Eleições americanas (Catarina Bessell/Exame)
Os Estados Unidos nunca viram uma eleição presidencial como a de 2020. O novo coronavírus já infectou mais de 8 milhões de pessoas, causou cerca de 220.000 mortes no país e está ressurgindo com força a menos de duas semanas do dia da votação. Os protestos por justiça racial paralisaram o país no meio do ano e reabriram a ferida mais sensível da sociedade americana. A política vai seguir dando o tom na bolsa? Vai. E você pode aproveitar as oportunidades. Descubra onde investir agora
A votação pelo correio, prática corriqueira adotada por dezenas de milhões de eleitores, tornou-se alvo de teorias da conspiração e é mais um símbolo do abismo que separa democratas e republicanos. O Senado está correndo para aprovar uma juíza conservadora para a Suprema Corte, o que pode levar a uma mudança de postura da corte por décadas. E nem falamos da economia, assunto prioritário para os americanos na hora de escolher um novo presidente — e o que mais deve afetar você, leitor, nos próximos quatro anos.
Donald Trump e Joe Biden discordam em praticamente tudo, e isso certamente é verdade no caso das ideias sobre a economia. Quem quer que vença a eleição de 3 de novembro assumirá um país em crise profunda.
A recessão causada pela pandemia é uma das mais graves da história. Estima-se uma contração de 4% no PIB deste ano — um dado mais promissor do que as previsões catastrofistas de alguns meses atrás, mas ainda assim preocupante. Ainda não se sabe que letra será lida na curva do gráfico do PIB. Os mais otimistas enxergaram contornos de um “V”, um repique motivado em grande parte pelo pacote de estímulo econômico aprovado no começo da pandemia.
Mas esse dinheiro está acabando, e não há sinal de acordo no Congresso para uma segunda dose. Outros consideram mais razoável uma recuperação mais lenta, na forma da letra “U”. O cenário mais pessimista é o de uma recuperação em “L”: anos de dificuldades econômicas e desemprego em alta.
Os planos de Trump, republicano, e de Joe Biden, democrata, para trazer a economia de volta à superfície são muito diferentes. Ou pelo menos é com essa hipótese que trabalham os eleitores e o mercado, já que o presidente americano não se deu ao trabalho de publicar um programa detalhado.
Reunindo declarações e discursos de Trump, além de uma proposta de orçamento para o ano que vem apresentada antes da pandemia, os analistas concluem que o plano do presidente é basicamente repetir a receita do primeiro mandato: cortar impostos e reduzir (um pouco) os gastos do governo.
A visão de Joe Biden é oposta. O democrata quer aumentar a taxação das empresas e dos mais ricos e pôr em prática um ambicioso plano de investimentos governamentais. Não se trata de um programa ditado pela esquerda radical, como diz Trump em tom de ameaça, nem de um abandono dos princípios capitalistas.
Mas Biden, segundo todas as pesquisas o grande favorito para assumir a Casa Branca em 20 de janeiro de 2021, deve representar uma guinada importante na economia americana. Caso ele consiga aprovar seus planos mais ambiciosos — o que vai depender de uma vitória democrata nas eleições para o Senado, algo ainda incerto, os Estados Unidos serão um país mais verde, mais acolhedor aos imigrantes, mais comprometido com a educação e com a saúde financiada pelo governo.
Tudo isso vai custar muito dinheiro. O programa de Biden fala em investimentos de 7,3 trilhões de dólares nos próximos dez anos, que vão de infraestrutura a educação e ampliação da concessão de benefícios.
O aumento de impostos previsto cobre pouco mais da metade dessa conta, mas os analistas acreditam que potenciais efeitos negativos da taxação extra serão compensados de outras maneiras. “Não estamos falando simplesmente de aumentar o tamanho do governo”, diz à EXAME Mark Zandi, economista-chefe da Moody’s Analytics e coautor de um relatório que avaliou os planos de Biden e Trump. “Estamos numa situação de crise, com desemprego, juro zero e baixa inflação. Nesse contexto, faz sentido um plano fiscal agressivo de investimentos.”
Zandi traçou quatro cenários, dependendo do vencedor da eleição e da composição do Congresso (veja o quadro abaixo). Caso Biden obtenha o controle do Senado e consiga aprovar seu plano na íntegra, seriam criados 7 milhões de empregos a mais em comparação com um segundo mandato de Trump (com maioria de senadores republicanos), de acordo com cálculos da Moody’s Analytics.
A renda média dos americanos também cresceria quase 5.000 dólares anuais, pois os aumentos de impostos incidiriam sobre a ínfima parcela da população cujos rendimentos superam 400.000 dólares anuais. Este é um dos pontos centrais da campanha do democrata, que cresceu numa família de classe média: garantir que o pêndulo volte a se mover no sentido dos trabalhadores.
O plano de Biden também prevê aumento no imposto de renda das empresas: a alíquota passaria de 21% para 28%. Trump, que promete não mexer na taxação de pessoas jurídicas, afirma que essa medida contribuiria para um colapso da economia e da bolsa de valores.
Mas os economistas pintam um quadro menos aterrorizante. “Primeiro, temos de levar em conta que o patamar de 28% já tinha o apoio dos próprios republicanos antes do corte promovido por Trump”, diz Richard Prisinzano, diretor do Wharton Budget Model, centro de estudos da Universidade da Pensilvânia.
De acordo com Prisinzano, um eventual aumento do imposto pago pelas empresas seria compensado de outras maneiras. “Isoladamente, haveria impacto nos salários e nos níveis de emprego. Porém, no longo prazo, investimentos em educação e infraestrutura significam uma força de trabalho mais produtiva e uma economia mais competitiva.”
As projeções do estudo se estendem por décadas no futuro. Uma delas aponta redução de 6,1% no déficit e aumento de 0,8% no PIB — em 2050. Prisinzano admite que eleitor nenhum pensa com um horizonte tão distante, especialmente com as incertezas urgentes da pandemia. Além disso, há chance real de que o plano de Biden que está no papel sofra cortes consideráveis quando chegar a hora de encarar o mundo real.
Ele promete investir 1,9 trilhão de dólares em acesso universal à educação para crianças com menos de 5 anos, redução das dívidas estudantis e universidades gratuitas para a população de baixa renda. Outro 1,6 trilhão seria destinado à infraestrutura. É menos do que desejaria a ala mais à esquerda do Partido Democrata — mas talvez mais do que os republicanos estejam dispostos a engolir.
Caso seja vitorioso em novembro, o presidente Joe Biden terá de dançar um delicado balé com as forças internas de seu partido. Apesar de contar com apoio de nomes como os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren e da deputada Alexandria Ocasio-Cortez, ele será constantemente pressionado pelos progressistas, especialmente populares entre o eleitorado mais jovem.
“Uma batalha real está sendo travada agora no partido”, diz David Greenberg, professor de história na Universidade Rutgers. “Os democratas têm de evitar o que ocorreu no Partido Republicano — uma tomada pela ala extremista” representada por Trump.
Um dos temas da disputa é a mudança climática. O objetivo declarado da campanha de Biden é ter uma economia neutra em emissões de gases de efeito estufa em 2050. Isso se daria a um custo estimado em 2 trilhões de dólares, que incluem recursos para inovação, instalação de estações de recarga de carros elétricos e endurecimento de regulamentações ambientais. Mas a ala mais à esquerda, liderada por Ocasio-Cortez, quer um objetivo muito mais agressivo, que inclui eliminar em dez anos os impactos da economia americana na mudança climática.
Donald Trump é famosamente cético em relação ao aquecimento global e reverteu dezenas de decisões de seus antecessores que protegiam o meio ambiente, no entanto a geração de empregos “verdes” pode atrair o apoio de alguns republicanos. Mas o tema é espinhoso, especialmente na reta final da campanha.
Regras mais estritas para a exploração de gás natural em estados decisivos no colégio eleitoral, como Pensilvânia e Ohio, vêm sendo usadas como arma contra Biden. “A intenção de mudar o rumo da economia americana para uma pegada sustentável — o que no fim das contas é inevitável — não impede o conflito e os impactos em uma parte da economia americana tradicional”, diz Arthur Mota, economista da EXAME Research.
A máxima diz que os republicanos são mais favoráveis ao livre-comércio — e, portanto, melhores do ponto de vista das empresas brasileiras. Mas ela já provou não ser verdadeira com a cooptação do Partido Republicano pelo populismo nacionalista de Trump. Do lado dos democratas, Biden também vem fazendo uma campanha baseada em privilegiar a produção nacional.
“Não acho que nenhum dos dois candidatos seja particularmente pró-livre-comércio”, diz Brian Winter, editor da revista Americas Quarterly e vice-presidente de políticas da Americas Society/Council of the Americas. Mas Winter considera um cenário mais favorável para o Brasil nas negociações comerciais caso Trump seja reeleito. “Os diplomatas dos dois países afirmam que haverá um grande esforço. Sou cético, mas veremos.”
Do ponto de vista diplomático, não se esperam grandes sobressaltos nas relações entre os dois países. Independentemente do ocupante da Casa Branca ou do Palácio do Planalto, os Estados Unidos e o Brasil sempre mantiveram relações cordiais. A menção de Biden a sanções econômicas caso o governo brasileiro não contenha o desmatamento na Amazônia precipitou uma resposta contundente de Jair Bolsonaro, mas Winter não acredita que isso interfira no bom convívio se o democrata vencer a eleição. “Mas, se AOC [a esquerdista Ocasio-Cortez] tuitar sobre Bolsonaro em 2021, será um longo ano”, diz Winter.
Também não se espera uma distensão entre americanos e chineses. Apesar das acusações mútuas de subserviência à China, os dois candidatos olham para a potência asiática com muita desconfiança. Trump, que sobe ao palco de seus comícios ao som da música Macho Man e forçou a venda da operação americana do aplicativo TikTok a uma companhia dos Estados Unidos, não vai recuar na guerra comercial com a China.
Biden vai evitar caracterizar a queda de braço em termos ideológicos. Seu principal assessor no assunto, Ely Ratner, escreveu num artigo recente que, do ponto de vista econômico, prometer o fim da simbiose das duas economias não é realista — a estratégia deve ter como objetivo ganhar competitividade internamente e aceitar uma realidade geopolítica muito diferente da dos tempos da Guerra Fria.
Todas as conjecturas em relação ao próximo governo americano, porém, dependem da definição de quem será o ocupante da Casa Branca — e as possibilidades de que a eleição seja decidida na Justiça não são desprezíveis, o que certamente se refletirá no mercado no curto prazo. Analistas afirmam que o maior risco, agora, está na incerteza de uma decisão judicializada do que na vitória inconteste de qualquer lado.
Para 2021, a expectativa é um pouco mais otimista — pelo menos entre os investidores americanos. Numa pesquisa recente do jornal financeiro Barron’s, 54% dos gestores de recursos entrevistados afirmaram estar confiantes em um bom desempenho das ações. Já no Brasil talvez um pouco de cautela seja recomendável, segundo Bruno Lima, analista de ações da EXAME Research.
“Caso se confirme uma vitória dos democratas na Presidência e no Congresso, o cenário é positivo para os mercados emergentes. Mas o Brasil se descolou um pouco deles por causa de nossos problemas domésticos”, afirma Lima. “Só vamos surfar essa onda se tivermos cuidado da organização do nosso lado fiscal.”
Também é muito provável que o futuro presidente tenha de costurar um novo plano de estímulo econômico. Um estudo da Universidade Colúmbia indica que as medidas de alívio do governo tiraram 18 milhões de americanos da pobreza em abril, mas 12 milhões deles voltaram para a situção de penúria com a expiração do pacote de ajuda.
Jerome Powell, presidente do Federal Reserve (banco central americano) afirmou no começo de outubro que, sem mais uma injeção de dinheiro na economia, as consequências podem ser “trágicas”. “Ao longo do tempo, as insolvências de domicílios e falências de negócios aumentariam, prejudicando a capacidade produtiva da economia e impedindo o crescimento de salários”, afirmou Powell. “Os riscos de exagerar [no pacote de estímulo] parecem pequenos por enquanto.” A economia americana precisa de ajuda — e a conturbada corrida eleitoral oferece poucas respostas sobre o futuro.
Eleição para o Senado vai determinar se Joe Biden, caso eleito, governará ou não com a maioria no Congresso | Sérgio Teixeira Jr., de Nova York
A disputa pela Casa Branca concentra a atenção do mundo todo, mas a definição de quem vai ocupar as 35 vagas do Senado em jogo no dia 3 de novembro será igualmente decisiva para os Estados Unidos. Caso o Partido Democrata, de Joe Biden, conquiste a Presidência, mantenha suas 12 vagas no Senado em disputa e ganhe cadeiras atualmente nas mãos do Partido Republicano, a balança do poder no país vai sofrer uma alteração significativa.
O controle do Senado significa garantia de aprovação de políticas de longo prazo, tais como mudanças no sistema de saúde, cortes de impostos e medidas de contenção da alteração climática. Também dependem de ratificação dos senadores as indicações presidenciais de juízes para tribunais federais e para a Suprema Corte.
Os republicanos estiveram no controle do Senado durante os quatro anos do primeiro mandato de Trump — e também no da Câmara no primeiro biênio (o mandato dos deputados nos Estados Unidos é de apenas dois anos). Foi devido à maioria republicana que Trump conseguiu aprovar seu histórico corte de impostos em 2017 e também escapou da condenação do impeachment em 2019, apesar de indiciado pela Câmara.
Cada estado americano tem direito a dois senadores, o que significa um total de 100. Bastam 50 votos para o partido da Casa Branca fazer valer sua maioria, pois, em caso de empate, o voto de Minerva cabe ao vice-presidente da República.
De acordo com as projeções mais recentes do site FiveThirtyEight, os democratas têm 72% de chance de obter a maioria, um aumento de 11 pontos percentuais em relação ao começo de outubro. "O cenário econômico é mais promissor caso Biden e os democratas vençam nas duas Casas do Congresso e adotem todas as medidas do programa de governo”, afirma Mark Zandis, economista-chefe da Moody’s Analytics.
Mas as consequências de uma vitória tríplice dos democratas podem ser muito maiores. Até o fechamento desta edição da EXAME, era dada como praticamente certa a confirmação da conservadora Amy Coney Barrett como nova integrante da Suprema Corte. Com a aprovação de Barrett, seis dos nove juízes da mais alta instância da Justiça americana serão conservadores.
Trump fez a indicação pouco mais de um mês antes da eleição. Em 2016, quando faltavam oito meses para a escolha de um novo presidente americano, os republicanos barraram uma indicação feita por Barack Obama, afirmando que “a população americana deveria ser ouvida”. Os dois pesos e duas medidas precipitaram uma radicalização entre alguns democratas (mas não oficialmente endossada por Joe Biden): aumentar para 11 o número de juízes da Suprema Corte, na tentativa de restabelecer o equilíbrio de forças.
A Constituição não estipula um número determinado de juízes para o tribunal, mas eles são nove desde 1868. Para os especialistas, a manobra é arriscada. "Pode haver uma forte reação popular”, diz Jed Shugerman, professor na Universidade Fordham. Também existe o risco de que a medida seja repetida quando os republicanos voltarem a dominar o Senado. Tudo isso, por enquanto, é mera especulação. A única certeza é que a votação para o Congresso, assim como para a Presidência, promete ser uma das mais significativas da história recente.