Presídio de Boa Vista (RR): massacre de presos mostra o poder do crime em cárceres Brasil afora (Marcelino Duarte/AFP)
Leo Branco
Publicado em 13 de janeiro de 2017 às 05h55.
Última atualização em 13 de janeiro de 2017 às 05h55.
São Paulo — No fim do século 17, o filósofo inglês Thomas Hobbes defendeu, no clássico Leviatã, o monopólio do Estado no uso da força para assegurar um convívio social harmônico. Na visão de Hobbes, só um governo forte e presente pode dominar a selvageria que ronda o homem. Daí a importância de leis e espaços para punir quem as infringe. Os postulados de Leviatã foram o alicerce das conquistas sociais e econômicas da humanidade nos três séculos seguintes.
Mas, a julgar pelos massacres em presídios ocorridos recentemente no Brasil, tais ideias básicas ainda parecem revolucionárias por aqui. Nas últimas duas semanas, a sociedade brasileira tem acompanhado, estarrecida, as cenas de uma barbárie pré-Leviatã. Até o fechamento desta edição, em 10 de janeiro, a contabilidade da sequência de brigas entre facções criminosas rivais, o PCC e a Família do Norte, era de 60 mortes em Manaus e 33 em Boa Vista. Cenas dantescas de presos com cabeça ceifada e até coração arrancado a golpes de facão espalharam-se nas redes sociais. As imagens tornaram-se a mais nova prova cabal de que o sistema prisional falha miseravelmente no Brasil.
E evidenciam uma das velhas distorções do -país: ao mesmo tempo que o poder público avança em áreas que poderiam ser tocadas pelo setor privado, na segurança, onde deveria ter presença absoluta, ele é fraco. Na ausência de controle estatal, o crime tomou o poder. “O Brasil chegou a esse grau de falência das prisões porque não soube reconhecer que as gangues vão inevitavelmente ocupar esses espaços abandonados, oferecendo apoio mútuo e proteção”, diz o cientista social Sacha Darke, professor na Universidade de Westminster, na Inglaterra, que desde 2008 vem pesquisando as condições de vida em prisões brasileiras.
Na tentativa de mostrar que tem algum controle da situação, o governo, tanto em nível federal quanto nos estados, reagiu de forma atabalhoada. Foi aventada até a criação de um ministério, o da Segurança Pública — ideia que deve esbarrar no controle de gastos empreendido pelo presidente Michel Temer. A situação também apressou o lançamento de um plano nacional de segurança que já vinha sendo preparado. Será o quarto plano desse gênero desde 2000, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Nenhum dos anteriores conseguiu evitar o caos atual.
Em meio a medidas ainda pouco claras para combater a criminalidade, como reforço na fiscalização do tráfico de drogas nas fronteiras, o projeto apresentado pelo ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, pretende construir cinco presídios federais de segurança máxima, ao custo de 40 milhões de reais cada um, para confinar os chefões das organizações criminosas. Trata-se de uma providência urgente. De acordo com dados do Infopen, sistema de informações prisionais do governo, ao final de 2014 o Brasil tinha 622 000 presos, praticamente o dobro de uma década atrás.
O contingente se espreme em celas onde caberia pouco mais da metade dessa capacidade — estima-se que faltem 250 000 vagas em cadeias país afora. Esses ambientes misturam criminosos de todos os graus de periculosidade, desde os mais cruéis assassinos até meros ladrões de galinha. A convivência serve para o crime organizado se expandir, recrutando e instruindo novos membros.
Além de construir presídios, a proposta do governo é reduzir a burocracia para a União financiar a reforma de mais de 1 400 prisões estaduais e a construção de novas unidades. Até hoje, cada estado manda uma extensa lista de documentos e aguarda a liberação do convênio por parte da União, que estipula um prazo máximo para o uso do recurso. Boa parte do orçamento do fundo penitenciário mantido pelo Ministério da Justiça para ampliar a capacidade do sistema prisional fica retida para ajudar a União a fechar as contas. De acordo com dados da organização Contas Abertas, de 2001 a 2014, apenas 45% dos 11 bilhões de -reais à disposição do fundo chegaram aos estados.
Agora, a ideia do Ministério da Justiça é dar uma espécie de crédito pré-aprovado aos estados para ampliar seus presídios. O Planalto promete que 1,8 bilhão de reais chegarão aos cofres estaduais neste ano. Não está claro na resposta à crise das prisões como resolver o fato de que 40% da população carcerária brasileira é composta de gente que aguarda um julgamento atrás das grades ou que até já está inocentada mas não foi solta. Para comparação, na França, o índice é de 27%; na Alemanha, 19%. A realização de um mutirão nacional de defensores públicos e juristas para acelerar os processos desses presos provisórios está na pauta de uma reunião dos 27 secretários estaduais de Segurança Pública, marcada para o dia 17 em Brasília.
Por que o Brasil tem tanta gente atrás das grades, lotando presídios e onerando o Estado, e a sensação é de que a violência e o crime só crescem? Parte da resposta está na ênfase de policiais, delegados, promotores e juízes em botar na cadeia quem oferece pouco risco à coletividade. De acordo com dados da organização civil Instituto Sou da Paz, quase 40% das prisões ocorrem por delitos leves, como pequenos furtos ou posse de quantidades mínimas de droga — de cada dez presos por tráfico, oito são pequenos entregadores ou usuários.
Trata-se de uma abordagem que vem sendo abandonada em países desenvolvidos. Nos Estados Unidos, donos da maior população carcerária mundial, reformas judiciais para ampliar o uso de penas alternativas a acusados de crimes leves, colocadas em prática pelo presidente Barack Obama, deverão fazer com que o democrata termine o mandato com um número de presos menor do que quando assumiu em 2009. A última vez que um presidente americano conseguiu reduzir o número de presos foi com o também democrata Jimmy Carter, que saiu da Casa Branca há 36 anos.
Prender errado é um enorme desperdício de recursos também. Um estudo da consultoria GO Associados, feito com exclusividade para EXAME, mostra que, se os presos provisórios aguardassem a decisão judicial em liberdade, o país economizaria 3,3 bilhões de reais em despesas de manutenção das cadeias. Com a quantia, seria possível manter 91 000 presos monitorados com tornozeleiras eletrônicas durante dez anos ou instalar 1 650 bloqueadores de celulares, o suficiente para atender todos os presídios brasileiros — e equipar outras 226 unidades. O atual déficit de espaço nos presídios cairia 37%, para 158 000 vagas.
O investimento para acabar com a superlotação também diminuiria: nas contas do Conselho Nacional de Justiça, órgão ligado ao Supremo Tribunal Federal, o desembolso para zerar o défit de vagas nas prisões seria de 10 bilhões de reais. Mas, nos cálculos da GO, para acomodar o excesso de presos em espaços com razoável padrão de qualidade, a exemplo da prisão-modelo de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, o desembolso seria de até 36 bilhões de reais. “Num cenário em que só seriam erguidas celas para quem oferece risco grave à segurança pública, a conta seria 63% menor”, diz Fernando Marcato, sócio da GO Associados.
Como se não bastasse prender mal, o Estado brasileiro pouco prepara o detento para o retorno à liberdade. As estatísticas sobre reincidência criminal ainda são pouco confiáveis, mas há quem aponte que até 70% dos que passaram por prisões no Brasil voltam ao crime. Também pudera: de acordo com dados do Ministério da Justiça, apenas um em cada dez presos mantém uma rotina de estudos e só 20% trabalham, a maioria em funções manuais da própria penitenciária, como faxina ou cozinha, ocupações pouco úteis num eventual retorno à liberdade. Tamanha ociosidade numa situação degradante leva a motins e fugas frequentes: em média, por dia, ocorrem 3,6 motins e 44 fugas nas cadeias brasileiras.
Não é à toa que facções criminosas, como PCC e Família do Norte, cujos integrantes foram responsáveis pela matança em Manaus e Boa Vista, espalharam-se pelos presídios. Nas contas de especialistas em segurança, o crime organizado está presente em cadeias de pelo menos 15 estados. Na maioria dos locais, as gangues assumiram o controle interno e fizeram das prisões seus quartéis de comando. O PCC chama as prisões sob seu domínio de faculdades do crime e proclama que o Estado é seu inimigo.
Um alento é saber que o Brasil já dispõe de algumas respostas bem-sucedidas à selvageria nos presídios. Um caso exemplar é o do Espírito Santo, estado que, em meados da década passada, enfrentava rebeliões frequentes e superlotação nas carceragens. Desde então, investiu 500 milhões de reais na ampliação do número de cadeias — de 13 para 35, reduzindo bastante o déficit de vagas, hoje o quarto menor entre os estados — e em programas para reeducar detentos.
Lá, de um total de 19 000 presos, 3 500 cursam o ensino básico nos presídios. Outros 7 000 tiveram a oportunidade de receber treinamentos ofertados pelo Senai em ofícios como pedreiro e carpinteiro. Mais de 200 empresas mantêm convênios para contratar quem está em cana — uma delas é a fabricante de sucos e chás gelados Leão, que emprega detentos na colheita de maracujá e goiaba numa fazenda ao lado do presídio de São Mateus, no norte capixaba. Em troca do trabalho, eles recebem um salário mínimo e redução da pena: a cada três dias de trabalho, um a menos preso.
E, desde o ano passado, os recém-libertos têm à disposição um espaço no Centro de Vitória para tirar carteira de trabalho e receber orientação profissional. “É uma espécie de Poupatempo para quem quer deixar o passado de crimes”, diz Walace Pontes, secretário de Segurança do Espírito Santo. Desde 2013, os presídios capixabas não têm rebeliões, uma prova de que a presença do Estado faz diferença. Agora, resta saber se o Brasil inteiro vai aprender a lição — ou seguirá dando espaço à barbárie.