Alceu Caldeira, Alcione e Caroline Albanesi e André de Luca: à frente de um grupo de mais de 10.000 voluntários no sertão do Nordeste (Leandro Fonseca/Exame)
Diretor de redação da Exame
Publicado em 20 de abril de 2023 às 06h00.
Última atualização em 17 de abril de 2024 às 12h21.
Trinta quilômetros de estrada de chão separam a casa onde Messias e Ivaneis Valério moram com quatro filhos e a cidade mais próxima. O caminho é bonito, por dentro do Parque Nacional do Catimbau, a 300 quilômetros do Recife, onde mandacarus passam rentes às janelas dos carros, e onde turistas exploram trilhas e cavernas desenhadas em arenitos avermelhados de milhões de anos. A paisagem é verde, mas árida. Estamos na época das chuvas no sertão pernambucano, que dura apenas algumas semanas, não o suficiente para que a terra seca garanta o sustento dos moradores em plantações de feijão, mandioca, abóbora. A casa é uma das cerca de 40 que, espaçadas, compõem o povoado de Vale do Catimbau. Ao centro, uma igreja evangélica. Uns 500 metros à frente, virando à direita, fica o terreno da família Valério. Durante décadas, eles moraram numa casa de pau a pique, com teto baixo e fogão a lenha sempre aceso. Não havia chuveiro nem vaso sanitário. Um televisor iluminava a sala. No quintal, meia dúzia de galinhas e uma plantação de palma para alimentar cabras e jumentos. Na tarde do sábado 25 de março, os Valério haviam vestido suas melhores roupas. O motivo: era dia de mudança. Durante os seis meses anteriores, uma casa nova, de alvenaria, com três quartos, banheiro, sala e cozinha, foi construída a 20 passos da antiga. Agora era hora de finalmente conhecê-la.
Quem construiu a casa, e estava prestes a entregar a chave naquela tarde de sábado, foi a ONG Amigos do Bem, criada em São Paulo pela empresária Alcione Albanesi, ex-controladora da FLC, uma das líderes no mercado nacional de lâmpadas no início do século. A ONG atua em mais de 300 povoados do sertão nordestino em Pernambuco, Alagoas e no Ceará. Seus 10.600 voluntários atendem 150.000 pessoas rotineiramente. Alcione chegou com os diretores André de Luca e Alceu Caldeira, e com um grupo de dezenas de voluntários responsáveis pelas entregas de cestas básicas às comunidades. Cantou músicas, fez orações e entregou as chaves. A casa nova tinha copos, talheres, roupa de cama, decoração na sala e brinquedos para as crianças. Messias entrou no chuveiro de roupa e tudo, para celebrar a água encanada. Para Alcione, o momento também era marcante. Era a semana de seu aniversário, em que celebrava também a marca de 30 anos da Amigos do Bem, um projeto que nas últimas décadas busca quebrar o círculo vicioso de miséria na região mais carente do Brasil.
Aquela era a 544a casa entregue pelo projeto, que também distribui 4,5 milhões de quilos de alimentos e 1,8 milhão de refeições por ano para moradores de 300 povoados com alguns dos menores Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. Também distribui 1,2 bilhão de litros de água por ano e faz 187.000 atendimentos médicos e odontológicos. A média de IDH nos municípios em que a Amigos do Bem atua é de 0,487, semelhante ao de Guiné-Bissau, 177o entre os 191 países do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. O Nordeste tem 30 milhões de pessoas na pobreza, o equivalente a 40% de sua população, segundo o IBGE. No sertão nordestino, onde a ONG atua, estima-se que 80% dos 20 milhões de moradores são pobres.
A reportagem da EXAME acompanhou a rotina da Amigos do Bem durante um fim de semana, junto com um grupo de executivos e empresários que se uniram aos voluntários da organização. Para a Amigos do Bem, o aniversário marca um ponto de inflexão. Para além do trabalho silencioso de todo dia, a ONG busca, cada vez mais, ser vista e conhecida por empresários e possíveis parceiros de todo o país. “Precisamos ampliar o projeto, chegar a mais lugares, a mais famílias. Queremos, também, replicar nosso modelo de desenvolvimento sustentável para além da Amigos do Bem”, diz Alcione. Depois de entregar as chaves para a família Valério, ela embarcou num carro seguido por um caminhão abarrotado de alimentos e produtos de higiene, em direção ao próximo povoado, o de Igrejinha, onde mais uma centena de moradores esperava pelos produtos que chegam mensalmente. Cada um deles tem um cartão que carrega os dados de quantas pessoas vivem em cada casa. Grávidas também recebem enxovais. Alcione e seus voluntários aproveitam as visitas para conversar com os moradores, conhecer as novas demandas, fazer sugestões, atualizar os dados cadastrais.
É um trabalho artesanal o suficiente para que as pessoas sejam chamadas pelo nome e questionadas sobre como anda a dor nas costas ou a depressão, ou se as crianças estão indo à escola. “No dia em que o médico vier, você precisa ir”, informa Alcione a uma gestante que ainda não havia começado o pré-natal. O desafio da vez é como manter esse atendimento individualizado e ampliar ainda mais um projeto que já tem números superlativos e uma atuação ampla e complexa. A Amigos do Bem começou há 30 anos entregando cestas de natal para as famílias, um trabalho que ainda faz — 100.000 brinquedos são distribuídos todos os anos. Aos poucos, foi ampliando a atuação. Hoje, tem uma infinidade de serviços e uma estrutura maior do que muitas prefeituras e médias empresas. A ONG tem 80 funcionários em sua sede, em São Paulo, responsáveis pela administração, tecnologia, logística e arrecadação. Espalhados pelo sertão do Nordeste são mais 1.500. Em Catimbau e Inajá (Pernambuco), Mauriti (Ceará) e São José da Tapera (Alagoas) a Amigos do Bem tem escolas, centros profissionalizantes, consultório médico e odontológico, além de entregar alimentos, distribuir água, cavar poços artesianos, construir cisternas, pagar bolsas para faculdades.
Em Catimbau e Mauriti a ONG tem 630 hectares de cajueiros, além de fábricas que produzem, cada uma, até 800 quilos de castanhas por dia, vendidas nos varejistas Carrefour e Pão de Açúcar. As unidades foram pensadas para empregar o máximo de funcionários possível sem perder a eficiência. Reuniões de acompanhamento do projeto envolvem discussões inusitadas em outro tipo de negócio, com perguntas como: “Não conseguimos pagar mais às pessoas?”. O objetivo é fazer com que o máximo de recursos chegue às comunidades para fomentar a economia local. Nas duas cidades, a organização construiu também bairros inteiros, batizados de Cidades do Bem, com casas, igreja, centro comunitário, áreas comuns com parquinho e campo de futebol. Em Catimbau, há oficina de costura, fábrica de doces e até serviço de empréstimo e reparo de bicicletas para as crianças que não deixam de frequentar a escola. “Construir casas é fácil. O difícil é cuidar das pessoas”, diz Caroline Albanesi, filha de Alcione e vice-presidente de comunicação e arrecadação da ONG.
Chegar a novas regiões sem perder a excelência na entrega é um desafio para qualquer empresa verticalizada. Para a Amigos do Bem, com seu exército de funcionários e voluntários que muda a vida de dezenas de milhares de famílias, ainda mais. A Amigos do Bem, atualmente, atende 12 dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), que incluem erradicação da pobreza, energia limpa e acessível e crescimento econômico. “A ONG tem um modelo que se mostrou bem-sucedido. Estamos, agora, criando protocolos e trabalhando juntos para chegar a novos lugares”, diz Leandro Mosconi, líder de conteúdo do Pacto Global da ONU. “Buscar fontes de financiamento, sobretudo de empresas locais, é um passo fundamental.”
A Amigos do Bem tem um orçamento anual na casa dos 100 milhões de reais, auditado pela EY, no limite para bancar as despesas. A ONG arrecada 30% de seus recursos com a venda de produtos, sobretudo da castanha de caju. O restante vem da doação de 350 empresas e de pessoas físicas, principalmente mulheres de 35 a 45 anos, moradoras do Sudeste. A meta deste ano é triplicar o número de pessoas físicas, que hoje respondem por cerca de 15% do total de doações. Entre as empresas parceiras, há líderes em seus setores, cujos controladores sentam no conselho da Amigos do Bem, como Elie Horn, da construtora Cyrela, e Luiza Trajano, do Magazine Luiza. Ampliar o apoio de companhias regionais, sobretudo nordestinas, e o volume de doadores individuais é prioridade. “Hoje, 80% das doações dependem de mim. Precisamos ampliar a captação com empresas e triplicar o número de doadores individuais”, diz Alcione. “Quem visita o projeto percebe que ele tem impacto muito maior do que o conhecimento que as pessoas têm sobre ele”, diz Ricardo Carvalho, CEO da Companhia Brasileira de Alumínio e presidente do conselho do Instituto Votorantim, que visitou o sertão junto com a reportagem.
A dependência de sua fundadora é a maior fortaleza e o maior desafio da Amigos do Bem. Alcione começou a vida empresarial aos 17 anos, quando trocou uma carreira de modelo pela de dona de uma confecção. Aprendeu os macetes do setor e recrutou as primeiras costureiras nos bastidores dos desfiles. Chegou a ter 80 funcionários. Vendeu o negócio aos 26 anos e abriu uma loja de eletrônicos na Santa Ifigênia, tradicional rua comercial do centro de São Paulo. Com a abertura do mercado, em 1992, criou uma fábrica de lâmpadas e começou a viajar à China com frequência. Mesmo sem funcionários, batizou o negócio com uma sigla que revelava o tamanho de sua ambição: FLC, ou Fortune Lightining Corporation. Em duas décadas, chegou a ter oito fábricas exclusivas na China, foi pioneira em lâmpadas de LED no Brasil e chegou a ter 40% do mercado nacional. Em 2014, após mais de 70 visitas ao país asiático, vendeu a companhia, que faturava cerca de 300 milhões de reais, ao fundo de private equity Victoria Capital Partners, para poder se dedicar inteiramente à Amigos do Bem. Atualmente, a empresária passa a maior parte de seus dias no sertão do Nordeste, dirigindo ela mesma caminhonetes pelas estradas de terra que separam as dezenas de povoados. É figura tão emblemática para o projeto que há músicas e faixas com seu nome nas escolas e nos povoados, e é recebida como popstar pelas crianças.
São as crianças que fazem a empreendedora ter a confiança de que o projeto tem vida própria e está pronto para novos saltos. É uma geração que, segundo Alcione, “corria pelo mato seco” e atualmente é a linha de frente da organização. A Amigos do Bem já investiu em 500 bolsas universitárias para que seus alunos consigam trabalho dentro e fora do projeto. Dezenas de professores e assistentes sociais do projeto são ex-alunos que agora servem de modelo aos mais jovens. Entre eles está, por exemplo, a assistente social Jéssica Geovana Maria da Silva, de 26 anos, ex-aluna que começou a trabalhar no projeto em 2016 e hoje atende famílias de casa em casa na região de Inajá. Além do emprego, a Amigos do Bem financiou uma cirurgia nos olhos, para corrigir uma miopia que passava dos 12 graus. Thiago Ramos da Silva Leite, de 23 anos, fez faculdade de pedagogia e hoje dá aula de música na escola do projeto em Catimbau. Manoel Wallace Ramos da Silva, de 29 anos, estudou análise de desenvolvimento de sistemas e hoje é professor de informática em Catimbau. Seu assistente, André Bezerra Ramos, de 19 anos, faz parte de uma nova geração de alunos da Amigos do Bem. Além das aulas tradicionais de informática, fez cursos técnicos de programação e webdesign graças à instalação de internet de alta velocidade com fibra óptica nas unidades do projeto, em 2021.
Com parcerias com o Senac e com empresas como Google, Alura, Facebook e Magazine Luiza, a Amigos do Bem aposta na tecnologia como novo salto de crescimento. Além de formar profissionais para dar continuidade ao projeto, a meta é formar mão de obra para, desde o sertão nordestino, trabalhar para empresas de tecnologia do Brasil e do mundo. É o desejo de Ramos, que está para começar uma faculdade de webdesign. Uma parceria já foi fechada com a seguradora Mapfre para a instalação de um centro de atendimento em Alagoas, com potencial para 200 vagas. A organização está instalando o que chama de Praça Digital, estruturas que permitem o uso de internet de alta velocidade nos povoados em que atua. No Ceará, um centro de tecnologia foi instalado na escola do projeto. Outros centros podem vir a ser criados para permitir, por exemplo, que os formados no projeto trabalhem, à distância, para empresas parceiras. O Brasil tem um déficit de centenas de milhares de programadores. “Criamos um modelo de desenvolvimento social responsável. Educação é a base, mas precisamos gerar mais trabalho para quebrar o ciclo da miséria”, afirma Alcione. “E a tecnologia cria pontes para qualquer lugar do planeta.”
A economia do sertão agradece. Cada real investido pela Amigos do Bem se transforma em 6,45 reais na economia real, segundo um levantamento do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), organização que apoia o investimento social. De 2012 a 2021, segundo o Idis, a ONG gerou impacto social de 2,1 bilhões de reais no sertão nordestino. É um impacto que a organização quer levar a mais regiões, e que a tecnologia pode ajudar a multiplicar. •