iFood, referência em delivery online na América Latina: empresa conta com mais de 100 IAs nos serviços oferecidos (Leandro Fonseca/Exame)
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Publicado em 12 de dezembro de 2023 às 06h00.
Última atualização em 18 de dezembro de 2023 às 10h55.
Ser orientado por dados é, hoje, mandatório para qualquer negócio, não importa a indústria. Longe de ser modismo ou uma nova onda, a cultura data driven é uma tendência que veio para ficar e deverá permear todas as camadas das organizações, deixando traços cada vez mais marcantes.
São muitos os ganhos quando se faz o uso inteligente de dados: agilidade na adaptação às mudanças, antecipação de cenários, redução de erros (e custos), tomadas de decisão mais assertivas etc. Tudo isso somado resulta em vantagens competitivas que colocam as empresas em melhores condições de aproveitar oportunidades de mercado.
Nesse ambiente tecnológico, no entanto, o componente humano faz toda a diferença. Afinal, são os líderes de TI — mais especificamente os que lidam com a gestão dos dados, como o Chief Technology Officer (CTO) e o Chief Data Officer (CDO) — os responsáveis por conduzir a implementação dessa cultura nas empresas. E também por zelar pela segurança das informações, entre outras tarefas fundamentais para o sucesso do negócio em todos os âmbitos (incluindo a satisfação dos clientes).
Buscando um registro mais preciso desse momento, a Salesforce, líder global em CRM, e a Tableau, plataforma líder mundial em BI e Analytics, lançaram, no início de novembro, o relatório State of Data and Analytics, com as principais tendências que afetam os líderes de dados no Brasil.
Entre os desafios mapeados estão as estratégias usadas para navegar pelos rápidos avanços em inteligência artificial (IA), dificuldades que as organizações enfrentam para realizar todo o potencial de seus dados e as táticas que os líderes de análise e TI empregam para gerenciar dados cada vez mais extensos e complexos.
“Os líderes de análise e de TI estão cada vez mais focados na implementação de estratégias de governança de dados e na promoção de uma cultura de dados sólida”, avalia Jaime Müller, country manager Brasil da Tableau, uma empresa Salesforce. “Essa abordagem será fundamental para as empresas brasileiras ampliarem a confiança nas informações e explorarem o potencial da IA”, entende ele.
Para Thais de Cássia Cabral Padilha, vice-presidente de Engenharia de Soluções da Salesforce, um mercado em rápida evolução exige que os líderes de TI sejam ágeis e adaptáveis, respondendo rapidamente às novas demandas e oportunidades do negócio. “É importante destacar aqui a relevância da capacitação, para que o profissional de TI ganhe mais flexibilidade e agilidade, a fim de se atualizar e incorporar a IA preditiva e generativa cada vez mais aos processos de negócios”, comenta ela.
Tecnologia na base do negócio
Referência em delivery online na América Latina, o iFood nasceu (e continua sendo) uma empresa de tecnologia. Sem ela, a marca jamais conseguiria escalar sua operação para entregar 70 milhões de pedidos ao mês, atendendo a 43 milhões de clientes e conectando mais de 330.000 restaurantes parceiros. Uma eficiente gestão de dados, aliada à automatização e à inteligência artificial, está, sem dúvida, na base do negócio.
Se em 2011, quando o iFood foi criado, a IA ainda não era uma realidade, hoje há mais de 100 IAs rodando dentro dos serviços oferecidos pela marca. “No iFood, a gente constrói muita tecnologia proprietária”, confirma Flávio Stecca, vice-presidente de Tecnologia da empresa. A possibilidade de utilizar IAe dados para tomar decisões e melhorar os serviços impacta diretamente a experiência do cliente e a competitividade.
Atuando na área há quase 20 anos (e desde 2018 no iFood), Stecca viu muitas transformações no ambiente corporativo. “Quando comecei minha carreira, em 2004, a tecnologia era restrita a nichos de startups”, lembra ele. “Hoje, a tecnologia deixou de ser um departamento à parte e passou a ser uma disciplina que perpassa todas as áreas de uma empresa, em qualquer indústria”, crava o executivo, que comanda uma equipe de 1.975 colaboradores.
No Grupo Boticário não é diferente. “Encaramos tecnologia e inovação como algo transversal e que perpassa toda a operação”, diz Renato Pedigoni, diretor executivo de Tecnologia do grupo, que opera por meio de mais de 4.000 lojas, com oito centros de distribuição, três fábricas e dez marcas em mais de 50 países. “Nesse cenário, o papel do CTO é ativo na definição da estratégia, estando próximo de consumidores e parceiros, com profundidade nas alavancas de negócio, além de manter e evoluir as plataformas que passam a ser base nas operações do grupo”, esclarece ele.
Com essa visão em mente, em meados de 2019 a marca decidiu mudar de uma empresa que apenas consome tecnologia para uma organização que também constrói tecnologia. Tal posicionamento levou a um crescimento expressivo de investimentos (superior em mais de dez vezes), e o time de tech passou de 200 pessoas para mais de 3.000 colaboradores em 2023, entre desenvolvedores, product managers, designers, engenheiros e cientistas de dados.
“Hoje, temos tecnologia própria em toda a nossa cadeia produtiva, desde o laboratório de P&D, passando pelas fábricas, cadeia de distribuição, até os canais físicos e digitais com nossos consumidores. Essa abordagem nos permite construir experiências únicas para nossos clientes, além de habilitar sinergias em escala para nosso negócio”, explica o executivo do Boticário. Ele acrescenta que a estratégia de dados contempla investimentos em quatro grandes frentes de trabalho: engenharia de dados; governança/arquitetura de dados; inteligência artificial; e ferramentas para tornar o uso de dados acessível.
Integração de TI com outras áreas envolve alinhamento de metas
Segundo o levantamento Estado da TI, também da Salesforce, apenas 35% dos líderes de TI dizem que suas métricas de desempenho estão totalmente alinhadas com as de outros departamentos. Esse dado mostra que há espaço para uma maior integração da área de TI com outros departamentos nas empresas. E algumas delas já caminham nessa direção.
Flávio Stecca, do iFood, afirma que boa parte das metas dos times de tecnologia, hoje, tem a ver com business, como aumentar o número de pedidos ou lançar uma nova feature (“funcionalidade”) dentro da plataforma. “No final do dia, a tecnologia é uma ferramenta que está entregando algum valor na ponta, e a gente tem de se medir por isso. É por isso que a empresa existe”, avalia ele.
Isso explica, também, por que no iFood a área de tecnologia é “empurrada” para as pontas da organização. É comum ver analistas de dados nas áreas de negócios, o que facilita o acesso a dados e a tomada de decisão em tempo real. Assim, aquilo que antes demorava meses para embasar pesquisas de campo agora gera feedbacks quase instantâneos sobre a operação. “Você retroalimenta a sua estratégia e o seu negócio como um todo”, diz o executivo.
O diretor de Tecnologia do Grupo Boticário afirma que, na empresa, também existe um trabalho constante para alinhar as métricas de desempenho da área com os demais departamentos. “Esse é um diferencial do grupo”, sublinha ele. Por outro lado, organizações onde esse nível de integração não existe tendem a enfrentar desafios maiores — que podem, inclusive, sabotar a própria operação.
“A falta de alinhamento pode levar a dificuldades na comunicação, na colaboração e na implementação de iniciativas estratégicas que beneficiem toda a organização”, afirma Thais de Cássia Cabral Padilha, vice-presidente de Engenharia de Soluções da Salesforce. “Os líderes, cada vez mais, precisam trabalhar em colaboração com outros departamentos, entendendo suas necessidades e objetivos específicos, e garantindo que as soluções de TI estejam alinhadas com essas metas”, reforça ela.
Pessoas de negócios também precisam entender de tecnologia
Thais Padilha observa que o desenvolvimento de habilidades é uma “jornada”, da mesma forma que a transformação digital em si. “A liderança de TI precisa investir de forma recorrente na capacitação de sua equipe, por meio de certificações para ampliar a capacidade técnica, habilidades de negócio e boas práticas nos projetos”, aconselha ela.
No caso da Salesforce, a plataforma online gratuita Trailhead tem um papel importante para que gente experiente — assim como recém-chegados à TI ou profissionais de outras áreas — amplie seus conhecimentos em habilidades digitais. No Boticário, por sua vez, são utilizadas diversas ferramentas para automatizar a coleta de dados, o que fornece aos líderes insights precisos e relevantes, que os orientam para uma tomada de decisão mais estratégica e assertiva.
Já no iFood, a solução adotada foi transformar o data lake (espécie de depósito virtual que armazena um grande volume de dados, permitindo também o seu processamento de forma rápida) em gerador não só de informação mas também de conhecimento. “Nosso time de engenharia de dados coleta dados de diversas fontes, e as pessoas fazem um curso interno, por meio de aulas gravadas em vídeo, para poderem acessar esses dados”, conta Flávio Stecca.
“Já treinamos mais de 1.000 pessoas de negócios, que passam a trabalhar com dados como se fossem pessoas formadas nisso”, comemora ele, para quem é necessário que profissionais de outras áreas entendam de tecnologia, para “fazer as perguntas certas e saber o que esperar sobre os dados”.
No entender do executivo, essa é uma “via de mão dupla”, de forma que é importante também que as empresas capacitem o pessoal de tecnologia para entender de negócios. “Eu tenho a visão de que, um dia, tecnologia e negócios vão se fundir de uma forma indissociável”, prevê.
Inteligência artificial e automação em alta na geração de valor
Em conformidade com os relatórios State of Data and Analytics e Estado da TI, soluções como IA generativa e automação se tornaram prioridades dos líderes de TI brasileiros. “Com a inteligência artificial generativa, em especial, o potencial de automatização de backoffice [a parte das empresas que não tem relação direta com o cliente e de processos repetitivos é gigantesco, e a gente tem experimentado isso”, afirma Flávio Stecca, do iFood.
Com isso, processos que levavam cinco dias, porque passavam por diversos departamentos, hoje levam 1 hora, assim como custos que eram de 100 reais e passaram a ser de 1 real. “Isso é valiosíssimo”, festeja ele.
Um exemplo prático é o cadastramento de cardápios de restaurantes, que pode ser feito de forma totalmente digital, com base em uma foto. As ferramentas de automação e IA desenvolvidas pela empresa fazem todo o trabalho e, depois, é preciso apenas revisar as informações. Sem falar nos chatbots e assistentes virtuais, que oferecem atendimento 24 horas por dia, sete dias por semana, o que agiliza a interação e melhora a experiência dos consumidores. As IAs podem responder a perguntas frequentes, fornecer informações sobre cardápios, horários de funcionamento e processos de reserva e entrega.
No Grupo Boticário, a inovação é o caminho para melhorar a experiência dos clientes e entregar a proposta de valor das marcas. A plataforma da empresa permite que o pedido seja entregue pela loja mais próxima, o que reduz o tempo de entrega e o custo para consumidores, o que gera maior conversão de vendas. Essa mesma tecnologia é utilizada para outras marcas do grupo, como a Beleza na Web, que, ao lado do Boticário, está entre os apps de beleza mais baixados do Brasil — o Beleza na Web registrou mais de 5 milhões de downloads; e o aplicativo da “marca-mãe”, mais de 10 milhões.
“Indo para a outra ponta da cadeia produtiva, hoje utilizamos modelos próprios de IA que permitem validar a estabilidade das fórmulas de nossos produtos físicos, como cremes e perfumes, em diferentes cenários de temperatura, pressão e luminosidade, o que acelera nosso time to market no lançamento de produtos”, completa o diretor executivo de Tecnologia do Grupo Boticário.
“Ainda quando falamos em inteligência artificial, criamos, em abril de 2023, um Comitê de IA generativa, de modo a orientar os trabalhos nessa área, permitindo a definição de diretrizes de atuação e garantindo uma conduta transparente, ética e responsável”, prossegue ele, destacando que entre as atividades do comitê estão governança de dados, segurança da informação, gestão de processos e de potenciais riscos, que envolvem contratação, desenvolvimento e utilização responsável de ferramentas de IA generativa.
As várias ações que estão sendo postas em prática pelos líderes de TI mostram que a cultura data driven já é uma realidade no Brasil. E ela ainda está só no começo.
Veja os principais insights do relatório State of Data and Analytics
→ Ameaças à segurança e falta de confiança prejudicam o potencial dos dados. O caminho para desbloquear o potencial dos dados é sinuoso. Apenas 45% dos líderes empresariais do país estão completamente confiantes na precisão de seus dados. O maior obstáculo para eles é o alto volume de dados, enquanto os líderes de análise e TI citam ameaças à segurança como seu desafio de dados número 1.
→ Os líderes aproveitam a cultura de dados e a governança de dados para atingir as metas. Para maximizar o valor e a confiança dos dados, os líderes de análise e TI se apoiam na governança de dados. Assim, 86% dos entrevistados usam governança para garantir e certificar a qualidade dos dados, e 73% dos líderes estão investindo mais em treinamento para o próximo ano com o objetivo de fortalecer a cultura interna de dados.
→ Os avanços da IA intensificam a demanda por dados confiáveis e seguros. Os avanços em IA estão se movendo rapidamente, e as empresas estão ansiosas para lucrar com novas interações, como a IA generativa. Entre os líderes do Brasil, 75% estão preocupados em perder os benefícios dessa tecnologia. Isso pressiona as equipes de gerenciamento de dados a alimentarem algoritmos com dados de alta qualidade. Para 89% dos entrevistados do país, os avanços em IA tornam o gerenciamento de dados uma alta prioridade.
Os dados do relatório State of Data and Analytics são de duas pesquisas anônimas realizadas de 16 de junho a 31 de julho de 2023. A primeira pesquisa gerou 5.540 respostas de tomadores de decisão de análise e TI, de 18 países diferentes na América do Norte, América Latina, Ásia-Pacífico e Europa. A segunda pesquisa gerou 5.540 respostas de líderes de linha de negócios dos mesmos países.
Visão de negócios e facilidade de comunicação estão entre as habilidades desejadas
O perfil do líder de TI hoje exige não apenas conhecimento técnico mas também forte visão de negócios, adaptabilidade e excelentes habilidades de comunicação. “Esses profissionais devem ser capazes de entender o contexto empresarial mais amplo, colaborar efetivamente com outros departamentos e impulsionar iniciativas estratégicas que estejam alinhadas com os objetivos gerais da organização”, elenca Thais de Cássia Cabral Padilha, vice-presidente de Engenharia de Soluções da Salesforce.
Assim, inteligência emocional, liderança e habilidades de resolução de problemas também são características essenciais para o sucesso nessa área. “O líder de TI trabalha, cada vez mais, de forma integrada com outros departamentos da empresa, não podendo ficar isolado ou distante, em ‘bolhas’ técnicas”, enfatiza ela.
“Acredito que a demanda do mercado para um CTO, geralmente, resulta da combinação de habilidades técnicas, liderança, profundidade das alavancas de negócio e alinhamento com a cultura organizacional”, confirma Renato Pedigoni, diretor executivo de Tecnologia do Grupo Boticário. “Para mim, um líder nunca deixa de aprimorar suas habilidades e buscar novos conhecimentos, engajando sua equipe na mesma jornada”, pontua ele.
Flávio Stecca, vice-presidente de Tecnologia do iFood, lembra que, embora o líder de TI se molde de acordo com a experiência no mercado, cursos de MBA em negócios são quase “obrigatórios” para quem quer ter um cargo de gestão executiva em tecnologia, porque preenchem lacunas que a formação principal não atende. “Antigamente, tecnologia era um fator de custo, para otimizar o budget. Agora, as discussões são sobre aumentar a receita”, exemplifica.