Executivos da Ambev e ex-donos da Wäls e da Colorado: todos continuaram no negócio (Germano Luders)
Marina Filippe
Publicado em 15 de maio de 2017 às 05h55.
Última atualização em 15 de maio de 2017 às 05h55.
São Paulo — Apenas 50 bares localizados no bairro da Vila Madalena, em São Paulo, recebem desde outubro lotes da Três Fidalgas, uma cerveja estilo pale ale da fabricante de bebidas Ambev. Vendida por um preço 10% superior ao da Skol, rótulo mais popular da cervejaria, a marca não existe fora do bairro boêmio e das vilas vizinhas Beatriz e Ida. Não tem anúncios na TV nem sequer um website. Por trás da aparente irrelevância do lançamento, numa empresa acostumada a escalas superlativas, está uma estratégia vital: conquistar consumidores de nicho.
No ano passado, o volume vendido pela Ambev caiu cerca de 7% no Brasil. O segmento de cervejas artesanais ou especiais, que representa 1% do mercado, cresceu 17% somente em 2015 — último dado disponível do setor. Para a empresa que domina o mercado com 66% de participação, fatura 45,6 bilhões de reais e distribui em mais de 1 milhão de pontos de venda no país, a produção e a venda de pequenas quantidades são novidade.
Trata-se de um aprendizado que a companhia acumula, sobretudo, após a aquisição de duas cervejarias artesanais: a paulista Colorado, de Ribeirão Preto, e a mineira Wäls, de Belo Horizonte, ambas em 2015, por valor não revelado. Seus antigos donos continuam no comando das marcas, agora como executivos da Ambev que operam os negócios de forma independente. “Além de manter a gestão original, estamos incorporando aprendizados em marcas próprias da Ambev”, diz Marcelo Tucci, diretor de cervejas artesanais da Ambev.
É um modelo incomum, inclusive para a própria Ambev. A empresa, sob o comando do trio de empresários Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Beto Sicupira, deu origem à maior cervejaria do mundo com a receita oposta: formatar as empresas adquiridas a seu estilo. Nos últimos anos, porém, abriu exceção para marcas artesanais. O caso mais célebre é o da americana Goose Island, de Chicago, comprada pela AB InBev (controladora da Ambev) em 2011. Para quem duvidou das intenções da compradora — e foram muitos —, é surpreendente ver que a sede original se manteve no mesmo local, sob a supervisão do fundador John Hall.
No Brasil, além da Colorado e da Wäls, a empresa adquiriu a fabricante de sucos carioca Do Bem em 2016. Da mesma forma, a Do Bem continua sob a batuta do fundador, Marcos Leta, que comanda o mesmo grupo de 40 funcionários no escritório anterior à aquisição, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Segundo especialistas, uma pequena minoria de fusões e aquisições costuma seguir esse script. “É preciso bons motivos para ficar na contramão da lógica empresarial de unir e acelerar os ganhos de sinergia”, afirma João Guillaumon, especialista em finanças corporativas da consultoria McKinsey.
O roteiro mais frequente segue o estilo “terra arrasada”. “Dá mais trabalho fazer como no Império Romano, em que os conquistadores impunham regras, levavam parte dos impostos, mas deixavam o povo conquistado com sua religião e costumes”, diz o consultor Gustavo Pierini, fundador da Gradus, especializada em eficiência operacional. “O que mais se vê é o estilo Átila, rei dos hunos. Ele matava todo mundo, assim não tinha de negociar com ninguém. Mas também não sobrava muita coisa no dia seguinte.”
As fusões e as aquisições costumam dar errado em 60% dos casos, segundo uma pesquisa realizada em 2016 pela consultoria L.E.K. com 2 500 negócios dessa natureza nos Estados Unidos. Entre os motivos está a falha em atingir as sinergias propostas e em promover a integração cultural. Mesmo no caso de uma fusão clássica, quando a empresa adquirida será diluída na estrutura da compradora, a boa gestão prescreve uma avaliação cuidadosa das duas estruturas para que prevaleçam as melhores práticas e nada de valioso se perca no processo.
Nos casos em que a empresa comprada é mantida separadamente, por um lado, torna-se mais fácil manter intactos o ativo ou o conhecimento que motivaram a aproximação. Por outro, a manutenção de duas estruturas exige uma renovação constante dos votos de boa convivência.
A razão por trás da decisão de seguir o caminho mais trabalhoso costuma ser uma só: falta de opção. A começar pela imposição do vendedor em fechar o negócio. No caso da Do Bem, essa foi a condição para seguir as negociações. “Só disse ‘sim’ com a garantia de que os princípios básicos de nosso jeito de trabalhar não mudariam”, diz Leta. O modelo também se impõe quando a empresa compradora não quer apenas ganhar participação de mercado mas também conhecimento novo. É a situação típica de companhias dominantes em relação a novas frentes de crescimento.
Foi, por exemplo, o caso da fabricante de bebidas e alimentos Coca-Cola, que ingressou no setor de lácteos no país com a compra da mineira Verde Campo em dezembro de 2015. A permanência dos ex-donos e de toda a equipe original na gestão foi fundamental para que a Coca-Cola pudesse lidar com a complexidade do segmento, dependente de centenas de fornecedores locais e com prazo de validade bem inferior ao do restante do portfólio da Coca-Cola. “Precisávamos ter especialistas ao nosso lado”, diz Sandor Halen, vice-presidente de novos negócios da Coca-Cola.
Um ponto crítico é manter a autonomia sem perder o controle. Em 2013, o Magazine Luiza adquiriu o e-commerce de cosméticos Época, que há dois anos vendia produtos no site da varejista de forma autônoma. Os executivos do Magazine Luiza decidiram manter a equipe da Época em sua sede original com as pessoas que entendiam do negócio trabalhando de forma independente. “Se tirássemos o escritório do Rio de Janeiro, perderíamos parte do time”, diz Eduardo Galanternick, diretor executivo de e-commerce do Magazine Luiza.
Em contrapartida, a fundadora e presidente da marca, Lucila Milman, reporta resultados mensais e tem de cumprir metas. Alessandro Rios, ex-dono da Verde Campo, foi mantido pela Coca-Cola no posto de presidente. Sob seu comando surgiu a ideia de lançar o Natural Whey Shake, iogurte com mais proteína indicado para consumo após atividades físicas. O produto chegou às gôndolas no começo de abril. A cada três meses, Rios deixa a cidade de Lavras, no interior de Minas Gerais, para discutir movimentos como esse e resultados financeiros com executivos da sede da Coca-Cola no Rio de Janeiro.
É sempre melhor quando as regras são combinadas na largada. Em 2012, a fabricante de cosméticos Natura adquiriu 65% da empresa australiana Aesop das mãos do fundo de private equity Harbet Australia, mantendo o fundador e os gestores da marca no restante da participação. A meta era aprender as diretrizes do varejo. Durante o primeiro ano de operação, Michael O’Keefe, presidente da Aesop desde 2003, só abria lojas após a aprovação do conselho, que tem dois representantes da Natura.
Nesse período, foi definido um processo com 17 regras para que O’Keefe possa abrir lojas sem pedir permissão, como o valor máximo aplicado em cada uma delas. “Os resultados foram o melhor argumento para a autonomia”, diz Robert Chatwin, vice-presidente de operações internacionais da Natura. Nos últimos quatro anos, a rede quadriplicou de tamanho e, atualmente, tem 176 lojas em 20 países. Os resultados motivaram a Natura a exercer em dezembro a opção de deter 100% da Aesop, que continuará com gestão autônoma.
Os ruídos podem surgir tanto da porta para dentro como para fora. Nos Estados Unidos, a AB InBev tropeçou nos dois quesitos ao mesmo tempo. Em 2015 e 2016, a marca de cerveja Budweiser exibiu nos intervalos do Super Bowl, final de futebol americano e maior evento esportivo do país, comerciais que satirizavam o consumo das “pequenas, frutadas e alternativas” cervejas artesanais. A falta de coerência saltou aos olhos de consumidores dos produtos da AB Inbev e de seus novos sócios — ex-donos de marcas artesanais que vinham comprando desde 2011. Nas redes sociais, brotaram paródias ironizando a qualidade da cerveja vendida em larga escala. Na época, um dos sócios da cervejaria Elysians, com sede em Seattle, comprada pela AB Inbev em 2015, deixou a sociedade em meio à polêmica. As campanhas não se repetiram neste ano. Em 2016, a empresa adquiriu mais de dez marcas artesanais ao redor do mundo.
Para que o negócio prospere no longo prazo é preciso revisitar a estratégia da empresa comprada, nunca abandoná-la. Um antiexemplo clássico é a empresa de serviços online Yahoo com a compra da rede de fotos Flickr em 2005. O objetivo era entender o mecanismo que categorizava as fotos do site para melhorar o buscador do Yahoo em relação ao arquirrival Google. Os executivos do Yahoo, porém, nunca desenvolveram outra vocação do Flickr: ser uma rede social. Três anos depois, executivos e fundadores do Flickr deixaram a operação ao ver o negócio minguar. Enquanto isso, o Instagram surgiu em 2010 com a proposta de rede social baseada em fotos e foi comprado pelo Facebook por 1 bilhão de dólares em 2012.
A experiência mostra que os benefícios dessa convivência podem resistir ao tempo. Há dez anos, a empresa alemã de cafés Melitta comprou a gaúcha Bom Jesus. Na época, o combinado foi que Jonatas Rocha, filho do dono da Bom Jesus, ajudaria somente no processo de integração. Sua atuação à frente de um canal especial de vendas, espécie de porta a porta para pequenos varejistas, porém, chamou a atenção dos executivos da Melitta.
Hoje, o canal foi aprimorado e expandido para Santa Catarina — e Rocha é diretor de marketing da Melitta. Lá fora, um dos casos mais emblemáticos desse modelo é o casamento entre Unilever e Ben & Jerry’s. A multinacional anglo-holandesa adquiriu 100% da fabricante americana de sorvetes em 2000 e o negócio ainda opera de forma independente. Os fundadores, Ben Cohen e Jerry Greenfield, condicionaram a venda a compromissos como continuar a comprar matérias-primas de pequenos produtores de países pobres — e pagar por elas um preço um pouco acima do de mercado. Atualmente, um conselho com representantes dos dois lados comanda a empresa.
“Essa história só deu certo porque conjugamos valores”, diz Rob Michalak, diretor global de missão social da Ben & Jerry’s. Em julho de 2016, a Unilever realizou a aquisição da startup americana Dollar Shave Club, clube de assinatura de produtos de barbear, mercado no qual a empresa ainda não atua e que é dominado pela rival Procter & Gamble com a marca Gillette. O negócio, que, segundo fontes do mercado, custou 1 bilhão de dólares, também deverá seguir operando de forma independente e sob o comando de seu fundador, Michael Dubin. Ao que parece, mais uma gigante que não apenas engoliu o pequeno mas também decidiu ouvi-lo.