro — independentemente de qualquer tipo de indicador de eficiência e produtividade. Na paranaense Sanepar, só há pagamento extra se os indicadores operacionais melhorarem.
Após o estouro da crise, a Sabesp anunciou que vai aumentar os investimentos, especialmente em redução de perdas. A partir de 2014, vai gastar 740 milhões de reais ao ano em redução de perdas, quatro vezes a média dos últimos anos.
A crise da água em São Paulo expôs a Sabesp, que é alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito municipal. O objetivo dos vereadores é averiguar se a empresa começou um racionamento sem avisar a população e se privilegiou áreas ricas da cidade.
Em todas as declarações públicas, a presidente da empresa, Dilma Pena, e o governador do estado, Geraldo Alckmin, negam qualquer economia forçada. A companhia começou a avaliar em novembro de 2013 racionar água. Mas um estudo feito pela equipe técnica da empresa e apresentado à diretoria e ao governo do estado em fevereiro apontou que isso seria catastrófico.
A rede de distribuição, velha e com manutenção insuficiente, não suportaria um racionamento. Segundo executivos da empresa, as tubulações principais, que saem de reservas como a Cantareira, têm em média 40 anos. A rede que vai às casas chega a 100 anos de idade.
Se optasse pelo racionamento, a Sabesp precisaria interromper a distribuição de água por dois ou três dias em bairros selecionados, e religar por um dia ou um dia e meio, segundo simulações internas. Mas a tubulação do sistema não suportaria a pressão na hora de religar.
“Ia ter cano estourando em todo canto da cidade”, diz um conselheiro da Sabesp. De acordo com três executivos da companhia ouvidos por EXAME, o racionamento implicaria aumento de 10% a 30% das perdas de água — volume equivalente à economia prevista.
A Sabesp também não pode multar os consumidores que desperdiçam água, mas desta vez por problemas externos. Durante quatro meses, a empresa discutiu com a agência reguladora estadual Arsesp uma multa para quem aumentar o consumo — mas os órgãos de defesa do consumidor consideraram a medida ilegal, a menos que o racionamento fosse decretado.
Apenas a prefeitura de São Paulo poderia multar o consumidor por desperdício, mas nenhuma medida foi tomada. A alternativa encontrada pela Sabesp foi um programa de bonificação para o consumidor que gastar menos água.
A medida diminuiu em 100 milhões de reais o faturamento trimestral e, enquanto metade dos clientes reduziu o consumo e foi bonificada, 25% deles passaram a gastar mais. A CPI estuda recomendar à prefeitura de São Paulo que processe a Sabesp por não entregar o produto (água) contratado. “O contrato do município é com a Sabesp, não com São Pedro”, diz o vereador Laércio Benko, presidente da CPI.
A corrida para corrigir os problemas causados ao longo de décadas já começou. A Sabesp e o governo estadual anteciparam obras de interligação dos sistemas de água, previstas para acontecer até 2020. Até o fim do ano, o número de clientes dependentes do Sistema Cantareira terá caído de 9 milhões para 6 milhões de pessoas.
A Sabesp, como se sabe, também aumentou os gastos para bombeamento de água do chamado volume morto dos reservatórios — a água que fica abaixo da tubulação. Para especialistas, a Sabesp reagiu bem. “O único benefício de uma seca é a mobilização de quem decide”, diz Carlos Tucci, diretor da Rhama Consultoria Ambiental.
Para o investidor, o impacto será inevitável. No ano, as ações da Sabesp caíram 28%, e só no terceiro trimestre o lucro encolheu 80%. “Venda suas ações, o ajuste vai ser longo”, diz Michael Gaugler, diretor do banco americano Brean Capital, que analisa outras sete empresas de água no mundo. Após tantos anos de generosidade acima da média, o acionista da Sabesp há de entender.