Ministro Paulo Guedes: o liberal raiz que tenta emplacar uma agenda reformista (Mauro Pimentel/AFP/AFP)
Carla Aranha
Publicado em 21 de maio de 2020 às 05h30.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h57.
Na noite de 15 de maio, a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos aprovou um novo estímulo de 3 trilhões de dólares, dobrando os recursos destinados a amortecer a crise econômica gerada pela pandemia do novo coronavírus no país, o mais atingido pela doença no mundo.
Com pouco mais de um terço da população americana, o Japão, que havia liberado 1,1 trilhão de dólares, considera uma nova rodada de estímulos fiscais para que sua frágil economia não entre numa derrocada ainda mais profunda.
No Brasil, que já vivia sua batalha particular para retomar o crescimento antes do surgimento da covid-19, o governo federal reservou 253 bilhões de reais para o enfrentamento da crise e também é pressionado a injetar mais dinheiro na economia. No mundo, a receita quase unânime para evitar o colapso tem se limitado a pesados estímulos econômicos e fiscais. Apesar do desejo de retomada da normalidade, as consequências serão sentidas por muitos anos, criando um desafio sem precedentes para os governos e, sobretudo, para os defensores do liberalismo econômico.
Num mundo pré-coronavírus parecia haver consenso de que um Estado mais enxuto, focado em atividades essenciais, com menos intervenção na economia e mais investimento privado era a chave para gerar mais riqueza. É o receituário liberal — embora as definições de liberalismo sejam tão amplas quanto as de isolamento social.
Ninguém pratica mais o receituário de Margareth Thatcher, da Inglaterra dos anos 1980, considerado o liberal raiz em ação, mas quase todo mundo concorda que a iniciativa privada é mais eficiente em gerar inovação e que os governos, salvo raras exceções, não deveriam se meter na produção de bens e serviços.
Sob o guarda-chuva de liberais, estão conservadores que criam regras duras contra imigrantes e os que defendem a liberação das drogas na seara dos costumes. Mesmo o Brasil, onde os economistas liberais tinham pouco espaço no debate público (num passado não tão distante, a piada era que todos juntos cabiam numa Kombi), tem agora um liberal à moda antiga no Ministério da Economia, Paulo Guedes.
Egresso da Escola de Chicago, onde teve aulas com Milton Friedman, Nobel de Economia de 1976 e um dos liberais mais importantes da história, Guedes tem em sua cartilha uma extensa agenda de privatizações, medidas de desburocratização, retirada de incentivos setoriais e outras disfunções clássicas do Estado brasileiro. Tudo isso continua necessário por aqui — agenda, aliás, que já foi resolvida por outros países há muito tempo.
Mas, com a pandemia, cresce a necessidade de uma revisão do papel que Estados e governos devem desempenhar. “Os impactos econômicos do coronavírus estão redesenhando a política econômica de muitos governos, o que poderá durar meses ou anos”, disse em entrevista à EXAME o economista americano Edwin Truman, pesquisador do Instituto Peterson, de Washington, e ex-secretário assistente do Tesouro Americano de 1998 a 2001. “Muitos países reconhecem que agora é necessário fazer tudo o que for preciso para combater o sério revés econômico causado pela pandemia, o que significa estender ao máximo a política monetária e fiscal.”
Apesar de única, a reviravolta econômica e social provocada pelo coronavírus tem aspectos semelhantes a várias hecatombes que atingiram a humanidade, como a Grande Depressão, em 1929, quando a quebra da bolsa americana e a recessão que se seguiu deixaram milhões de desempregados e um buraco nas contas públicas.
Nos Estados Unidos, o déficit público passou de 0,7%, antes da quebradeira financeira, para 5,4%, em 1934, em uma curva ascendente galopante. A Segunda Guerra Mundial provocou outro cataclismo econômico, com a Europa e o Japão em frangalhos. “Em momentos muito impactantes, como guerras e profundas recessões econômicas, em geral cabe ao Estado tomar as rédeas da situação, deixando de lado valores clássicos do liberalismo”, diz o historiador americano Alexander Zevin, professor na Universidade de Nova York, especializado em correntes econômicas e no liberalismo. “O livre mercado e o Estado mínimo podem funcionar bem em condições ideais, mas dificilmente isso acontece em momentos extremos da humanidade.”
Não é a primeira vez que o governo americano precisa intervir na economia para salvar empregos e lidar com uma crise catastrófica, colocando em xeque valores como a presença mínima do Estado e um controle estrito dos gastos orçamentários. Depois de patinar na depressão econômica causada pela quebra da bolsa em 1929, os Estados Unidos elegeram um presidente com uma plataforma baseada na intervenção do Estado na economia.
O liberalismo clássico levou um choque. Para reerguer o país, Franklin Roosevelt, eleito em 1932, adotou uma política econômica voltada para criação de benefícios sociais e investimentos na construção civil para gerar empregos. A dívida pública passou de quase 23 bilhões de dólares, em 1933, para 33 bilhões, nos três anos seguintes. O endividamento do país continuou aumentando durante os anos 1940 e na década seguinte, em boa parte devido aos gastos adicionais da participação americana na Segunda Guerra Mundial.
Em 1946, alcançou 120% do PIB, um dos maiores da história. A manutenção de políticas de estímulos e de afrouxo fiscal nos anos seguintes permitiu que o poder de consumo das famílias americanas crescesse quase 30% no final dos anos 1950 e que a taxa de desemprego estacionasse em 4,5%. Em seguida à época de ouro americana, vieram pressão inflacionária e crises externas, como o choque do petróleo. Nos anos 1980, o liberalismo recobrou as forças e ganhou importantes aliados nos Estados Unidos, com Ronald Reagan, e no Reino Unido, com Margaret Thatcher.
Ao longo da história recente, o fato é que os países vêm sacando políticas econômicas inspiradas nos ensinamentos de liberais clássicos, como Adam Smith e John Stuart Mill, ao lado de medidas keynesianas, em que os governos atuam diretamente na economia. Agora, mesmo liberais conhecidos, como Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (banco central americano), e praticamente toda a equipe econômica montada pelo presidente Donald Trump estão insistindo na importância de liberar mais dinheiro para a economia. “Se isso ajudar a evitar estragos de longo prazo na economia e proporcionar uma recuperação mais robusta, pode valer a pena”, afirmou Powell, em Washington, antes da aprovação da nova rodada de estímulos no Congresso americano. Ou seja, em momentos como o de uma pandemia, a ideia do helicopter money, expressão cunhada por Friedman em alusão ao dinheiro sendo jogado literalmente nas mãos dos cidadãos, ganha força e apoiadores.
Manter o déficit fiscal sob rígido controle e reduzir os gastos públicos nas atuais circunstâncias ficaram lá atrás na fila de prioridades. O déficit público nos Estados Unidos deverá passar de 5% do PIB, em 2019, para 18%, neste ano. E não se fala em objeções ao aumento dos gastos. Em praticamente todo o mundo, tem sido assim. No Japão, o déficit deverá dobrar neste ano, chegando a 8% do PIB. Não faltam exemplos como esses nos dois hemisférios, não importam a diretriz política ou os princípios econômicos seguidos pelos países. A estimativa de organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, é que o endividamento global dos países aumente 20 pontos percentuais em 2020. No Brasil é projetado um aumento da dívida pública de 8 a 10 pontos percentuais durante alguns anos.
Com uma contração econômica mundial prevista entre 5% a 6% do PIB e um aumento do déficit público de 4%, em 2019, para quase 10%, neste ano, o desafio dos países será descobrir quando e em que medida terão de voltar a apertar os cintos e como estimular o machucado espírito animal do setor privado. A grande pergunta é se o liberalismo dará conta dessa missão gigantesca e quais serão as consequências do afrouxamento das políticas fiscais.
Em meio à pandemia que já contaminou globalmente quase 5 milhões de pessoas, debates como a necessidade de um sistema público de saúde que atenda a população mais vulnerável estão na ordem do dia de países como os Estados Unidos, assim como o fortalecimento do SUS ganha apoiadores no Brasil, como mostra a reportagem “Uma cura para o SUS” nessa edição. “Esta crise pode representar uma oportunidade para refletirmos sobre até que ponto alguns princípios liberais devem prevalecer em um mundo pós-coronavírus, com mais necessidade de proteção social”, diz o economista americano Hector Torres, pesquisador do Centro Internacional de Governança e Inovação, organização dedicada à análise de políticas fiscais e monetárias.
No Brasil, as ideias liberais já vinham sofrendo um contra-ataque antes mesmo da pandemia. Apesar de ser visto como pilar do governo de Jair Bolsonaro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, tem perdido batalhas importantes — e aproveita para mandar indiretas de que seu futuro à frente da pasta pode não estar garantido. O estopim para um possível desembarque seria o aumento desenfreado dos gastos públicos na tentativa de aplacar a crise econômica.
O resultado seria o avanço da dívida pública sobre o produto interno bruto. “Se o presidente mantiver o rumo, pode trocar o ministro da Economia quantas vezes quiser, mas se tirar [o país] do rumo certo, poder colocar o ministro que quiser que vai dar errado”, disse Guedes no dia 15 de maio, num evento em comemoração aos 500 dias do governo. No rumo certo seria implantar reformas estruturais, como a tributária e a administrativa, além de privatizar estatais para ajudar a reduzir a dívida bruta.
As pressões políticas, no entanto, são no sentido contrário: de maior intervenção estatal na economia. “Estamos em um momento de inflexão”, diz Marcos Lisboa, presidente do Insper. “Não podemos repetir os erros do passado, de intervenção na economia sem antes termos feito estudos muito claros, como aconteceu no governo Dilma”, afirma. “Temos certa tendência na América Latina para uma inclinação populista, o que é bastante nefasto e precisa ser evitado.” Nesse cenário, manter políticas anticíclicas mesmo depois que o vento voltar a soprar a favor é um enorme risco na sala — sobretudo com um presidente recém-convertido aos princípios liberais, como Bolsonaro.
No Congresso, Guedes coleciona uma série de derrotas, o que na prática traz incerteza sobre o que o governo deve implementar daqui para a frente. O revés mais recente ocorreu no início de maio, quando os parlamentares excluíram algumas categorias — como profissionais da saúde, policiais e professores — da norma que impede o reajuste salarial de funcionários públicos nos próximos 18 meses.
O congelamento dos salários era a contrapartida exigida pela equipe econômica ao socorro de 125 bilhões de reais a estados e municípios que enfrentam os efeitos nefastos da crise. Quando a pasta procurou o Planalto para tentar reverter a decisão dos parlamentares, descobriu que foi o próprio presidente Bolsonaro quem tinha dado aval à medida.
Para contornar o impasse, o presidente disse que vetaria a decisão do Congresso, mas até o fechamento desta edição da EXAME, em 19 de maio, isso não havia ocorrido. O presidente enfrenta um dilema: de um lado, está o controle fiscal defendido por Guedes e pelo mercado e, de outro, o apoio político de categorias importantes.
Essa não foi a única derrota sofrida pela equipe econômica durante a crise. A recomendação da pasta era que o valor do auxílio emergencial fosse de 200 reais, o que o Congresso rechaçou, dobrando o valor. Bolsonaro, então, definiu que não seria nem um nem outro, e sim um benefício de 600 reais. Antes disso, os parlamentares já haviam elevado o limite da renda familiar per capita para a concessão do benefício de prestação continuada, que atende idosos e deficientes, gerando um impacto estimado de 217 bilhões de reais em uma década.
Em março, o presidente retirou por prazo indeterminado a competência delegada ao ministro da Economia de decidir sobre algumas ações orçamentárias, como a abertura de créditos suplementares e especiais e o remanejamento de recursos. A sucessão de derrotas assusta quem acompanha os meandros de Brasília.
De acordo com um levantamento feito pelo Bradesco BBI, a possível saída do ministro Paulo Guedes do governo nos próximos 12 meses é o risco que mais preocupa executivos do mercado financeiro, seguido pelo temor de uma segunda onda de contágio do coronavírus e da falência de empresas brasileiras. “Existe confiança total na agenda de Guedes e em sua equipe, que contam com apoio maciço do empresariado brasileiro. Em 2021, temos de voltar para a rigidez fiscal e para a política liberal, pois é isso que vai trazer a retomada do crescimento”, diz Luciano Amaral, diretor-geral da Benx Incorporadora, que atua com empreendimentos de médio e alto padrão e para os beneficiários do programa Minha Casa Minha Vida.
O problema é que, de concreto, Guedes só conseguiu a aprovação da Reforma da Previdência, projeto que foi herdado do governo Michel Temer. “Até o momento, o Temer foi mais liberal do que o Bolsonaro: aprovou o cadastro positivo, fez a reforma trabalhista, promoveu a regra do teto de gastos. O discurso do governo Bolsonaro é liberal no papel, mas na prática não chegou a ser de fato”, diz Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados.
Historicamente, a sociedade brasileira nunca se encantou com o liberalismo, o que pavimentou o caminho para um Estado gigante na promessa de prover as necessidades dos cidadãos. Se no início do século 20 o patrimonialismo, em que as esferas pública e privada se confundem, foi a corrente que dominou, nos anos 1950 foi o nacional desenvolvimentismo que deu as caras por aqui. “O Estado não tem condições de liderar o crescimento da economia. Houve tentativas com Getúlio Vargas, com Juscelino Kubitschek, com os militares. Mas era uma visão importada de que o Estado deveria ser interventor”, diz o economista Carlos Langoni, que foi presidente do Banco Central de 1980 a 1983 e é considerado uma espécie de guru de Paulo Guedes. “O resultado disso é uma economia fechada, protegida, com o setor privado atuando apenas como um coadjuvante.”
Com esse histórico, não surpreende que o tamanho do Estado brasileiro tenha crescido nas últimas décadas. O número de funcionários públicos nas três esferas administrativas passou de 5 milhões, em 1998, para 12 milhões, em 2018. Hoje, o setor público é a principal força da economia de 55% dos municípios brasileiros, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Consequentemente, a tentação de intervir sempre está rondando.
Veja um exemplo: no final de março, o governo suspendeu o aumento dos medicamentos por um período de 60 dias, podendo ser prorrogado por mais tempo. Faz sentido congelar os preços de todo e qualquer tipo de remédio por causa da pandemia? Apenas dois países tomaram medidas semelhantes no momento: Rússia e Filipinas. Ambos estão longe de ser exemplos de economia liberal. “O congelamento de preços é negativo para a indústria, pois é um setor que demanda muitos investimentos, principalmente agora. Isso cria um desequilíbrio e reduz as chances de o Brasil liderar importantes estudos clínicos, por causa das incertezas que essas alterações trazem”, diz Gaetano Crupi, presidente da indústria farmacêutica Bristol-Myers Squibb no Brasil.
Além da perda irreparável de milhares de vidas, a fatura do coronavírus ainda não está fechada no país. Estimativas apontam uma perda de riqueza de 600 bilhões a 700 bilhões de reais, dinheiro que simplesmente sumiu. É a diferença entre a previsão otimista de uma expansão de 2% do PIB, no início de 2020, e que agora se transformou num recuo de 4,7%, segundo projeções do próprio Ministério da Economia. Guedes reiteradamente tem dito que a recuperação econômica no Brasil poderá ser acelerada no segundo semestre, mesmo depois de sua equipe ter apontado que a retomada do crescimento em níveis pré-crise viria apenas em 2022.
O ministro vê a possibilidade de uma volta em “V” (uma brusca queda na atividade, seguida de uma aceleração rápida) desde que pautas como o marco do saneamento e o do setor elétrico sejam aprovadas no Congresso, permitindo levar adiante a privatização da Eletrobras, por exemplo. “Acho que Guedes está dando um tiro no próprio pé, pois, quando a economia não voltar como ele está dizendo que vai, a Casa Civil vai desengavetar o programa Pró-Brasil. É o plano B do Bolsonaro, que tem a cara de militares nacional-desenvolvimentistas”, diz Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultoria.
Apelidado de “Plano Marshall brasileiro”, o programa foi elaborado pela Casa Civil com auxílio dos ministérios do Desenvolvimento Regional e de Infraestrutura e tem como objetivo aumentar os investimentos públicos em obras e possivelmente flexibilizar o teto de gastos, propostas que vão de encontro à política econômica de Guedes. “Existem muitos tons de liberalismo, mas em nenhum deles cabem coisas como continuar a ter uma Zona Franca de Manaus ou abraçar uma agenda protecionista da Fiesp”, diz a economista Elena Landau, uma das fundadoras do Livres, movimento multipartidário criado para defender o liberalismo —econômico e de costumes.
Se a pandemia impõe imensos desafios econômicos a qualquer país, ela representa um esforço em dobro para o Brasil. Com mais de 250.000 contaminados pela covid-19, o país vive uma crise política incompatível com tempos de pandemia. Num período de 30 dias, de 16 de abril a 15 de maio, três ministros foram demitidos ou pediram demissão, sendo dois deles da pasta da Saúde. A saída do ex-ministro da Justiça Sergio Moro criou uma nova frente de disputas entre o presidente Bolsonaro e diversas alas do cenário político. “O prestígio do Brasil está no chão. É preciso retomar a confiança dos grandes investidores para que os investimentos voltem para o país. A única forma de fazer isso é com uma guinada liberal”, diz o cientista político Bolívar Lamounier.
Num momento em que o liberalismo vive uma nova transição no mundo, os economistas no Brasil têm feito um chamado a uma renovação da agenda liberal na tentativa de colher resultados rápidos com medidas amplamente conhecidas (e que há tempos vêm sendo prescritas para o país). “A saída é fazer privatizações, concessões e até vender parte das reservas cambiais”, diz Vale, da MB Associados, que teme o risco de “argentinização” da economia brasileira, com o câmbio e a dívida nas alturas, dado o nível das interferências governamentais.
Abrir a economia é outra frente que poderia render dividendos ao país. Langoni, o guru de Guedes, aposta na capacidade de multiplicação de acordos comerciais, como o celebrado com a União Europeia no ano passado. “Se os acordos bilaterais elevassem em cinco anos o coeficiente de importação de 24% para 30%, o nosso PIB potencial cresceria em torno de 1%. Hoje ele é de 2% e, portanto, passaria para algo entre 2,5% e 3%. Mas, se o coeficiente chegasse a 40%, o PIB potencial saltaria para 3,5% a 4%”, diz.
Imigrantes na Grécia: a livre movimentação de pessoas é um dos valores defendidos pelos liberais clássicos | Goran Tomasevic/Reuters
Para minimizar os efeitos da crise, o Ministério da Economia criou, em meados de fevereiro, um comitê que recebe sugestões encaminhadas pela iniciativa privada. Já foram recebidas mais de 2.000 propostas. Dessas, 150 foram aprovadas. São medidas que vão desde a criação da linha de crédito de 40 bilhões de reais para financiar a folha de pagamentos de pequenas e médias empresas durante dois meses até a compra antecipada de passagens para os servidores públicos para ajudar as companhias aéreas.
O Ministério da Economia também criou um pacote de socorro para a aviação, costurado junto com os bancos e com o BNDES, de cerca de 4 bilhões de reais. Quem coordena o grupo de 35 técnicos designados a encontrar as soluções para a crise é o secretário de Desenvolvimento de Infraestrutura, Diogo Mac Cord. “O mundo certamente está passando por uma grande transformação, o que inclui o Brasil”, diz Mac Cord. “Ainda é cedo para fazer grandes previsões, até porque isso depende do comportamento de um vírus novo, do qual não temos ainda muito conhecimento.” Sem dúvida, a pandemia se coloca como um dos maiores desafios para uma geração de economistas que sempre recorreram a um arsenal conhecido para enfrentar os problemas das nações. Que novo liberalismo nascerá depois da pandemia do coronavírus? Desse debate depende o destino de 210 milhões de brasileiros.
Os países devem prestar mais atenção em políticas de bem-estar social e na qualidade do sistema de saúde público
Poucos especialistas têm tanto conhecimento sobre as diferentes matrizes econômicas como o economista americano Hector Torres, ex-diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI) e pesquisador do Centro Internacional de Governança e Inovação, organização dedicada à análise de políticas fiscais e monetárias. Ele vem acompanhando de perto os ajustes que estão sendo realizados em países como os Estados Unidos e o Reino Unido para acomodar valores liberais ao afrouxamento das rédeas dos gastos dos governos e do déficit fiscal. Em entrevista à EXAME, Torres fala sobre o impacto do coronavírus no liberalismo.
A crise do coronavírus pode trazer mudanças no receituário liberal dos países?
Certas políticas liberalizantes parecem ser insustentáveis no momento atual, principalmente porque elas não contribuem para o bem-estar social e a seguridade da população. Hoje, o capital pode circular livremente no mundo, em busca de oportunidades de rentabilidade. Isso faz com que os governos muitas vezes ajustem políticas econômicas tendo em vista uma possível fuga ou atração de capital internacional.
Quais são as consequências disso?
O mercado de trabalho é um bom balizador do que houve nos últimos anos nas economias liberais. A proporção da riqueza dos países destinada à melhoria da qualidade de vida da população e dos salários vem diminuindo no G20. O espaço para acomodar questões sociais e ambientais também foi reduzido. Isso não pode mais continuar assim.
Por quê?
Parece que a coletividade perdeu a força. Veja que a pandemia está atingindo todos os países, mas nem por isso está aproximando as nações. Meu temor é que fiquemos mais ensimesmados e o nacionalismo possa emergir triunfante da crise.
A pandemia pode provocar uma revisão das políticas liberais clássicas?
Bom, estamos assistindo à luta dos governos para proteger a economia com pacotes fiscais e monetários sem precedentes. É bom lembrar também que milhões de pessoas perderam o emprego de repente e que os governos aumentaram os gastos com o chamado bem-estar social, transferindo dinheiro para as pessoas sobreviverem neste período.
O aumento do déficit público e do endividamento dos países também traz riscos?
Sim. Quando os governos usam recursos fiscais para salvar a economia e incentivar a demanda por consumo, normalmente eles são tentados a não abandonar essas políticas. A situação de emergentes, como o Brasil, pode ser mais delicada, já que em geral não há dinheiro público suficiente para bancar programas de ajuda econômica muito extensos. Também existe o risco de descontrole dos gastos públicos, o que ninguém quer.
O senhor acredita que haverá mais integração de políticas de bem-estar social com princípios liberais?
Veremos com mais clareza, em algum momento, o impacto da covid-19 nos modelos econômicos, que poderão, sim, mudar em algum grau. A crise nos faz lembrar de que nossos valores mais essenciais são nossas conquistas no campo social, que podem ser mais bem usufruídas se compartilhadas com várias camadas da população.