Revista Exame

Por que cada vez mais empresas apostam no marketing de causa

Na onda do marketing de causa, a fabricante de bebidas Ambev vai dedicar 100% do lucro de sua nova marca de água a projetos sociais no Nordeste

Produção da água AMA, da Ambev, em São Paulo (Germano Luders/Exame)

Produção da água AMA, da Ambev, em São Paulo (Germano Luders/Exame)

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Da Redação

Publicado em 21 de janeiro de 2017 às 05h55.

Última atualização em 21 de janeiro de 2017 às 05h55.

São Paulo — Durante quase duas décadas, a Ambev, maior fabricante de bebidas do Brasil, tornou-se referência em alguns aspectos de gestão. É reconhecida, por exemplo, como formadora de executivos: mais de 90% dos vice-presidentes, diretores e gerentes cresceram dentro da empresa. Também consolidou-se como referência na hora de fazer com que funcionários persigam obsessivamente metas de vendas e de corte de custos. Na seara da sustentabilidade, porém, tema cada vez mais responsável por somar valor às marcas, a fabricante de bebidas nunca conseguiu brilhar. Isso porque, durante muito tempo, a Ambev fez o que atualmente é considerado básico: cuidar da ecoeficiência de suas fábricas.

De 2002 a 2015, o índice de consumo de água na produção caiu 41%, e a empresa alcançou a marca de 3,17 litros de água por litro de bebida envasada o melhor índice entre as cervejarias no mundo. No entanto, para se tornar uma liderança em sustentabilidade, não basta ter uma produção ecoeficiente. “Espera-se que as empresas surpreendam os consumidores e se mostrem dispostas a beneficiar a sociedade e o planeta, e não apenas o próprio negócio”, afirma Helio Mattar, presidente do Instituto Akatu, ONG que promove o consumo sustentável, e um dos precursores do movimento de responsabilidade corporativa no Brasil.

Os executivos da Ambev preparam-se agora para dar um passo além com o lançamento de uma marca de água mineral, no final de fevereiro. Até dezembro, segundo os planos da companhia, a marca batizada de Ama — prefixo de várias palavras relacionadas à chuva na língua indígena tupi — estará disponível em todo o país. Num primeiro momento, toda a produção será terceirizada. À primeira vista, o movimento chama a atenção por uma razão puramente comercial.

Trata-se de um mercado que, ao contrário do que aconteceu com rivais como a Coca-Cola, por muito tempo esteve fora dos planos da Ambev. A companhia já teve, no começo da década de 2000, uma marca própria de água mineral, a Fratelli Vita, herança da antiga Brahma que foi descontinuada. Hoje, detém apenas a distribuição das marcas São Lourenço e Pureza Vital, da Nestlé, em bares e restaurantes de quatro estados do país. Mesmo com a crise, esse mercado foi o que mais cresceu em 2016 entre todas as categorias de bebidas não alcoólicas — cerca de 5%, segundo a consultoria Euromonitor. O de cerveja registrou queda de 2% de janeiro a novembro.

O cenário desfavorável afetou os resultados da companhia, cujo lucro líquido encolheu 6,7% nos primeiros nove meses de 2016. Segundo os executivos da Ambev, porém, a intenção não é simplesmente entrar num mercado promissor. Todo o lucro obtido com a venda do produto será usado para promover o acesso a água potável para populações do Brasil que sofrem com a falta do recurso. “Não vamos resolver o problema, mas podemos ajudar”, afirma o cearense Bernardo Paiva, presidente da Ambev.

O novo produto marca uma guinada na estratégia de sustentabilidade da Ambev para fora dos muros de suas fábricas. Em 2010, a companhia assumiu como bandeira o tema que teria mais afinidade com seu negócio: a água, principal matéria-prima de seus produtos. Dali em diante, em parceria com as ONGs ambientalistas WWF e TNC, vem atuando na proteção e na recuperação de rios e nascentes Brasil afora. A questão é que os resultados das ações implementadas, como o plantio de matas ciliares, só serão percebidos no longo prazo.

Desde o final de 2015, os executivos da Ambev vinham estudando maneiras de tornar a política de água da companhia perceptível aos olhos dos consumidores de maneira imediata. Após uma sondagem com especialistas, eles chegaram a uma questão urgente: a seca no Nordeste. Estima-se que 35 milhões de brasileiros ainda não tenham acesso a água potável, e é nessa região que está boa parte deles. Uma questão agravada desde 2011 por causa da seca, considerada a mais severa desde o início do século passado. “Se podemos atuar para entregar resultados imediatos para uma questão tão séria, por que não?”, afirma Renato Biava, diretor de sustentabilidade da Ambev.

O próximo passo foi buscar quem pudesse orientar a decisão do que fazer na prática. A Ambev escolheu a Avina, respeitada fundação familiarizada com a região e com o assunto. Por meio da entidade, a empresa entrou em contato com o Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar), ONG que estrutura a operação e a manutenção de sistemas de abastecimento de água e esgoto no interior nordestino. Com o apoio do Sisar, a Ambev deu início a um projeto piloto: o financiamento de perfuração de poços e a instalação de painéis solares em três pequenas comunidades rurais cearenses.

Na de Sítio Volta, a cerca de 180 quilômetros de Fortaleza, um rio intermitente que fornecia água de maneira precária às 219 famílias do local secou no final de 2015. Com isso, a rede de distribuição e a estação de tratamento de água que estão sendo construídas pelo governo estadual, e deverão ficar prontas em abril, ficariam sem utilidade. O poço dará à população de Sítio Volta a perspectiva concreta de deixar de sofrer com a seca. As placas solares fornecerão a energia limpa necessária para que essa infraestrutura — de bombea-mento, filtração e distribuição — funcione a um custo baixo.

A investida até agora ainda é tímida — e somou cerca de 300 000 reais —, mas, dependendo do resultado da marca Ama, o projeto deve ganhar escala. Os executivos da companhia não revelam quando o lucro deverá começar a aparecer e qual será seu tamanho. Mas projetam para a Ama uma rentabilidade de 25%. Eles baseiam a perspectiva otimista em dados concretos. A água mineral, entre as bebidas, só perde em rentabilidade para os energéticos. “A apresentação da Ama será o clímax de nossa convenção neste ano”, diz Paiva. “A marca vai entrar na meta dos vendedores como qualquer outro produto.” Ele se refere ao evento anual- da Ambev, em meados de janeiro, com 3 500 executivos da companhia.

Marketing de causa

Não é que a Ambev esteja inventando a roda. Com a marca Ama, ela seguirá o caminho trilhado por outras empresas de bens de consumo. Trata-se do chamado marketing de causa — quando uma companhia associa sua marca a uma bandeira ligada ao negócio e com potencial de sensibilizar os consumidores. Dados da consultoria americana IEG mostram que as empresas instaladas nos Estados Unidos investiram 2 bilhões de dólares em campanhas relacionadas a causas em 2016 — 3,3% mais do que em 2015. E o dobro do registrado há uma década.

A fabricante brasileira de cosméticos Natura foi uma das pioneiras ao lançar, em 1995, a linha de produtos Crer para Ver. Todo o seu lucro é direcionado para o Instituto Natura com o propósito de melhorar a educação no país. Em 2015, somou quase 20 milhões de reais. A concorrente Avon fez algo semelhante com a defesa dos direitos da mulher. Pelo menos um cosmético de todo catálogo tem um percentual da venda revertido para a causa. A receita foi de 13 milhões de reais em 2015. A marca de sandálias Havaianas, da Alpargatas, controlada pelo grupo J&F, também desenvolveu algo na mesma linha. Desde 2004 lança coleções de sandálias em parceria com a Ipê, ONG brasileira que atua em prol da conservação da biodiversidade brasileira. A empresa doa 7% da receita líquida do produto à entidade. Do início da parceria até 2015, foram 13 milhões de pares vendidos e 7 milhões de reais entregues à Ipê.

No caso da Ambev, um site criado para a água mineral Ama deverá propagandear detalhes das ações de acesso a água potável. Também vai divulgar os custos discriminados do produto e revelar, em tempo quase real, por meio de um “lucrômetro”, os lucros gerados para filantropia. Os números serão validados pela auditoria KPMG. Todo o esforço de transparência é visto como crucial para a iniciativa ganhar legitimidade. No geral, há muita desconfiança em relação ao bom-mocismo das empresas. Pesquisas do Instituto Akatu revelam que apenas 8% dos brasileiros acreditam incondicionalmente nas ações de responsabilidade socioambiental e quase metade simplesmente não acredita.

Outra fatia, de 28%, até dá a elas algum crédito, mas isso depende muito da empresa em questão. A Ambev não é exatamente uma companhia tida como “boazinha”. Ao contrário. Tem fama de ser truculenta nas relações com fornecedores e concorrentes. Conclusão: será um desafio e tanto. Mas se essa etapa for superada, especialistas e executivos são unânimes em afirmar que a Ama terá potencial para incomodar as empresas que hoje disputam o mercado de água mineral no país e gerar dinheiro para benfeitorias no Nordeste.

Paiva não diz até quando vai o contrato de distribuição da Ambev com a Nestlé. Quando acabar, porém, não deverá ser renovado. Até lá, nada de vendas da Ama em bares e restaurantes nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Minas Gerais. Procurada, a Nestlé não quis comentar. Por ora, a investida será mesmo nos supermercados, onde a Danone, com a marca Bonafont, lidera com uma participação de quase 20%. Logo atrás vem a Coca-Cola, com a Crystal. Paiva garante que hoje a empresa não tem planos de lançar outras marcas de água além da Ama. “Queremos que esse negócio seja grande. E, mais do que isso, tornar o projeto uma referência no Brasil e no mundo”, diz. A meta está lançada. Dessa vez, se for batida, o ganho não será apenas dos acionistas da Ambev — mas de alguns dos mais pobres entre os brasileiros. 

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