Netanyahu: primeiro-ministro não conseguiu formar maioria no Parlamento de 120 lugares (Kobi Wolf/Bloomberg)
Carolina Riveira
Publicado em 10 de outubro de 2019 às 05h36.
Última atualização em 21 de fevereiro de 2020 às 23h46.
Com 9 milhões de habitantes, Israel virou um microcosmo de uma crise global: a do parlamentarismo. O país caminha para sua terceira eleição em um ano. Após o último pleito, no dia 17 de setembro, a coalizão liderada pelo Likud, partido do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, não conseguiu formar maioria no Parlamento de 120 lugares. Levou 32 cadeiras, uma a menos do que o rival Azul e Branco, liderado pelo general Benny Gantz.
Ambos conservadores, os dois grupos até aceitaram sentar para negociar uma coalizão, mas não deu certo. Assim como não deu para Pedro Sánchez, do partido de centro-esquerda PSOE, na Espanha, que marcou a segunda eleição do ano para novembro depois de conseguir maioria insuficiente em abril. Espanha e Israel lideram um grupo que tem ainda Itália, Bélgica, Áustria e Reino Unido, países parlamentaristas em plena crise política. São exemplos que levam um número crescente de analistas a se questionar sobre o que está dando errado com o sistema político utilizado por mais de 60 países no mundo.
O parlamentarismo surgiu no Reino Unido após a Revolução Gloriosa de 1688, que tirou da monarquia o poder de chefiar o governo e o transferiu ao Parlamento. Em linhas gerais, é o sistema que separa o chefe de Estado, que pode ser o presidente, o rei ou a rainha, do chefe de governo, papel que cabe ao primeiro-ministro escolhido por uma coalizão parlamentar. Apesar dos impasses, o parlamentarismo vem funcionando há três séculos.
Mas há algo de novo no ar. Nas eleições de 2010, por exemplo, a Bélgica levou um tempo recorde de 541 dias para formar um governo. A explicação para esse e para os mais novos impasses está na crescente fragmentação política. Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, criou-se nos sistemas parlamentaristas, sobretudo nos europeus, um modelo de dois ou três partidos maiores que se dividiam entre a centro-esquerda (os social-democratas) e a centro-direita (os conservadores). “Esses dois blocos no comando compartilhavam visões em alguns pontos e tinham desavenças que conseguiam contornar”, diz o historiador Alexander Keyssar, da Harvard Kennedy School. Partidos menores ou eram oposição quase inofensiva aos grandes partidos ou se uniam a eles em coalizões.
Mas esse paradigma vem ruindo na mesma intensidade com que cai a popularidade dos partidos tradicionais. Assim, na última década, democracias bipartidárias têm visto o nascimento ou o fortalecimento de partidos menores, criados para responder a demandas específicas da população. “Nenhum partido em grandes democracias consegue ser grande o suficiente para definir o tom sozinho”, diz a cientista política Sheri Berman, professora na Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos, e especialista em história das democracias.
O movimento se dá nos dois lados do espectro político. Partidos mais à esquerda vêm se distanciando da social-democracia de centro, que, em sua visão, não oferece mais bons projetos de igualdade social. É o caso do Syriza, na Grécia, ou do Podemos, na Espanha. Partidos que já existiam e tinham posições mais afastadas do centro também passaram a ganhar atenção, como os Verdes, de esquerda, que chegaram a coalizões governistas na Suécia e em Luxemburgo e aumentaram a participação no Parlamento Europeu.
Na direita, surgiram ou ganharam força partidos mais conservadores, com bandeira anti-imigração e nacionalistas, como o Vox, na Espanha, o Interesse Flamengo (Vlaams Belang ou VB), na Bélgica, e o Alternativa para a Alemanha (AfD). A insatisfação dos conservadores com os partidos tradicionais de centro-direita também fez ressurgir das cinzas partidos antigos, como os Democratas Suecos (SD) e o Freedom Party, na Áustria. Também surgiram partidos de centro-direita liberal que tentam se apresentar como opção ao radicalismo, como o Ciudadanos, na Espanha, e o Neos, na Áustria. Nascem até legendas de um homem só. Em Portugal, que foi às urnas no início de outubro, António Costa garantiu uma reeleição sem sustos, mas nove partidos ganharam lugar no Parlamento, ante cinco em 2005 — três deles com um só eleito.
Nas eleições para o Parlamento Europeu neste ano, embora a vitória tenha sido do Partido Popular Europeu (PPE), de centro-direita, seguido pelos socialistas, os dois partidos perderam para legendas menores a maioria que detinham há 40 anos. “Ter mais partidos menores faz um acordo ser mais difícil, principalmente se os partidos de centro não querem uma coalizão com a ultradireita”, diz Dan O’Brien, economista-chefe no Instituto de Estudos Europeus, na Irlanda.
Com a queda na popularidade dos grandes partidos, as novas legendas também estão mais rebeldes e menos dispostas a abrir mão de seus pontos de vista. Sinal de novos tempos: na Espanha, o PSOE, com 123 cadeiras das 350 no Parlamento, não quis oferecer ministérios suficientes ao Podemos (42 cadeiras), que, por sua vez, se recusou a fazer parte do governo, embora ambos os partidos sejam ligados à esquerda. A polarização e o surgimento de novos partidos não são um cenário restrito a países parlamentaristas. Na França, maior país presidencialista da Europa, Jean-Luc Mélenchon, de esquerda mais radical, e a Frente Nacional de Marine Le Pen, de ultradireita, conseguiram, juntos, 41% dos votos no primeiro turno da eleição de 2017 — ainda que Emmanuel Macron, de centro, tenha saído vitorioso.
O contexto que levou novos partidos a ganhar força é conhecido. A crise econômica, a automação industrial, o desemprego e, em alguma medida, as fake news são responsáveis por um sentimento de desamparo da população, que pôs a culpa nos governos historicamente no poder. “O desafio desses países é a fragmentação partidária, e não o sistema parlamentarista. Mas a dificuldade torna-se mais visível pelas exigências do modelo de coalizão”, diz Cláudio Couto, coordenador do mestrado de gestão em políticas públicas da Fundação Getulio Vargas.
Em Israel, embora o Likud de Netanyahu tenha tido primeiro-ministro em boa parte da história recente do Estado criado em 1948, atualmente há nove coalizões com cadeiras no Knesset, o Parlamento israelense. Como o Brasil sabe bem, partidos demais e com ideologias diferentes — ou sem ideologia nenhuma — podem também fazer com que mesmo governos presidencialistas tenham dificuldade em governar. Ao exemplo brasileiro somam-se o de vizinhos como Peru e Equador, em crise política mais uma vez.
Apesar de tornar mais difícil qualquer tipo de governo, há um lado positivo nesse movimento. Novos partidos dão voz a novas demandas na agenda política. O século 21 trouxe consigo demandas que vão muito além do antigo embate entre a classe trabalhadora e a classe média mais conservadora, de acordo com o cientista político Anthony Mughan, da Universidade Estadual de Ohio, e autor do livro Media and the Presidentialization of Parliamentary Elections (“A mídia e a presidencialização das eleições parlamentares”, numa tradução livre). No sistema político atual, pautas chamadas “identitárias” são mais importantes do que eram até 1990. “Na teoria, se esses novos partidos conseguem representar mais grupos, melhor para a democracia”, diz Mughan. Para governar, os partidos tradicionais passaram a ter de apresentar soluções para temas antes fora da agenda, como igualdade de gênero, orientação sexual, raça e cor, identidades nacionais e meio ambiente.
Mas há um porém. Desesperadas para não perder votos, legendas outrora de centro vêm se deslocando para os extremos, dando menos voz a alas mais moderadas dentro dos partidos. O premiê conservador húngaro Viktor Orbán e seu partido Fidesz, antes de centro-direita, radicalizam o discurso anti-imigração, que lhes assegurou a maioria e um terceiro mandato nas eleições de 2018. No Reino Unido, o sistema bipartidário tradicional segue em vigor, mas com problemas. O Partido Conservador, no poder desde 2010, enfrenta uma batalha interna acerca do Brexit, a saída da União Europeia. David Cameron, premiê de 2010 a 2016, era contra a saída, mas não conseguiu combater alas mais radicais do partido, como o atual premiê, Boris Johnson.
Já no rival, o Partido Trabalhista, alas apontam que o líder Jeremy Corbyn deveria ter medidas mais duras para impedir a saída sem acordo defendida por Johnson. Nesse caso, as desavenças não estão nas urnas, mas existem a ponto de atrapalhar o governo, com Johnson tendo dificuldade em formar uma base de apoio dentro do próprio partido. Mesmo nos Estados Unidos, presidencialista e também essencialmente bipartidário, analistas políticos consideram possível que senadores republicanos votem pelo impeachment de Donald Trump, numa resposta ao crescente radicalismo do partido.
A junção de todos os dilemas do parlamentarismo está reunida na Alemanha. Por lá, reina um acordo entre os partidos conservadores-cristãos CSU e CDU, este último da chanceler Angela Merkel, e os social-democratas do SPD. A “grande coalizão” funciona desde o primeiro governo Merkel, em 2005 (com exceção dos anos entre 2011 e 2013). Ao mesmo tempo, a ultranacionalista AfD, nascida em 2013, conseguiu chegar ao Bundestag pela primeira vez em 2017, com 13% dos votos. Do outro lado, os verdes devem se consagrar nas próximas eleições como segunda maior bancada. Já a social-democracia do SPD sangra: sem conseguir se distanciar da centro-direita de Merkel rumo a uma candidatura própria, o partido perdeu eleitores para os verdes e passou a ser visto como “moderado demais”.
Apesar da divisão crescente, a coalizão de Merkel tem o apoio de 60% dos alemães para terminar o mandato, segundo pesquisa de setembro da rede de TV ARD. Para 58% dos alemães, Merkel é a razão para as coisas “irem bem”. Sinal de que, apesar das novas demandas, a maior razão para a volatilidade eleitoral talvez seja a velha economia. “Se tudo vai bem e os problemas são resolvidos, os eleitores tendem a manter posições moderadas”, afirma Berman, da Bernard College. A má notícia: a economia global está em franco desaquecimento. Mais fragmentação a caminho.