Sacola do Google (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 28 de janeiro de 2015 às 19h32.
São Paulo - "Vez ou outra surge um novo produto que muda tudo.” Foi assim que Steve Jobs apresentou o primeiro iPhone ao mundo em 2007. O fundador da Apple estava certo. O smartphone ajudou a transformar os celulares — antes praticamente limitados à função de enviar e receber ligações e mensagens — em computadores de mão. Desde então, dez versões do iPhone já foram lançadas.
Nesse período, uma legião de consumidores fiéis teve, no mínimo, uma novidade por ano para correr às lojas. Menos de uma década depois, outro celular chega ao mercado com uma promessa de mudança ambiciosa, e também pelas mãos de um gigante da tecnologia.
O Google anunciou recentemente um celular que tem como proposta uma nova lógica de consumo. Trata-se de um aparelho composto de uma peça-mãe e vários módulos, como bateria, memória e câmera, que podem ser encaixados ao gosto do consumidor. Nenhum guru de tecnologia ou consumo se atreve a dizer se o novo aparelho tem mesmo potencial para desbancar — ou pelo menos ameaçar — o iPhone.
Mas, se vingar, o novo aparelho, que está sendo desenvolvido há dois anos e é conhecido como projeto Ara, vai dar aos usuários a possibilidade de customizar seu celular.
Além disso, ele tem a pretensão de desafiar a lógica de que, para ter o celular mais avançado, o consumidor precisa descartar a versão anterior. Afinal, com a troca de um módulo aqui e outro acolá, será possível manter o aparelho atualizado.
“É uma mudança fundamental para a indústria de tecnologia e está sendo aguardada com expectativa”, diz Federico Casalegno, diretor do laboratório de experiências móveis do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos Estados Unidos. O aparelho deve chegar ao mercado no segundo semestre deste ano pelo preço inicial de 50 dólares.
Além dos aficionados de tecnologia, outro grupo particularmente curioso com o lançamento é o dos especialistas em consumo sustentável. E há uma boa razão para isso. Em 2014, o número de celulares em uso no mundo chegou a 7,2 bilhões de unidades e ultrapassou o número de habitantes.
Como boa parte deles tende a parar no lixo em pouco tempo, o volume de resíduos tornou-se um problema gigantesco. Estima-se que a fabricação de um único smartphone exija a extração de cerca de 400 quilos de recursos naturais, de metais como chumbo e ouro a água.
“Simplesmente não há planeta que dê conta do impacto dessa demanda”, diz o cientista canadense Vaclav Smil, um dos maiores especialistas do mundo em uso de recursos naturais.
Se o celular modular for mesmo bem-sucedido, o Google poderá entrar para um grupo restrito: o de empresas que têm tentado jogar por terra um conceito considerado nefasto pelos defensores do desenvolvimento sustentável — o da obsolescência programada.
Trata-se da prática de estimular o consumidor a trocar seus produtos ao fazer com que eles durem pouco ou percam rapidamente o apelo com o lançamento de novas versões com pequenas alterações no visual. “Poucas indústrias são tão hábeis em fomentar esse padrão de comportamento quanto a de eletroeletrônicos”, diz Tim Jaconette, pesquisador da Universidade Stanford, nos Estados Unidos.
As fabricantes de celular, à medida que lançam um novo produto e atualizam seu sistema operacional, impedem que usuários com aparelhos mais antigos consigam baixá-lo. Logo eles se tornam mais lentos e incapazes de receber novas versões de aplicativos.
Não é de hoje que as empresas vêm fazendo uso desses artifícios para vender mais. A prática ganhou notoriedade nos anos 30, durante a Grande Depressão nos Estados Unidos, quando economistas e empresários começaram a defender a ideia de que poderiam reaquecer o consumo do país diminuindo a validade dos produtos.
Foi nessa época que as fabricantes de lâmpadas, como GE e Philips, assinaram um acordo para reduzir o tempo de duração das lâmpadas incandescentes de 2 500 para 1 000 horas.
“É quase impossível provar que a maioria das companhias desenvolve seus produtos seguindo essa lógica, mas basta notar como os aparelhos estragam rápido”, diz o historiador canadense Giles Slade, que escreveu em 2007 o livro Made to Break (“Feito para quebrar”, sem tradução para o português).
Exceção
Entre os raríssimos exemplos de negócios que desafiam essa lógica, um dos mais conhecidos é o da fabricante americana de artigos esportivos Patagonia. Desde sua fundação, em 1973, o lema da empresa é produzir roupas e calçados que durem.
A marca também incentiva os clientes a só comprar novas peças se eles realmente precisam — e para isso oferece o serviço de reparo em suas lojas e uma página especial no site eBay para que eles negociem peças usadas.
“Instigamos nossos consumidores a consumir menos, mas estamos convictos de que voltarão às nossas lojas quando a peça que eles têm chegar ao fim da linha”, diz Rick Ridgeway, vice-presidente de iniciativas sustentáveis da Patagonia, que faturou 650 milhões de dólares em 2014.
De maneira mais tímida, a varejista inglesa de vestuário Marks & Spencer também tem seguido esse caminho. Em 2012, lançou uma linha de roupas que podem ser lavadas diversas vezes sem que percam a aparência de novas porque o tecido tem enzimas especiais entre seus componentes.
Por enquanto, a empresa vem usando a tecnologia em uniformes escolares e roupas íntimas, categorias menos vulneráveis à ditadura da moda. “Os movimentos das companhias continuarão lentos se os consumidores não derem sinais claros de que desejam que elas mudem seus padrões”, afirma Helio Mattar, diretor do Instituto Akatu, ONG que estimula o consumo consciente.
Fazer a transição para a era do consumo durável pode exigir uma mudança no modelo de negócios. Foi o que aconteceu com a indústria de lâmpadas. Curiosamente, apesar de terem ajudado a inaugurar a era do descartável, essas fabricantes representam hoje um dos exemplos mais bem-acabados de como fazer o novo modelo funcionar.
Para decidir mudar, diga-se, elas tiveram o empurrão de consumidores e governos de inúmeros países — inclusive do Brasil —, que passaram a restringir o uso das lâmpadas incandescentes, muito intensivas em consumo de energia e poluentes.
A saída foi aprimorar e colocar no mercado a preços mais razoáveis o LED, tecnologia existente há 60 anos. Essas lâmpadas duram 25 vezes mais do que as incandescentes, o que obrigou a indústria a rever a maneira de comercializar o produto. Hoje, cerca de 40% da receita das fabricantes de lâmpadas vem da oferta de serviços para clientes corporativos e governos, em que se vende a gestão da iluminação.
A empresa se responsabiliza pela instalação e pela troca das lâmpadas por determinado período. “Se perder uma venda hoje, só terei outra chance daqui a duas décadas”, diz Renato Garcia Carvalho, diretor de iluminação da Philips. Na era do durável, ganhar a fidelidade do consumidor pode ser mais difícil. Mas é também uma vitória de longo prazo.