Tomógrafo em hospital de Curitiba: o aparelho, embora novo, é um modelo já defasado, de 2007 (Alexandre Battibugli/Exame)
Da Redação
Publicado em 27 de julho de 2012 às 06h00.
São Paulo - No final do ano passado, o hospital Nossa Senhora das Graças, de Curitiba, no Paraná, decidiu comprar seu primeiro tomógrafo e investiu 2 milhões de dólares na importação de um produto da marca japonesa Toshiba. A adoção de novas tecnologias sempre é motivo de orgulho, mas, nesse caso, a aquisição foi comemorada com parcimônia.
Apesar de novo, o tomógrafo não é o mais moderno disponível no mercado internacional. É uma versão lançada em 2007. Há pelo menos três gerações à frente dele. O hospital curitibano poderia ter comprado o modelo mais avançado — mas aí ele esbarraria numa trava oficial.
O aparelho afinal escolhido é o mais avançado na lista de produtos desse tipo que podem ser importados segundo as normas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Os modelos mais recentes ainda não receberam sinal verde da agência para entrar no país.
Numa analogia simplista, é como se o hospital fosse obrigado a comprar um carro zero-quilômetro — mas com cinco anos de defasagem. O caso do tomógrafo não é um fato isolado. Hoje, não é possível fazer no Brasil um exame preventivo de câncer de mama no aparelho de última geração.
O equipamento, que emite 50% menos radiação, ainda não tem autorização da Anvisa para ser importado. Quem corre o risco de enfartar tem de recorrer a um stent de metal para liberar as artérias. A versão mais nova, que é absorvida pelo organismo, também aguarda aprovação.
Conforme estimativas do mercado, há uma fila de 1 600 pedidos à espera do carimbo de “aprovado” da agência. A Anvisa admite que as liberações estão represadas — mas afirma que haveria “apenas” 1 250 na espera. No ano passado, foram emitidas 220 aprovações.
Mantido o atual ritmo, o tomógrafo, o mamógrafo e o novo tipo de stent correm o risco de ser liberados daqui a sete anos — em 2019. “Se mantiver essa postura de relegar a tecnologia, o Brasil vai ficar para trás”, diz Gonzalo Vecina Neto, superintendente do Hospital Sírio-Libanês e ex-presidente da Anvisa de 1999 a 2003.
Números à parte, quem acompanha o trabalho da agência acredita que a fila é resultado de uma escalada protecionista no setor de equipamentos para a saúde. “A agência está dificultando a importação para forçar a produção nacional”, diz um executivo do setor de produção de equipamentos médicos.
O primeiro movimento nesse sentido teria ocorrido em 2008, quando a agência lançou novas regras para a importação de produtos de saúde. O documento tem nada menos que 68 páginas com normas e exigências burocráticas que mais dificultam do que orientam as aquisições.
A situação se agravou há dois anos, quando a Anvisa mudou seu papel no processo de importação. Na maioria dos países, produtos da área de saúde só podem ser comercializados após a análise das condições em que foram fabricados — o que exige visitas às indústrias e a emissão de laudos sobre a operação.
Para evitar sobrecarga, os órgãos de fiscalização costumam terceirizar as vistorias ou acatar o parecer de seus pares. A vigilância do Chile, por exemplo, aceita produtos certificados pela agência dos Estados Unidos, a Food and Drug Administration. A FDA, por sua vez, mantém acordos com países como Canadá, Japão e Austrália para evitar o acúmulo de viagens.
No ano passado, a FDA autorizou a importação de 970 produtos, mas seus técnicos realizaram apenas 51 inspeções internacionais. As demais autorizações foram baseadas em parecer de terceiros. No Brasil, desde sua criação, em 1999, a Anvisa liberava a importação sem fazer as visitas porque aceitava certificados emitidos por outras agências.
Em maio de 2010, porém, a agência adotou uma regra diferente: ela mesma — e só ela — passou a validar o uso de produtos médico-hospitalares importados.
Conceder uma autorização desse tipo não é uma tarefa simples. A lista de produtos é extensa. Tem mais de 50 000 itens, de seringas a aparelhos de ressonância magnética. A vistoria na fábrica fora do país precisa ser realizada por dois técnicos da Anvisa — um atesta o trabalho do outro.
Como um equipamento pode ter peças de diversos fornecedores, é comum a liberação demandar vistorias em mais de uma fábrica, em países diferentes. Para complicar, a estrutura da agência não foi adaptada para dar conta da mudança. A Anvisa recebe, em média, 57 novos pedidos de vistoria todos os meses.
Com 60 técnicos habilitados para o serviço, cumpre 25 visitas internacionais por mês. As outras 32 entram na fila. A própria agência admite que há um represamento nas análises.
“Estamos analisando os pedidos feitos em junho de 2010”, diz Bruno Rios, gerente-geral de inspeção da Anvisa. No entanto, o órgão brasileiro passou a fazer as vistorias porque não tinha reciprocidade — agências de outros países não aceitavam certificações da Anvisa.
Por tudo isso, o clima é de desconfiança generalizada e temor em relação à Anvisa. EXAME procurou 30 hospitais e laboratórios, que só aceitaram conversar abertamente — e criticar a Anvisa — se seu nome fosse preservado. Algumas empresas adotaram uma estratégia incomum — entraram na Justiça para tentar apressar as importações.
Hoje, há cerca de 100 mandados judiciais exigindo vistorias da Anvisa. “Foi um ato de desespero, porque nunca é bom para uma empresa brigar com o órgão regulador”, diz um advogado do setor. “Mas elas não têm saída.”
A adoção de barreiras contra produtos importados, hoje generalizada em diversos setores, é velha conhecida do Brasil — assim como seus efeitos nefastos. O caso exemplar foi a reserva do mercado de informática, que por anos obrigou os brasileiros a usar computadores inferiores e caros.
Sinais dos efeitos negativos já são visíveis na área da saúde. Estima-se que haja em operação no país uma centena de aparelhos de radioterapia com tecnologia defasada que não são substituídos porque os hospitais esperam que a versão mais avançada, já disponível, seja liberada pela Anvisa — ninguém sabe quando. É o Brasil arcaico atravancando o país que quer se modernizar.