Revista Exame

Jogos vorazes

A 100 dias da Olimpíada, Paris está de pernas para o ar; e a popularidade do governo, no chão. Vai ser uma festa — mas os franceses se perguntam por que se meteram nessa

Emmanuel Macron: o presidente francês aposta no sucesso dos Jogos para se recuperar de recordes negativos de popularidade (Ludovic Marin/AFP/Getty Images)

Emmanuel Macron: o presidente francês aposta no sucesso dos Jogos para se recuperar de recordes negativos de popularidade (Ludovic Marin/AFP/Getty Images)

Amanda Pessoa
Amanda Pessoa

Jornalista

Publicado em 25 de abril de 2024 às 06h00.

Se os Jogos Olímpicos de Paris fossem um espetáculo de cancã, as dançarinas do Moulin ­Rouge estariam de pernas para o ar. Considerando que a cidade está assim há vários meses, com obras por todos os bairros, os parisienses se perguntam como, a cerca de 100 dias do início dos jogos de verão, tudo vai funcionar. Em junho de 2015, quando Paris se candidatou para sediar os Jogos de 2024, o então presidente François Hollande tinha a pretensão de usar a competição para reviver a fase de ouro de Paris. Quando sediou os Jogos de 1924, a cidade era o centro do mundo, lar de escritores como Hemingway, Fiztgerald e ­Gertrude Stein, além de pintores como Picasso, Matisse, Dalí. O plano de Hollande não funcionou nem para ele próprio: com popularidade de 7%, foi o primeiro mandatário da Quinta República a não tentar a reeleição. Seu sucessor, Emmanuel Macron, também bate recordes negativos de avaliação e aposta nos Jogos para impulsionar o orgulho francês, inclusive no quadro de medalhas. Mas, para os franceses, os Jogos vêm sendo tratados como uma coisa tão indesejada quanto recheio num croissant.

Anne Hidalgo: a prefeita de Paris tem apelado aos moradores para que não deixem a cidade durante os Jogos (Adnan Farzat/NurPhoto/Getty Images)

Para começar, a parte prática da organização dos Jogos aconteceu meio que para inglês ver. Um dos pontos mais complicados para os organizadores é onde vão ficar os milhares de visitantes esperados. A cidade, que não tem uma extensão territorial das maiores (105 quilômetros quadrados — para ter uma ideia, São Paulo tem 1.523 quilômetros quadrados) e já conta com problemas sérios de alojamento, não tem espaço físico para receber quem quer vir assistir aos Jogos. Desde 2023, a recomendação para quem vem é, inclusive, evitar Paris e buscar guarida em cidades próximas, de onde, pelo menos em teoria, é fácil ir e vir, graças à rede de transporte público da região de Île-de-France, onde a capital francesa está localizada. Acontece que o Grand Paris Express, nome dado a um ambicioso projeto de expansão do metrô, não parece ter levado em consideração o fato de que a região receberia tanta gente num período tão curto de tempo e bem no meio de seu calendário (as obras do GPE deveriam acontecer de 2013 a 2035). Assim, o que se tem atualmente é uma cidade com várias linhas de metrô e trem sem funcionar em alguns horários, principalmente nos fins de semana, em razão de obras de última hora. A própria prefeita, Anne Hidalgo, já admitiu que as obras não estarão 100% concluídas para os Jogos.

Rio Sena: cartão-postal vai sediar a cerimônia de abertura, embora suas águas ainda não estejam aptas para banho (Getty Images/Getty Images)

Mas não é só de obras no metrô que Paris vive. Parte significativa da cidade está transformada em canteiros, graças a Hidalgo, engajadíssima em converter a capital num lugar mais propício a pedestres e ciclistas do que a carros, além de mais bonito para receber os visitantes. Ruas inteiras estão bloquea­das, em todos os bairros, com obras sem data para terminar. Pertinho do Moulin Rouge, no nono arrondissement, Geraldine Dalban-Moreynas, parisiense dona de duas lojas de decoração, não tem medido palavras ao usar suas redes sociais para criticar a perda das duas vagas de estacionamento que existiam na frente de sua butique e que deixarão de existir por causa da ciclovia e do canteiro de flores planejados para a rua. Sua revolta viralizou nas redes sociais, e virou um ato simbólico dos parisienses de saco cheio.

Deve haver uma debandada geral dos moradores durante os Jogos. A maioria não tem interesse em ver as competições, muito menos em permanecer em Paris. Correndo o risco de não ver seus conterrâneos aproveitando a experiência, Hidalgo tem apelado aos parisienses que fiquem na cidade durante o verão. Há quem diga que isso será possível caso ela cumpra a promessa de, no dia 23 de junho, mergulhar no Sena, que, ao custo de 1,4 bilhão de euros, foi objeto de um processo de despoluição começado em 2020. Macron falou que mergulharia também. Até mea­dos de abril, o Sena permanecia impróprio para banho.

Outra coisa que tem atrapalhado os planos de Hidalgo é o valor dos ingressos: os mais baratos da edição parisiense começaram a ser vendidos por 24 euros, valor que tem sido alvo de críticas dos moradores. O desinteresse local ajuda a explicar o fato de ainda haver cerca de 2 milhões de entradas disponíveis para as competições. Um novo lote de vendas será aberto em julho. Além disso, voltando duas casas nesse jogo de tabuleiro, o problema do transporte público não se limita às obras: foi decidido que as tarifas de ônibus e metrô serão aumentadas de 2,10 euros para 4 euros, salvo para aqueles que comprovadamente já fazem uso da rede na sua vida diá­ria (o passe diário, muito usado por turistas, vai passar de 4 euros para 10 euros). A ideia da presidente da região da Île-de-France, Valérie Pécresse, é dissuadir as pessoas de usar o transporte público durante os Jogos, para evitar superlotação nas estações.

Não é de espantar que os parisienses queiram correr de Paris nesse período, ignorando os apelos de Anne Hidalgo e aproveitando para alugar seus apartamentos a preços exorbitantes e tirar algum proveito dessa bravata, como Tony Estanguet foi acusado de fazer. O presidente do Comitê de Organização dos Jogos Olímpicos de Paris, junto com Etienne Thobois, Michaël Aloïsio e Edouard Donnelly (diretor-geral de Paris 2024, diretor-geral substituto e diretor-executivo de operações, respectivamente), foi investigado por tráfico de influência, favoritismo e uso ilegal de interesses, além de ter recebido fortes críticas (que ele obviamente considerou injustas, afinal não foi ele que decidiu quanto receberia por seu trabalho) por seu gordo salário e por ter criado uma empresa que tem prestado serviços ao Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos. Ele foi acusado formalmente de improbidade, e uma investigação está em curso.

Maracanã, no Rio: edição brasileira foi um sucesso esportivo, mas foi marcada por estouro no orçamento e acusações de corrupção (Chris McGrath/Getty Images)

Emmanuel Macron segue empolgado com a realização dos Jogos em território francês, não se deixando abalar nem mesmo pelo vazamento detectado no Centro Aquático Olímpico quando de sua visita, ocorrida em 5 de abril. A versão oficial é que, por causa das fortes chuvas que assolaram a região, foi constatado um vazamento de água vindo de um cano bloquea­do em razão das obras. A versão oficiosa é que o vazamento estaria ligado a uma vedação defeituosa de um dos painéis de energia solar colocados no telhado do prédio. O Centro Aquático Olímpico, que fica em Saint-Denis, vai receber as provas de natação artística, mergulho e a fase preliminar das disputas de polo aquático. Junto com a Arena Porte de la Chapelle, o Centro foi uma das obras realizadas especialmente para os Jogos, ao custo de 175 milhões de euros, 80 milhões a mais do que inicialmente previsto.

Ao se candidatar a receber os Jogos Olímpicos de 2024, Paris usou como argumento o fato (ou pelo menos a ideia) de ter 95% da infraestrutura necessária pronta, de modo que o orçamento seria limitado. O fato de o Stade de France já existir na época da candidatura (sua inauguração aconteceu em 1998) significava a não necessidade de construir um estádio olímpico. Ocorre que, a poucos meses do começo dos Jogos, os gastos com a organização do evento, que deveriam ter ficado em torno de 6,3 bilhões de euros, estão quase chegando a 8,8 bilhões, uma diferença de cerca de 30%. Ainda que esse salto se deva em parte ao aumento da inflação (a França tem sofrido economicamente nos últimos anos), o Tribunal de Contas do país emitiu um relatório em que afirmou que dois terços do acréscimo foram resultado de “uma subestimação óbvia do orçamento da licitação e uma falta de compreensão da complexidade das especificações do COI e da dificuldade de desafiá-las, mesmo que apenas marginalmente”. O mesmo tribunal fez menção a incertezas sobre o saldo final do orçamento plurianual do Comitê Organizador dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos (Cojop) e salientou que os déficits acabariam sendo pagos pelos contribuintes, os mesmos franceses que não estão lá tão felizes com essa festa no seu quintal.

O economista Wladimir Andreff, da Universidade de Paris, tem estudado o impacto do custo dos Jogos Olímpicos de Paris, apresentando dados de como o orçamento tem sido excedido desde 1972 (a única exceção foi a Olimpíada de Los Angeles, ocorrida em 1984). Até o fim de 2022, a previsão para Paris 2024 já tinha excedido em 35%. Segundo Andreff, a primeira explicação para isso é a teoria do leilão (que ele também chama de “a maldição do vencedor”), criada pelo Prêmio Nobel de Economia Richard Thaler e que diz respeito à forma como as cidades competem entre si para ser sede. A segunda explicação (a favorita do Comitê Olímpico Internacional) é a fraqueza do sistema político local, o que abriria caminho para corrupção (numa dinâmica que segundo o próprio COI é semelhante à observada nos Jogos de Sochi 2014 e Rio 2016).

Rebeca Andrade: esperança de medalha para o Brasil nos Jogos de Paris (Loic VEenance/AFP/Getty Images)

Há algo mais para piorar a espetacular imagem de Paris na opinião pública global? Há. O comitê de organização dos Jogos precisou lidar com a onda de ataques racistas e misóginos que a cantora Aya Nakamura passou a receber desde sua visita ao Eliseu. Na ocasião, Macron teria lhe feito o convite para que ela cantasse alguma música francesa (provavelmente de ­Édith Piaf) na abertura dos Jogos. Nada foi confirmado, porque a organização quer manter tudo o que diz respeito à cerimônia de abertura em absoluto sigilo, mas a mera visita da cantora ao presidente foi suficiente para a artilharia pesada de ofensas. Negra, franco-maliana (ela recebeu a nacionalidade francesa em maio de 2021) e filha de imigrantes, Nakamura, segundo Marion Marechal, vice-presidente do Reconquête (um dos partidos da extrema direita francesa), “não canta em francês e não representa nem a cultura nem a elegância francesa”. O comitê olímpico, ao se deparar com essas declarações, não se furtou a demonstrar seu apoio à artista, salientando que ela é a cantora francesa mais ouvida no mundo atualmente. Os Jogos começam no dia 26 de julho, com um desfile das delegações em barcos pelo Rio Sena. Têm tudo para ser um epítome de Paris 2024: magnífico para quem vê e caótico para quem organiza.

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