Rímoli, da Camargo Corrêa, e equipe: esforço para provar que a empresa mudou (Germano Lüders / EXAME)
Da Redação
Publicado em 13 de maio de 2016 às 09h53.
São Paulo – Ao encerrar uma carreira de 33 anos na fabricante de aviões Embraer, onde começou como estagiário e chegou à vice-presidência, o engenheiro paulista Flávio Rímoli planejava a aposentadoria.
Dois anos depois, em meados do ano passado, um convite o convenceu a trocar o sossego por um desafio espinhoso: liderar a recém-criada área de governança e compliance da construtora Camargo Corrêa e gerenciar um programa de conformidade e controle de riscos numa empresa envolvida num dos maiores escândalos de corrupção da história brasileira.
A proposta veio do colega Artur Coutinho, também ex-Embraer, que na época se preparava para assumir a presidência da construtora no lugar de Dalton Avancini, então réu na Operação Lava-Jato e hoje condenado a quase 16 anos de reclusão por corrupção, lavagem de dinheiro e pertinência a organização criminosa. Além de Avancini, outros dois executivos da empresa já foram condenados.
A despeito da envergadura da missão dada a Rímoli, o assunto compliance não é novidade para ele. Na Embraer, o executivo ajudou a criar uma área destinada ao tema em 2010, logo depois que a empresa foi notificada pela Justiça dos Estados Unidos por participar de um esquema de pagamentos de propina ao governo da República Dominicana em troca de contratos de aeronaves.
Atualmente, 13 pessoas estão sob a alçada direta dele na Camargo Corrêa — e outras 32, de diferentes áreas da empresa, atuam como agentes de compliance — espécie de embaixadores do tema nas áreas de negócios. Metade do bônus de cada um deles está atrelada a metas como a aplicação dos treinamentos anticorrupção. “O objetivo é transformar a cultura da empresa”, afirma o executivo. “O futuro do negócio depende disso.”
Além desses treinamentos, feitos por quase 5.000 funcionários até agora, em janeiro a construtora lançou um programa de incentivo à colaboração. O objetivo é levantar novas informações relevantes no âmbito da Operação Lava-Jato por meio da delação de funcionários e até de ex-funcionários.
Para impulsionar a iniciativa, a empresa criou um mecanismo interno de delação premiada — e comprometeu-se a não demitir os denunciantes e a bancar seus eventuais custos com assessoria jurídica. Até agora nada de novo veio à tona, mas há a expectativa de que novidades possam surgir. Afinal, quanto mais a construtora colaborar com a Justiça, melhor para ela, que se comprometeu, em acordo com o Conselho de Administração Econômica (Cade) e o Ministério Público Federal, a ressarcir aos cofres públicos 804 milhões de reais.
A Camargo Corrêa e as demais empresas envolvidas na Operação Lava-Jato têm razões óbvias para fazer funcionar estruturas de governança que garantam — ou tentem garantir — a idoneidade de seus processos e operações. Tornou-se uma questão de sobrevivência.
Para todas as não envolvidas, o exemplo extremo deu nova dimensão ao risco que a corrupção representa para as empresas instaladas no país. Uma pesquisa exclusiva realizada pela escola de negócios Fundação Dom Cabral (FDC), no final de 2015, com 476 executivos do alto e médio escalão de 181 companhias que operam no Brasil mostrou que, na seara social, o tema da corrupção foi considerado o mais relevante para os negócios.
No levantamento, os executivos revelaram ter sido surpreendidos pela importância que o tema conquistou no último ano e pelo tratamento dado a ele no Judiciário. Segundo Heiko Spitzeck, pesquisador da FDC, dois motivos explicam essa percepção. O primeiro deles: a Lei Anticorrupção.
Em vigor desde 2014, ela define que as empresas podem ser diretamente responsabilizadas por práticas corruptas, e não apenas seus gestores. Há ainda o fator Lava-Jato. “A prisão de altos executivos teve um impacto enorme em como as empresas passaram a avaliar suas práticas de negócios”, diz Spitzeck.
Para a construtora UTC Engenharia, esse impacto foi direto. Um dos donos da empresa, Ricardo Pessoa, foi apontado em novembro de 2014 como líder do cartel de construtoras que combinavam resultados de licitações da Petrobras mediante o pagamento de propina a políticos.
Por ora, a UTC Participações, grupo do qual faz parte a UTC Engenharia, negocia um acordo de leniência com a Controladoria-Geral da União. Enquanto isso, a corrida é para provar que os tempos, agora, são outros e que as mudanças vão além das boas intenções.
No papel, a coisa está funcionando: quem chega ao escritório da UTC Participações, em São Paulo, depara com dezenas de miniversões do código de ética da empresa, editado no ano passado, por todos os lados — da recepção às salas de reunião.
“Precisamos transmitir claramente às pessoas que condutas antiéticas são inegociáveis”, afirma José Guimarães, líder de compliance da UTC Participações há um ano. Sua função é fazer valer uma cartilha de recomendações que têm norteado o chamado “programa de integridade” das empresas, estabelecido pela Lei Anticorrupção.
Ele se reporta ao conselho da companhia para ter autonomia — como a tal cartilha prega — e conta com a ajuda de 43 embaixadores nas áreas de negócio, 56 investigadores e auditores internos mais dois comitês de investigação compostos de diretores e gerentes das demais empresas do grupo UTC.
As denúncias são recebidas num canal de telefone e e-mail operado por uma empresa terceirizada, 24 horas por dia. Até agora quase 10 000 funcionários realizaram treinamentos anticorrupção, que estão divididos em 12 tipos, adequados às diferenças de nível hierárquico e grau de exposição a negociações com o governo. Montar essa estrutura de compliance demandou quase 3 milhões de reais em investimentos da UTC, e desde que ela entrou em operação, dez pessoas foram demitidas.
É fato que a movimentação na Camargo e na UTC tem sido grande, mas ainda é muito cedo para saber se essas empresas ganharão da Justiça e da opinião pública a chancela de honestidade de que tanto precisam. A história recente mostra, porém, que há casos de empresas que, envolvidas em imbróglios semelhantes, conseguiram se redimir.
O caso mais emblemático é o da multinacional alemã Siemens. Em 2008, a empresa foi condenada a pagar cerca de 1,6 bilhão de dólares a autoridades de diversos países por causa de esquemas de propina em contratos públicos, naquele que foi considerado o maior escândalo corporativo da história da Alemanha.
Um ano antes, quando destituiu seu presidente global e diretores, a Siemens estruturou um programa de compliance que teve como resultado, inclusive, denúncias sobre a formação de cartel nas licitações dos trens do estado de São Paulo — investigação que ainda corre em sigilo.
“Implementamos tudo que pudemos num tempo recorde”, afirma Reynaldo Goto, diretor de compliance da Siemens no Brasil. “Hoje, as pessoas têm menos receio de apontar irregularidades porque acreditam que os problemas serão resolvidos.”
A despeito da surpresa que o escândalo na Siemens causou na época, é nas multinacionais que estão instaurados os mais eficazes programas de compliance. Na americana General Electric, os relatos e as dúvidas que chegam pelo canal de denúncias são matéria-prima para o desenvolvimento de treinamentos temáticos.
No ano passado, cerca de 2 000 funcionários da América Latina tiveram sessões para discutir cortesias de negócios e conflito de interesses. Um exemplo: como é patrocinadora da Olimpíada do Rio de Janeiro e terá direito a um lote de ingressos, a GE fez questão de orientar seus executivos sobre quem pode ganhar ingressos da empresa até lá. “Não estamos imunes a deslizes, e o controle tem de ser contínuo”, diz Josie Jardim, diretora jurídica e de compliance da GE na América Latina.
Os especialistas ouvidos por EXAME foram unânimes em afirmar que enquanto o compliance se resumir a um arcabouço de regras e obrigações e não a algo que permeie a cultura da empresa, a chance de que haja uma mudança real no comportamento dos executivos e funcionários é remota.
“As pessoas precisam entender a importância de submeter suas decisões de rotina a um controle mais rígido e acreditar que isso é melhor para o negócio”, afirma Wagner Giovanini, executivo responsável pela implementação do programa de compliance da Siemens no Brasil, há quase uma década, e que hoje comanda a consultoria Compliance Total. “Não ter um sistema de controle de riscos pode custar bem mais caro do que tê-lo.”
Tal mudança cultural, no entanto, pode levar alguns anos. Afinal, vale lembrar que a promulgação da Lei Anticorrupção em 2013 não foi um processo natural. Apesar de ter ratificado a Convenção sobre o Combate à Corrupção da OCDE em 2000, o governo brasileiro só iniciou os esforços para aprovar uma lei depois das manifestações de rua em 2013 — já sob pressão internacional por uma legislação interna.
Em dezembro do ano passado, porém, a presidente Dilma Rousseff baixou a Medida Provisória no 703, que modificou as regras que regiam os acordos de leniência, tratos feitos entre empresas e governos para facilitar as investigações de corrupção e calcular o tamanho das multas a ser pagas.
A alteração na lei permite que a companhia não apenas retome contratos com órgãos públicos como tenha sua multa reduzida se cooperar com informações e prometer cessar a prática ilegal. O argumento para a mudança é a sobrevivência das empresas, que movimentam a economia.
Mas a medida provisória, que ainda pode ser derrubada, vem sendo duramente criticada por advogados renomados. Eles acreditam que a medida coloca em risco a efetividade da lei. “Alegar que é preciso proteger empresas corruptas por causa da economia nacional é como dizer que a máfia italiana não poderia ter sido desarticulada porque empregava muita gente”, afirma o jurista Modesto Carvalhosa.
Por enquanto, ao que parece, é o imperativo da punição que tem incentivado as companhias a criar estruturas de compliance e a fomentar uma suposta mudança de cultura em seus quadros. Se ele deixar de existir, esse movimento perderá fôlego? Carvalhosa está longe de ser o único a acreditar que sim.