Parque da Disney: 157 milhões de visitantes por ano em quatro países (Disney/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 22 de novembro de 2019 às 05h50.
Última atualização em 22 de novembro de 2019 às 06h50.
O auditório está lotado. São cerca de 7.000 pessoas de olhos grudados em quase uma dezena de telas espalhadas pelo salão montado no centro de convenções de Anaheim, na Califórnia. As luzes se apagam. Seguranças de cara séria caminham pelos corredores para garantir que não haja vazamento das cenas, ainda inéditas. Começa o trailer de A Ascensão Skywalker, último dos nove filmes da série Star Wars. Naves espaciais cortam o céu de um planeta muito distante, e gritos e assobios irrompem da ala direita, onde é maior a concentração dos fãs da saga interestelar concebida por George Lucas.
Momentos antes, quando foram anunciadas as novidades do mundo Marvel, o barulho dos fãs dos super-heróis — quase uma torcida organizada — era mais alto no lado oposto. O último trailer a ser apresentado foi o de Frozen 2. A plateia quase toda era composta de adultos, mas quem se importa? Mais gritos e aplausos para as princesas do gelo, Elsa e Anna. Estamos no segundo dia da D23, a convenção que a cada dois anos reúne os fãs da “família Disney”.
E que família! A coleção de universos e personagens — ou franquias, como está na moda dizer hoje — da Disney transformou a empresa numa força sem igual no negócio do entretenimento. A casa construída por Mickey Mouse também abriga o Homem de Ferro, o Homem-Aranha e o Capitão América; o xerife Woody, o astronauta Buzz Lightyear e o peixinho Nemo; Luke Skywalker, Darth Vader e Han Solo; Homer e Bart Simpson; animações clássicas de ontem e de hoje, como O Rei Leão, Cinderela, A Pequena Sereia e uma longa lista de princesas. Além, é claro, dos parques de diversões em três continentes e de uma legião de fãs que vão literalmente dos 8 aos 88 anos, como provam as várias cabeças brancas que circulam pelos corredores da D23 (algumas delas escondidas sob a fantasia de seus personagens prediletos).
O serviço de streaming Disney+, lançado no dia 12 de novembro nos Estados Unidos, é a culminação desse acúmulo das propriedades intelectuais mais reconhecidas e lucrativas do imaginário coletivo mundial. Por uma assinatura mensal de meros 7 dólares — ante 13 dólares do pacote mais barato da Netflix e 15 dólares do HBO Now —, a Disney oferece acesso à sua enorme família num único endereço digital, de Steamboat Willie, primeira aparição do Mickey, às 30 temporadas de Os Simpsons; de A Noviça Rebelde a Star Wars: O Despertar da Força. (Os brasileiros terão de esperar até novembro do ano que vem para ter acesso ao serviço; o preço no Brasil ainda não foi anunciado.) A chegada da Disney e grande elenco inaugura uma nova fase da guerra pela supremacia no entretenimento online e promete ser para muita gente o primeiro gostinho do deleite — e também do pesadelo — que será o consumo de mídias digitais no século 21.
O legado dos 15 anos de Bob Iger à frente da Disney, um ícone americano com quase um século de história, será determinado pelo sucesso do Disney+. Descrito como “o cara mais bonzinho de Hollywood”, Iger, de 68 anos, começou como faz-tudo nos estúdios da rede de TV ABC e trabalhou como homem do tempo em uma emissora regional antes de passar para o outro lado das câmeras. No comando da Disney, ele foi às compras com apetite insaciável. Negociou, em 2006, a compra da produtora Pixar diretamente com o intratável Steve Jobs, presidente do estúdio e seu amigo pessoal, por 7,4 bilhões de dólares. Três anos depois arrematou a Marvel Entertainment por 4,2 bilhões. Em 2012, após um ano e meio de namoro, comprou a Lucasfilm, dona da série Star Wars, também por 4 bilhões de dólares. Neste ano, Iger assinou a última adição de conteúdo à família Disney: os estúdios 21st Century Fox, por mais de 71 bilhões de dólares.
De todas as aquisições, entretanto, talvez nenhuma tenha sido mais estratégica do que a BAMTech Media, há dois anos e meio. A startup nasceu como braço tecnológico da liga americana de beisebol e, sob o novo nome de Disney Streaming Services, é a responsável pelo serviço de streaming Disney+. Com exceção do negócio de parques, a Disney sempre dependeu de intermediários para chegar aos clientes. Agora fala direta e individualmente com cada um deles. “Vamos saber do que eles gostam ou não, as afinidades que têm com cada uma de nossas marcas”, disse Kevin Mayer, responsável pela área de negócios diretos com o consumidor, numa conversa com jornalistas estrangeiros durante a D23.
Os distribuidores tradicionalmente compartilham poucos detalhes sobre o desempenho dos produtos licenciados — uma informação que, num negócio verticalizado, como a nova Disney, pode ser aproveitada para fazer marketing e orientar os investimentos da área criativa e também dos parques temáticos. Mayer, apontado como um dos favoritos para suceder a Iger, que prometeu se aposentar em 2021, afirmou que o Disney+ é o sinal de que “estamos completamente no controle de nosso destino”.
Essa clareza de propósito é relativamente recente. Enquanto Netflix, Amazon e HBO se dedicavam com força total ao streaming, a Disney hesitava. Várias iniciativas digitais no passado custaram caro e deram em nada, como Infoseek, Go, Club Penguin e outros fracassos que ficaram pelo caminho. A empresa parecia viver o clássico dilema dos inovadores: por que mexer em time que está ganhando? O primeiro grande alarme soou no meio da década. Embora os personagens de fantasia sejam a cara da empresa, parte importante dos lucros vinha do canal esportivo ESPN. A onda crescente de consumidores cancelando a TV paga — algo que significava menos repasses das operadoras para a Disney — assustou os investidores. A decisão de entrar de vez no negócio de distribuição direta só veio há pouco mais de dois anos, quando Iger anunciou a criação do que viria a ser o Disney+ e o fim de um acordo de licenciamento com a futura concorrente Netflix.
O licenciamento do catálogo de filmes e séries é um negócio bilionário, e a Disney estava pronta para abrir mão de dinheiro garantido em troca de controlar o relacionamento com os fãs. Considere as duas seguintes informações. Quatro das cinco maiores bilheterias dos cinemas globais deste ano (sem contar o novo Frozen e o episódio final da série Star Wars, que ainda não estrearam) são da Disney. No topo da lista está Vingadores: Ultimato, que arrecadou 2,8 bilhões de dólares no mundo inteiro e se tornou o filme de maior sucesso comercial da história.
Iger poderia simplesmente seguir usando terceiros (como Apple, Amazon, HBO e Netflix) para lucrar com as janelas de lançamento que vêm depois dos cinemas. Mas a Disney optou pela independência. “Raras vezes vimos uma empresa disposta a criar esse tipo de ruptura financeira numa mudança estratégica de modelo de negócios”, escreveu num relatório o analista Michael Nathanson, especialista em mídia da empresa de pesquisas de mercado MoffetNathanson. Segundo Nathanson, a Disney potencialmente está largando bilhões de dólares na mesa ao deixar de licenciar suas propriedades intelectuais.
Esse buraco nas receitas mais a precificação agressiva do serviço e o investimento em conteúdo original (mais sobre isso em instantes) não parecem assustar os investidores. No fechamento desta edição, a Disney tinha um valor de mercado superior a 260 bilhões de dólares, pouco mais do que o dobro dos 129 bilhões da Netflix. As ações da empresa subiram 35% neste ano e atingiram um pico histórico no dia seguinte à estreia do Disney+. A empresa anunciou que, na primeira semana de operação, o novo serviço já contava com 10 milhões de assinantes (as assinaturas vinham sendo vendidas havia meses). A expectativa é chegar a 90 milhões de clientes nos próximos cinco anos. A estimativa é que a Netflix, hoje com 158 milhões de clientes pagantes, dobre esse total no mesmo período.
Mas a Disney não está só interessada na contagem de assinantes. O serviço de streaming abre um novo espaço para ampliar seus universos de fantasia. “As histórias do Disney+ serão completamente interligadas com o que vemos nos filmes”, diz Kevin Feige, guru maior do Universo Cinematográfico Marvel, conhecido pela sigla em inglês MCU. Apenas em lançamentos nos cinemas, o MCU conta com 23 filmes. O que acontece no Homem-Aranha interfere na história dos Vingadores, que interfere no que acontece no Homem-Formiga, e assim por diante.
Mas os fãs ferrenhos desse mundo de fantasia — e eles são muitos — querem mais, e é pensando neles que a Disney está criando séries exclusivas, como a dedicada a Loki, o irmão adotivo de Thor. “Os personagens [que aparecerem no Disney+] estarão mudados quando reaparecerem no cinema.” Quem quiser entender os próximos filmes do MCU, como disse Feige numa entrevista recente, provavelmente vai precisar assinar o Disney+.
O maior chamariz do novo serviço é a série original The Mandalorian, parte do universo Star Wars. Estrelado pelo chileno Pedro Pascal (que ficou famoso como Oberyn Martell em Guerra dos Tronos), Mandalorian é um faroeste espacial que conta a história de um caçador de recompensa e se passa cinco anos antes dos eventos de O Retorno de Jedi, filme lançado em 1983. A série foi escrita e dirigida por Jon Favreau, um dos pesos pesados da Disney, responsável por Homem de Ferro 2 e pela recente versão computadorizada de O Rei Leão.
Os fãs mais ferrenhos identificaram a semelhança entre Mandalorian e Boba Fett, um dos coadjuvantes mais famosos da trilogia original de Star Wars. O universo das animações computadorizadas da Pixar também vai ganhar uma série derivada da original que será exclusiva no Disney+. Monsters at Work (“Monstros trabalhando”, numa tradução livre) vai mostrar as novas aventuras de Mike e Sulley, os protagonistas do vencedor do Oscar Monstros S.A., com a dublagem dos atores dos filmes originais, Billy Crystal e John Goodman.
A empresa não revela quanto está investindo em produções originais, mas, segundo estimativas, certos seriados custarão até 25 milhões de dólares por episódio, valores comparáveis aos da superprodução Guerra dos Tronos, da HBO. Todos os números dessa chamada “era de ouro da TV” dão vertigem. A Apple estaria disposta a investir 6 bilhões de dólares numa programação original para seu recém-lançado serviço Apple TV+ — apesar de seus primeiros esforços, como a série The Morning Show, com os astros Jennifer Anniston e Steve Carell, terem recebido críticas tépidas. Os números da Amazon Prime Video, dona da premiada série A Maravilhosa Sra. Maisel, são semelhantes.
A Netflix deve colocar 15 bilhões de dólares em centenas de séries e filmes originais neste ano. A disputa pelos direitos de seriados que fizeram sucesso no passado também desafia a racionalidade. O serviço HBO Max, da WarnerMedia, que estreará nos Estados Unidos no ano que vem, saiu vencedor do leilão pelo direito de exibir Friends por cinco anos. O preço? Segundo especulações publicadas pela imprensa americana, 425 milhões de dólares. Para não ficar para trás, a Netflix pagou um valor parecido para exibir, a partir de 2021, os 180 episódios de Seinfeld.
Bolo dividido
A batalha pela supremacia nos serviços de streaming vai se dar, pelo menos no futuro próximo, segundo a lógica das companhias de tecnologia, diz o analista Nathanson: “A preocupação com dinheiro vem depois. O importante agora é conseguir assinantes. É isso que a Netflix vem fazendo há anos”. O jogo não é de soma zero, ou seja, não haverá um único vencedor que ficará com o bolo inteiro. Uma pesquisa do instituto Harris Poll em parceria com o The Wall Street Journal indica que os consumidores americanos estariam dispostos a pagar 44 dólares por mês, na média, para assinar três ou quatro serviços de streaming de vídeo (e essa conta não inclui serviços de música, como Spotify, ou assinaturas de jornais e revistas online).
Mas tanta escolha tem um custo que vai além do dinheiro: assistir à TV vai ficar complicado. Os heróis Marvel estarão no Disney+; e Guerra dos Tronos, na HBO. E o resto? O consumidor que se vire para achar o que quiser ver. Por enquanto, não existe nada que se compare ao guia eletrônico de programação das TVs a cabo, um app que organize em um único lugar o que está disponível nas diversas plataformas concorrentes. A alternativa é resignar-se com a tela da TV tomada por um amontoado de aplicativos.
Conquistar a lealdade dos consumidores vai ser essencial, de acordo com a pesquisa do The Wall Street Journal: um terço dos entrevistados disse que provavelmente cancelará a assinatura da Netflix para experimentar um dos novos serviços. Entre os millennials está virando moda fazer um revezamento mensal das assinaturas de streaming, já que é fácil assinar e cancelar os serviços. Para evitar o problema, a Disney vai lançar os episódios de suas produções semanalmente, e não tudo de uma vez, como faz a maioria dos concorrentes.
Netflix e Amazon foram procuradas por EXAME, mas não quiseram se pronunciar sobre o Disney+. Falando num evento no início de novembro, Ted Sarandos, responsável pelo conteúdo da Netflix, disse que a chegada do Disney+ “não muda nada, na verdade”. Segundo ele, o foco da Netflix continua sendo produzir conteúdos amados pelos clientes. Reed Hastings, presidente da empresa, foi um pouco mais diplomático. “Entre todos os competidores”, disse ele, “é com a Disney que temos mais o que aprender em termos de entretenimento.”
No Brasil, o Globoplay, do Grupo Globo, tem investimentos volumosos planejados para o futuro imediato. Com 25 milhões de usuários (incluindo não pagantes), a empresa diz que o total de assinantes do conteúdo pago aumentou 50% neste ano. Para 2020, a meta é investir 1 bilhão de reais na plataforma, a maior parte em conteúdo. “Vamos buscar nossa diferenciação no conteúdo próprio e local, mas isso não quer dizer que não teremos séries estrangeiras para completar o portfólio”, afirma Erick Brêtas, diretor-geral do Globoplay. De acordo com Brêtas, o serviço tem 16 novas produções originais confirmadas para 2020 — nove de produtoras independentes.
No ano que vem, a empresa vai oferecer pela primeira vez novelas produzidas especialmente para o Globoplay e que, posteriormente, serão transmitidas na TV aberta. A primeira delas será a nova fase de Verdades Secretas. A força do conteúdo nacional, produzido pela maior emissora do país e com décadas de conhecimento sobre o que agrada ao telespectador brasileiro, não pode ser descartada, segundo Matteo Ceurvels, analista da eMarketer Consultoria. “Veremos uma grande batalha de conteúdo original em níveis global, regional e local”, diz Ceurvels.
A estratégia da Globo contempla a estreia de documentários jornalísticos exclusivos para a plataforma, que poderão ser produzidos pela equipe do grupo ou por parceiros. O orçamento desse projeto já está reservado para 2020. Haverá, ainda, uma parceria para adquirir direitos de conteúdo da TV britânica BBC. “No futuro, devemos ter um movimento de consolidação no setor, mas temos convicção de que estaremos na liderança de mercado junto com os grandes players globais”, diz Brêtas.
O que nem a Globo nem as outras empresas puramente de conteúdo podem replicar é a parte offline do negócio da Disney: os parques temáticos. Em 2018, eles foram responsáveis pela metade dos quase 60 bilhões de dólares faturados pela empresa. Ao todo, as propriedades da Disney receberam 157 milhões de visitantes no ano passado. Os cinco parques mais visitados dos Estados Unidos em 2018 foram todos da Disney, segundo o ranking da Themed Entertainment Association, que acompanha a movimentação do setor (a Disney não divulga dados de visitação).
Depois de anos de espera dos fãs, a Disney inaugurou em seus dois parques americanos duas áreas inteiras e idênticas dedicadas a Star Wars. Batizado de Galaxy’s Edge, o espaço de 60.000 metros quadrados contém o primeiro Falcão do Milênio em “tamanho natural”. O simulador da nave espacial mais famosa dos filmes foi o primeiro brinquedo de Star Wars lançado pela empresa. Outra atração, batizada de Rise of the Resistance e com abertura prevista para dezembro no parque da Flórida (e janeiro no da Califórnia), será ainda mais ambiciosa. Os visitantes terão a sensação de participar de uma cena de filme, interagindo com os andadores AT-AT e com um destacamento de stormtroopers.
O Galaxy’s Edge tem uma característica um pouco diferente dos outros “mundos” dos parques da Disney. Os brinquedos e as (muitas) lojas estão lá, é claro, mas a ênfase foi “criar um espaço em que os visitantes pudessem viver a própria história Star Wars”, diz Kirstin Makela, diretora de arte da Walt Disney Imagineering, área da empresa que concebe e constrói as atrações dos parques. Um dos focos principais é a personalização e o uso intensivo da tecnologia, num reconhecimento tácito de que o celular é um concorrente que não pode ser desprezado. Uma oficina permite a montagem de robôs personalizados — equipados com sensores, interagem com o ambiente do parque na saída da loja (preço: 100 dólares). No Savi’s Workshop, o consumidor pode montar o próprio sabre de luz, orientado por um “ferreiro das galáxias” (200 dólares).
Analistas estimam que a Disney investirá 24 bilhões de dólares em reformas e novas atrações de seus seis resorts, que incluem unidades em Paris, Xangai, Tóquio e Hong Kong. É mais do que a empresa pagou para adquirir Marvel, Lucasfilm e Pixar. Mas, no mundo Disney, tudo se mistura. As histórias viram atrações nos parques, as atrações dos parques viram histórias nas telas. Os filmes Piratas do Caribe foram inspirados no brinquedo de mesmo nome. No ano que vem, a Disney vai lançar Jungle Cruise, uma aventura pela Amazônia que se baseia numa das atrações em funcionamento desde a inauguração da Disneyland em junho de 1955.
Nenhuma empresa se compara à Disney quando o assunto é vender sonhos, do frio na barriga da montanha-russa aos suspiros no escurinho do cinema (ou no sofá de casa). Só não esqueça que, como disse o próprio Walt Disney, “foi um rato que começou isso tudo”.
Com reportagem de Juliana Estigarríbia