Joaquim Macedoe a mulher, Agostinha: nascidos e criados em Betânia do Piauí, eles nunca tiveram energia elétrica em casa (Cristiano Mariz/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h40.
O agricultor piauiense Joaquim José Macedo, de 68 anos, não é um entusiasta da política, mas tem na ponta da língua muitas das propostas feitas pela presidente eleita, Dilma Rousseff, durante sua campanha. Ao lado da mulher, Agostinha Maria, de 70 anos, ele ouvia diariamente o horário eleitoral pelo velho rádio de pilha que ocupa um lugar de destaque na sala de sua casa humilde, com tijolos à mostra. O casal, visitado pela reportagem de EXAME, mora na zona rural de Betânia do Piauí, município de 8 000 habitantes, localizado a 500 quilômetros da capital, Teresina. “Só conhecemos a voz da Dilma”, afirma Macedo. “Se eu encontrar com ela na rua, não vou saber quem é.”
Os Macedo não têm televisão. Também não têm geladeira, ventilador nem qualquer outro eletrodoméstico. O motivo: a área onde moram não é atendida pela rede elétrica da estatal Eletrobras Piauí, antiga Cepisa, considerada uma das piores distribuidoras de energia do país. Nascidos e criados em Betânia, os Macedo nunca tiveram energia elétrica em casa. Segundo eles, muitas promessas já foram feitas nos últimos 20 anos, mas até hoje não há sinal de luz por perto. “Desta vez, espero que a presidente Dilma cumpra o que disse na campanha e leve realmente a luz para todos os brasileiros”, diz ele.
Estatísticas da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) indicam que o Brasil ainda possui quase 2,5 milhões de domicílios sem atendimento, ao menos oficialmente, da rede elétrica, a maioria deles nas regiões Norte e Nordeste. São cerca de 10 milhões de pessoas que vivem na escuridão, 640 000 apenas no Piauí, estado com o maior índice de residências sem abastecimento: 24%. Em São Paulo, o estado em melhor situação, esse índice é 0,4%. No Piauí, a cidade de Betânia é a que possui o mais baixo índice de atendimento: apenas 17% das 1 810 casas — ou seja, 309 lares — estão oficialmente ligadas à rede elétrica. A cidade também não tem rede de saneamento e a água potável chega por caminhões-pipa.
Pode-se dizer que entre os brasileiros que estão no escuro também figura o principal executivo da Eletrobras Piauí, Pedro Hosken. Presidente da companhia desde abril de 2010, ele despacha do Rio de Janeiro, a mais de 2 000 quilômetros de onde estão os problemas, e afirma desconhecer a situação operacional do negócio. Hosken diz não saber que no núcleo urbano de Betânia do Piauí, onde as linhas de transmissão da empresa chegaram há seis meses, o serviço ficou pela metade. Até agora as ligações domiciliares não foram feitas. Mas, com os postes por perto, muitas casas estão roubando energia por fios puxados clandestinamente, os chamados “gatos”. Hosken não sabe também que os funcionários da Eletrobras Piauí vêm instalando medidores de consumo em casas com “gatos”. Ou seja: eles não fazem a ligação oficial, mas instalam o equipamento na saída da linha ilegal.“É uma coisa absurda, que eu vou mandar averiguar”, diz Hosken. Ele admite que a situação da companhia é complicada. Em 2008, quando a Eletrobras iniciou uma intervenção para sanear a Cepisa, o prejuízo acumulado era de 1,3 bilhão de reais, 130 000 clientes estavam sem medição de consumo e o nível de inadimplência médio era de seis meses e meio. “Aportamos 1,2 bilhão de reais para respirar”, afirma Hosken. “Mas as condições ainda são difíceis. O nível de perdas é elevado e os funcionários estão desmotivados.”
Em Betânia não existe posto de atendimento da concessionária. Quando algum problema é identificado, técnicos precisam ser deslocados da cidade vizinha de Paulistana, num trajeto de 50 quilômetros por estradas de terra. Muitas vezes, reparos simples levam dias para ser feitos. “O atendimento da Eletrobras na cidade é péssimo”, afirma o prefeito José Evangelista da Rocha (PDT). “Já fui cobrar melhorias várias vezes, mas os prazos nunca são cumpridos.” A Eletrobras Piauí diz que foram feitas mais de 100 000 novas ligações de energia no estado em 2009 e 2010, números que ainda não teriam sido computados pela Aneel nas estatísticas. Faltaria ligar cerca de 50 000 casas. “Vamos chegar ao fim de 2011 com todos os domicílios conectados à rede elétrica”, afirma Pedro Hosken. Enquanto isso não ocorre, famílias que ainda não têm acesso ao serviço levam uma vida quase medieval. A varredora de rua Leonice dos Santos Alves, de 35 anos, mora no centro de Betânia com os quatro filhos, o neto recém-nascido e o genro em uma casa de apenas um cômodo. “É uma situação bem ruim”, afirma Leonice. “Temos uma criança pequena e não podemos guardar leite ou um pedaço de carne porque não dá para ligar uma geladeira.”
Mercado paralelo
Diante da ausência da concessionária, os betanhenses cada vez mais adotam “gatos” para sair do escuro. Na cidade, por toda parte é possível ver postes de madeira improvisados e fios pendurados, estendendo-se até por mais de 1 quilômetro. Alguns ex-funcionários da Cepisa passaram a oferecer ligações clandestinas. Cobram 30 reais pelo serviço. “É só subir no poste, fazer a emenda e puxar até a casa”, diz um desses especialistas, que prefere não se identificar. Ele conta que, desde que os novos postes foram instalados, fez pelo menos 50 extensões ilegais. “Fora as mais de 100 que eu tinha feito antes.” A proliferação desse mercado tem criado novas situações esdrúxulas.
A funcionária pública Ilda Venância da Silva, de 37 anos, foi uma das pessoas que contrataram os serviços do ex-empregado da Cepisa. Ela mora com o marido e três filhos numa casa modesta na periferia de Betânia e viu um poste da Eletrobras Piauí ser instalado na porta de casa. Cansada de esperar pela ligação oficial, decidiu puxar um “gato”. Meses depois, os técnicos da concessionária apareceram em sua casa. Disseram que iriam colocar um relógio medidor de consumo e que voltariam em alguns dias para fazer a ligação oficial. A moradora autorizou o serviço e o relógio foi instalado na fiação existente. Os funcionários nunca mais voltaram, mas as contas de luz começaram a chegar — e em dobro. Devido a um erro da companhia, Ilda tem recebido duas faturas todo mês. “A gente tenta fazer a coisa certa, mas aqui é impossível”, diz ela, que vem pagando as contas por medo de ter o nome inscrito no cadastro do Serviço de Proteção ao Crédito.
A maioria dos vizinhos de Ilda, no entanto, não permitiu a instalação do relógio. Eles exigem um serviço de qualidade antes do início da cobrança. Devido ao grande número de ligações ilegais, o fornecimento de energia na cidade é irregular. No horário de pico, por volta das 20 horas, a eletricidade que chega às casas é insuficiente para ligar um ventilador. As lâmpadas ficam amareladas e todos os aparelhos precisam ser desligados das tomadas, sob o risco de, por causa de um pico da energia, nunca mais voltarem a funcionar. A dona de casa Emerenciana Jesus Neto, de 37 anos, já foi vítima da instabilidade da rede. Há cinco anos, teve a geladeira queimada por uma descarga elétrica. “Esse é o preço do ‘gato’ ”, diz. “Eu não vou arriscar comprar outra, pois vai queimar também.” Desde então, o eletrodoméstico é usado para guardar copos e panelas. “Troquei uma geladeira por um armário”, brinca ela.
Erro de avaliação
Depois do Nordeste, o Norte é a região que mais concentra brasileiros desprovidos de energia elétrica. Lá estão os outros três estados em pior situação logo acima do Piauí no ranking: Tocantins, Acre e Pará. Nesses locais, é compreensível a dificuldade de chegar com os fios até as famílias que vivem isoladas na imensidão amazônica. “A floresta e o clima desfavorável são barreiras naturais”, diz Flávio Decat, presidente da Celpa, concessionária paraense privatizada em 1998 e controlada pelo grupo Rede. “Além disso, o Pará é muito grande. Só o município de Altamira tem mais da metade do tamanho do estado de São Paulo.” Ele afirma que a Celpa fez mais de 100 000 ligações em 2010 e, com isso, o índice informado pela Aneel não corresponderia mais à realidade atual do estado. Como no Piauí, o objetivo no Pará é chegar a 100% de atendimento até o final de 2011.
O Programa Luz para Todos, lançado em novembro de 2003 pela então ministra das Minas e Energia, Dilma Rousseff, de início estabeleceu como meta atender à totalidade da população rural no país até o final de 2008. Mas houve erro de avaliação. Imaginou-se que seriam 10 milhões os brasileiros sem luz no campo. No caminho, foram descobertas muitas novas famílias que vivem no escuro, e não só na zona rural, como se vê no Piauí. O objetivo de levar luz para todos foi então postergado duas vezes. Para cidadãos como Joaquim José Macedo, de Betânia, será uma grata surpresa se em breve uma promessa de campanha se concretizar.