Sala de aula do Cimatec, em Salvador: inovações para empresas como Vale, Shell e Embraer | José Paulo Lacerda/divulgação /
Da Redação
Publicado em 24 de maio de 2018 às 05h00.
Última atualização em 24 de maio de 2018 às 05h00.
Localizado a poucas quadras da praia de Piatã, uma das mais belas de Salvador, o Centro Integrado de Manufatura e Tecnologia, mais conhecido pela sigla Cimatec, passa facilmente despercebido como um mero campus universitário. De fato, nos quatro blocos dessa unidade do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) inaugurada há 16 anos, 2 000 alunos de nível superior cursam oito tipos de engenharia altamente demandados em linhas de produção país afora. Há desde as carreiras mais conhecidas, como civil, elétrica e mecânica, até outras, cuja demanda cresceu nos últimos anos, como computação. Outros 1 000 estudantes de nível médio aprendem ali ofícios técnicos valorizados pela indústria, como eletrônica e criação de softwares.
Até aí, nada de muito diferente da realidade de várias instituições de ensino pelo Brasil. Mas, nos últimos anos, o Cimatec vem desempenhando um papel central para acelerar o salto tecnológico tão desejado para a indústria brasileira. Além do envolvimento nos cursos regulares, boa parte dos professores e alunos dali também desempenha o papel de criadores de projetos de manufatura inteligente a pedido de empresas. Desde 2002, o Cimatec recebeu 280 milhões de reais de empresas privadas e estatais para conduzir 72 projetos de inovação. “Nossa missão é adequar nossos clientes ao que existe de mais avançado na Quarta Revolução Industrial”, diz Daniel Motta, gerente de inovação do Cimatec. Eis alguns exemplos: para a mineradora Vale, os pesquisadores e alunos criaram um sistema de sensores com GPS e câmeras que facilita aos motoristas da empresa dirigir os caminhões que carregam minérios em dias de chuva ou neblina forte — o clima ruim responde por 30% do tempo em que os automóveis ficam parados. Para a Embraer, professores e alunos do Cimatec bolaram um software de realidade aumentada que testa a resistência dos materiais usados nos aviões, aumentando, assim, a segurança desse tipo de checagem periódica das aeronaves. Em 2017, o Cimatec divulgou o protótipo do FlatFish, robô parecido com um submarino e equipado com os sensores de um carro autônomo. O equipamento é capaz de passar seis meses submerso a até 3 000 metros de profundidade. Sua função é monitorar possíveis danos causados às sondas exploratórias de petróleo na camada do pré-sal. O aparelho, desenvolvido para a petroleira anglo-holandesa Shell, deve entrar em operação em breve — em fevereiro, a Shell assinou uma parceria com a prestadora de serviços para o setor de óleo e gás italiana Saipem, que deverá fabricar a invenção do Cimatec e vender a outras petroleiras a partir de 2020. “A parceria permitiu utilizar o estado da arte da academia para desenvolver uma tecnologia que vai reduzir custos e aumentar a segurança de nossas operações”, diz Regis Assao, gerente sênior de pesquisa e desenvolvimento da Shell. “O protótipo foi criado em dois anos. Em geral, são precisos cerca de 20 anos para a criação de uma tecnologia de impacto semelhante.”
O Cimatec é o exemplo mais bem-acabado de um arranjo público-privado que até agora vem dando bons resultados no fomento à inovação no país. Por meio dele, uma indústria pode dividir os custos do desenvolvimento de um projeto com 42 centros de pesquisa país afora — 11 deles mantidos pelo Senai, o restante também composto de institutos de alto reconhecimento, como o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações, mais conhecido pela sigla CPqD, de Campinas, no interior paulista, ou o Instituto de Pesquisas Tecnológicas da Universidade de São Paulo, na capital. O governo federal entra com um terço da verba necessária por intermédio da Embrapii, organização social que recebe recursos dos ministérios da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio. É um sistema bem azeitado, que segue a lógica das melhores políticas de incentivo ao desenvolvimento no mundo. Para o governo federal, o arranjo funciona por ser o indutor de tecnologias aplicadas ao que as indústrias brasileiras mais precisam. Para os centros de pesquisa, a parceria faz sentido pelo fluxo de recursos públicos e privados aportados nos estudos. Desde a criação da Embrapii em 2013, já passaram pelo sistema mais de 700 milhões de reais em 400 projetos. Para ter uma ideia de como essa quantia faz a diferença para esses centros, as demais fontes de receita do Cimatec, unidade que mais recebeu dinheiro entre as credenciadas da Embrapii, num total de 280 milhões de reais, correspondem a um terço desse valor. Para as empresas contratantes, há duas vantagens. Como a Embrapii é uma organização social (e não uma estatal, sujeita à legislação que rege as empresas públicas), a liberação do dinheiro para o projeto acontece em questão de meses e sem as burocráticas licitações que podem arrastar as coisas por anos a fio. Outro ponto positivo é não investir em laboratórios e estruturas de apoio para projetos muito específicos e que normalmente fogem da atividade central das contratantes — e que, portanto, correriam o risco de ficar subutilizados após o produto ser lançado. “Se a empresa não tem uma frequência de lançamento de um produto novo a cada três meses, dificilmente terá condições de investir num centro de pesquisa e desenvolvimento, cujo custo é elevado. Por isso há espaço para esse formato, que é menos arriscado”, diz o médico Jorge Guimarães, presidente da Embrapii desde 2015 e cuja trajetória profissional se desenvolveu para longe dos consultórios — e para perto da academia. Antes da Embrapii, Guimarães dirigiu durante 11 anos a Capes, instituição de avaliação de currículos de pesquisadores brasileiros, e foi pesquisador sênior do CPqD.
Em países em que o modelo de parceria público-privada agora adotado no Brasil já existe há algum tempo, os ganhos desse tipo de arranjo são mais evidentes. O melhor exemplo é a alemã Fraunhofer, uma rede de centros de pesquisas pioneira, ao lado da holandesa NTO, em executar pesquisa terceirizada para as empresas. Fundada em 1949, na penúria do pós-guerra alemão, a Fraunhofer hoje abrange 69 núcleos de pesquisas com 25 000 funcionários, entre graduados e estudantes que veem ali uma chance de se tornarem pesquisadores. Do orçamento anual de 2 bilhões de euros (cerca de 9 bilhões de reais), 70% vêm de milhares de empresas, boa parte delas pequenas e médias, que confiam aos pesquisadores da Fraunhofer o desenvolvimento de tecnologias para suas linhas de produção. A maciça adesão delas ao “modelo Fraunhofer” permitiu à Alemanha ter uma enorme base de pequenas e médias indústrias, as chamadas –Mittelstand, atualmente empregadoras de 60% da mão de obra alemã e altamente competitivas — 44% delas exportam parte da produção. O sucesso alemão inspirou centros de pesquisas com o mesmo formato em nove países europeus. Uma análise da Earto, uma associação que reúne esse tipo de instituto na Europa, mostra o tamanho do impacto. Em 2015, eles geraram 285 000 empregos diretos e indiretos e alcançaram uma receita de 35 bilhões de euros (cerca de 150 bilhões de reais) em 387 estudos realizados em seus laboratórios para empresas. “Décadas de pesquisas acadêmicas mostraram que esses centros integrados de pesquisa e tecnologia tiveram papéis muito importantes nos sistemas nacionais de inovação”, diz o pesquisador Ezequiel Zylberberg, do Centro de Performance Industrial do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Para países em que esses sistemas estão em desenvolvimento, como o Brasil, não há ainda uma literatura consolidada sobre o impacto econômico das iniciativas. Como se trata de um projeto que também é calcado em recursos públicos, além de privados, nada garante que o sucesso da Embrapii se mantenha no longo prazo, a exemplo das instituições similares europeias. Basta lembrar que, em meio à crise fiscal, o orçamento da pasta de Ciência e Tecnologia, uma das fontes de financiamento para os projetos da organização social, tem sido sucessivamente tungado nos últimos anos para o governo cumprir a regra de controle de gastos. A torcida é para que os bons resultados já obtidos pelo arranjo consigam ser mais fortes do que o ímpeto da burocracia de Brasília de tolher justamente uma parte do governo que funciona. Só assim a parceria pela inovação continuará produtiva.