Reator de Angra 2: neutralidade diplomática brasileira é um trunfo do setor, amplamente influenciado pela geopolítica (Brazil Photos/Getty Images)
Editor ESG
Publicado em 22 de março de 2023 às 06h00.
Projeções da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês) indicam que o mundo terá de dobrar sua capacidade de produção de energia nuclear até 2050 se quiser chegar ao net zero, expressão em inglês que significa emissões neutras de carbono. Essa é a principal condição para manter o aquecimento global abaixo de 2 graus Celsius e evitar as piores consequências das mudanças climáticas, um dos grandes riscos enfrentados pela humanidade. Na visão da IEA, investir em reatores nucleares é fundamental para salvar o planeta.
Há pouco mais de dez anos, associar a expansão do número de reatores com qualquer assunto ambiental seria motivo de cancelamento. Após o acidente de Fukushima, no Japão, em 2011, a energia nuclear passou por um processo de marginalização, associada a riscos incalculáveis. Países anunciaram o desligamento de usinas, e por um período de quatro anos nenhum projeto foi anunciado.
A realidade, hoje, é diferente. Frases como “a energia nuclear é limpa” são aceitas no mainstream econômico e entre os defensores de uma atuação focada em conceitos ambientais, sociais e de governança (ESG). O que mudou para, em um período tão curto, uma fonte energética tida como de alto custo (chegou a ser chamada de “a maneira mais cara de ferver água”), obsoleta e insegura sair da iminente extinção para o status de estratégica? A resposta está na França.
Nenhum outro país depende tanto da energia nuclear quanto a França. Seus 56 reatores são responsáveis por 70% do consumo interno. Esse cenário é resultado de uma política que se começou no início dos anos 1970, quando questões geopolíticas envolvendo o Oriente Médio provocaram a primeira grande crise do petróleo e uma escassez do combustível fóssil. Os franceses conquistaram a independência energética a partir do desenvolvimento da indústria nuclear, fato que ficou esquecido até pouco mais de um ano atrás, quando outro problema geopolítico ocasionou mais uma crise energética: a invasão da Ucrânia pela Rússia. Enquanto britânicos e alemães, dependentes do gás natural russo, temiam a chegada do inverno, os franceses lembravam de seus reatores e se imaginavam como a formiga na fábula da cigarra preguiçosa.
A Europa, então, se viu diante do maior paradoxo da chamada transição energética, processo em curso que visa migrar a matriz energética global de um modelo centrado nos combustíveis fósseis para um mix renovável e, assim, descarbonizar a economia. A ideia é ótima, mas, antes de renunciar a tudo que trouxe a humanidade até aqui, é preciso se certificar de que não vai faltar luz ou aquecimento. Quando a subida é muito íngreme, um bom e confortável tênis velho sempre se mostra valioso, mesmo quando o novo parece mais confortável.
Limpa e confiável
“Não existe uma fonte que garanta tanta estabilidade para o sistema”, afirma Eduardo Grand Court, presidente da Eletronuclear, estatal que opera as duas usinas nucleares brasileiras, Angra 1 e 2, e é responsável pela construção da terceira, Angra 3. “A energia nuclear não foi considerada limpa por mero acaso.” Essa discussão, diz Grand Court, foi contaminada por questões ideológicas. Em 2011, o mundo assistiu perplexo a usina de Fukushima, no Japão, colapsar após um terremoto seguido de tsunami. Foi o maior acidente depois do desastre de Chernobil, em 1986, e resultou na evacuação de mais de 170.000 pessoas. Na Europa, ganhou força um movimento a favor do descomissionamento de usinas, especialmente na Alemanha, que anunciou o encerramento de toda a sua produção nuclear. Foram quatro anos até que um novo projeto de construção de usina nuclear fosse anunciado no mundo, nos Estados Unidos. Nesse mesmo período, as fontes solar e eólica cresceram exponencialmente, impulsionadas pela assinatura do Acordo de Paris, em 2015.
Apesar do avanço das renováveis, o ritmo de substituição dos combustíveis fósseis se mostrou lento para a necessidade de descarbonização global. Novas evidências científicas, reunidas nos relatórios anuais do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), apontaram para uma urgência maior do que a estimada inicialmente: no passo atual, o planeta está mais próximo de aquecer 3 graus Celsius até o final do século do que o ideal de 2 graus Celsius. Em 2016, a Alemanha desistiu de abandonar por completo seus reatores. Em 2018, na COP25, conferência do clima da ONU, realizada em Madri, o vice-presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans, ao anunciar a política de incentivos do bloco para a transição verde, que incluía quase 1 trilhão de euros para a transição econômica, comunicou também que a fonte nuclear seria considerada limpa, abrindo caminho para a volta triunfal dos reatores atômicos ao palco principal do mercado de energia.
Mercado aquecido
Dizer que a energia nuclear é limpa não é nenhum absurdo. Apesar de não ser uma fonte renovável, pois seu combustível, o urânio, é finito, o modo de produzi-la por meio da divisão do núcleo de um átomo, a chamada fissão nuclear, não resulta na emissão de carbono. E o resíduo gerado pelo reator, ainda que altamente tóxico, pode ser tratado e armazenado de maneira segura. Isso tudo, claro, se nenhum reator explodir ou derreter, como aconteceu em Chernobil e Fukushima. Existem, atualmente, 436 usinas nucleares em operação no mundo. A Ásia lidera em número de unidades, com 144, seguida da Europa (119) e da América do Norte (113). Na América do Sul são cinco, incluindo as duas brasileiras. Há, neste momento, 53 usinas em construção no planeta.
Dois países lideram o mercado de construção de usinas, a China e a Rússia. Talvez pelo fato de ser uma tecnologia com amplo poder de destruição, há certa colaboração entre os principais fornecedores. “Às vezes competimos, às vezes colaboramos”, afirmou Ivan Dybov, presidente da estatal russa Rosatom na América Latina, em entrevista à EXAME. “O mercado nuclear é muito conectado.” Os russos são especialistas em usinas nucleares compactas, de pequeno porte, que vêm ganhando espaço pela facilidade de construção e menor potencial destrutivo em caso de acidente. Essa tecnologia, inclusive, é utilizada em usinas flutuantes, derivadas dos navios quebra-gelo utilizados pela Rússia em rotas pelo Ártico, que podem ser integradas a projetos de energia eólica offshore (em alto-mar).
A associação entre nuclear e renováveis, por sinal, é constante no discurso dos principais players da indústria —como um recém-divorciado de meia-idade que resolve sair com o pessoal mais novo do trabalho e se vê adquirindo ingressos para o festival Lollapalooza. Mas há um elemento que pode, definitivamente, unir as duas gerações, e ele se chama hidrogênio. Há uma corrida em curso pelo desenvolvimento do chamado hidrogênio verde, um poderoso combustível renovável obtido da quebra das moléculas da água por meio da eletrólise. O problema: é preciso altas quantidades de energia para fazer isso, só valendo a pena se essa energia for limpa e barata. Nesse aspecto, o casamento entre a experiente nuclear e a novata eólica se mostra muito conveniente.
A novela Angra 3
No Brasil, a expansão da capacidade nuclear é discutida há décadas, mas o processo está emperrado pela maior disponibilidade de recursos para as fontes renováveis, notadamente eólica, solar e biomassa, que contam com diversas possibilidades de financiamento privado. E por causa de escândalos de corrupção que assolam as obras de Angra 3 desde 1984, quando foram iniciadas. O último se deu em 2019, numa operação da Lava-Jato que chegou a prender o ex-presidente Michel Temer.
O atual presidente da Eletronuclear, que assumiu o posto no ano passado, considera o momento positivo para o setor. “O grande erro é pensar que a nuclear e as renováveis são concorrentes. Elas são complementares”, afirma Grand Court. Novos investimentos, no entanto, dependem do governo, que, diz ele, já deu sinais positivos em relação a uma retomada na expansão.
Uma facilidade adicional do Brasil nesse mercado está na neutralidade diplomática. Embora a guerra na Ucrânia tenha fomentado a busca pela solução nuclear, os mesmos atores estão profundamente envolvidos no mercado nuclear. A Rússia, um dos maiores fornecedores de tecnologia nuclear, também é líder na produção de urânio. Mas, enquanto russos e europeus brigam por causa do petróleo, quando se trata de energia nuclear há bastante disposição para o diálogo. Tanto que estão todos juntos em um dos maiores projetos científicos da história.
A união faz a força
Os reatores em operação atualmente utilizam o processo de fissão nuclear para produzir energia. Essa também é a tecnologia utilizada na bomba atômica. Em 1949, os americanos desenvolveram outra arma de potencial ainda mais destrutivo, a bomba de hidrogênio, que trazia uma nova maneira de explodir tudo: a fusão nuclear. Essa tecnologia simula uma reação que acontece no Sol, quando dois núcleos de átomos se fundem para criar outro.
Há uma série de vantagens em usar a fusão nuclear para fins pacíficos, como o fato de não gerar lixo tóxico nem insumos radioativos e o baixo risco de explosão. O difícil é controlar o processo. Para gerar a fusão, é preciso um ambiente de altíssima temperatura e pressão. Até recentemente, ninguém havia conseguido obter mais energia do processo do que o gasto no controle dele. Isso mudou em dezembro do ano passado.
Jennifer Granholm, secretária de Energia dos Estados Unidos, foi quem deu a notícia. Utilizando uma tecnologia de lasers, cientistas americanos conseguiram um saldo positivo de energia da fusão pela primeira vez. O barulho foi digno do marketing americano, porém exagerado: a ciência ainda está longe de dominar a tecnologia.
A mais importante inciativa na área, no entanto, é realizada na França. No país mais nuclear do mundo, um consórcio entre China, União Europeia, Índia, Japão, Coreia, Rússia e Estados Unidos trabalha na construção de uma estrutura, chamada de Tokamak, feita para simular as condições de temperatura e pressão que viabilizam a fusão nuclear. Ao custo de 17 bilhões de euros, é essa iniciativa, batizada de Iter (“o caminho”, na tradução do latim), que deve permitir o desenvolvimento da tecnologia.
“É uma energia limpa, segura e praticamente infinita”, afirma Amir Zacarias Mesquita, professor e pesquisador do Centro de Desenvolvimento da Tecnologia Nuclear. Segundo ele, se tudo der certo, a fusão nuclear se tornará uma realidade em até 50 anos, bem a tempo de substituir os atuais reatores nucleares, cuja obsolescência se dará em 60 anos. Até lá, Mesquita acredita que o mundo seguirá confiando na fissão nuclear, mesmo que, ocasionalmente, um ou outro reator sofra um probleminha. “Se formos comparar, morreram mais pessoas em acidentes em minas de carvão do que em usinas nucleares”, afirma. O casamento entre energia nuclear e descarbonização está consumado, na alegria e no desastre, eterno enquanto dure.