Trânsito em São Paulo: investigação aponta indícios de fraude no seguro obrigatório de veículos (Germano Luders/Exame)
Da Redação
Publicado em 12 de agosto de 2016 às 09h54.
São Paulo — O motorista de caminhão Almir Silva estava dirigindo sua motocicleta na zona rural de Espinosa, no interior de Minas Gerais, quando perdeu o equilíbrio e a derrubou em cima da própria perna. Foi atendido em um hospital local e, enquanto estava internado, acionou o seguro de acidentes de trânsito, que indeniza quem se machuca dirigindo, como passageiro ou pedestre.
Silva ficou sabendo que teria direito a um cheque de 2 363 reais. Falou sobre o assunto com o fisioterapeuta que o atendeu, e ouviu a seguinte recomendação: se alegasse que não podia mais mexer a perna, obteria uma indenização adicional de 7 088 reais, valor que seria dividido com o médico e dois advogados.
Silva seguiu o conselho e entrou na Justiça solicitando o valor maior, mas o juiz recusou o pedido, ao notar que Silva ainda trabalhava como motorista de caminhão — logo, podia mexer a perna. Mesmo assim a seguradora pagou 2 599 reais a mais. Não foi bondade, foi fraude.
O caso citado é um dos que constam de um inquérito da Polícia Federal (PF) que apura irregularidades nesse mercado — e foi obtido por EXAME. Depois de dois anos de investigação, a PF concluiu que o esquema, que supostamente contava com a participação de diretores da empresa, pode ter desviado 1,8 bilhão de reais por ano.
Esse seguro de acidentes de trânsito é obrigatório: todos os donos de veículos precisam pagar, anualmente, um valor fixo definido pelo Conselho Nacional de Seguros Privados: hoje, a taxa é de 105,65 reais para carros e de 292,01 para motos. No ano passado, quase 60 milhões de brasileiros pagaram 9 bilhões de reais.
Até 2008, eram as seguradoras que faziam a administração dessas apólices, vendendo o seguro e ficando com a taxa de corretagem. O problema é que o controle era capenga: estima-se que quase 70% dos motoristas não pagavam o seguro. Para tentar resolver a questão, o governo decidiu criar uma empresa — privada, pelo menos — para centralizar a operação.
Surgiu, assim, a Líder-DPVAT, que representa 70 seguradoras, privadas e estatais. Seus diretores, indicados pelas principais seguradoras do país, são responsáveis por controlar as indenizações. Segundo a PF, a diretoria da Líder facilitou a ocorrência de fraudes fechando acordos na Justiça mesmo quando já tinha pagado indenização ou quando o próprio juiz dizia que o autor da queixa não tinha direito ao recurso.
A investigação também aponta que a mulher de Ricardo Xavier, presidente da Líder, e a de Marcelo Davoli, diretor jurídico, seriam donas de empresas que prestam serviços para a seguradora, o que é proibido pelo estatuto da companhia.
A PF entregou o inquérito ao Ministério Público, que deverá definir até o fim de agosto se denunciará os diretores à Justiça. “Defendemos a extinção do modelo da Líder”, diz o promotor Paulo Márcio da Silva, responsável pelo caso no Ministério Público Federal. Há uma investigação semelhante na Polícia Civil do Ceará.
Em maio, a Susep, órgão que fiscaliza o mercado de seguros, criou uma comissão especial para analisar a atuação da Líder. No mês seguinte, foi instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o assunto. EXAME teve acesso a parte do material de defesa da Líder.
A seguradora contratou a auditoria PwC para fazer uma investigação própria das fraudes e outra auditoria, a KPMG, para analisar os contratos com fornecedores. A conclusão da KPMG é que não há contratos ou favorecimento de empresas de parentes de diretores da companhia.
A Líder também seguiu as orientações acordadas em um grupo de trabalho formado com o Ministério Público e a Polícia Federal há um ano, com a contratação da auditoria Deloitte para credenciar novas empresas de avaliação médica de acidentados (KPMG, Deloitte e PwC não deram entrevista).
Em nota, a Líder diz refutar as acusações de irregularidades, afirmando que o inquérito não traz provas contra seus diretores. Diz ainda que a empresa fecha acordos na Justiça para reduzir despesas com ações judiciais, em linha com as orientações do Conselho Nacional de Justiça. “A Líder-DPVAT é vítima das fraudes, sendo a maior noticiante desses casos aos órgãos policiais”, diz a nota.
“O que existe é o interesse de transformar Montes Claros numa nova república da Polícia Federal”, afirma o executivo de uma seguradora referindo-se ao apelido dado a Curitiba, sede da Operação Lava-Jato. A cidade de Montes Claros, em Minas Gerais, foi onde a investigação começou, em 2014.
Em nota, a Susep diz que não foi identificado, até o momento, qualquer fundamento contra os administradores do DPVAT — mas entende que o modelo “pode ser aprimorado”. As seguradoras que indicam a diretoria da Líder recorreram ao Supremo Tribunal Federal para extinguir a CPI. Agora cabe ao Ministério Público definir o próximo passo.