Revista Exame

Erramos feio

Como a humanidade foi capaz de dormir no ponto tão formidavelmente? A conta será exorbitante — mas também haverá consequências positivas da pandemia

 (Eugene Mymrin/Getty Images)

(Eugene Mymrin/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 9 de abril de 2020 às 05h00.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 14h54.

Eventos disruptivos ensinam, entre outras coisas, humildade. A pergunta que não quer calar é saber como fomos capazes de dormir no ponto tão formidavelmente. No final de janeiro, a China havia isolado quase 60 milhões de pessoas. A ação radical foi amplamente divulgada pelo mundo e, obviamente, sugeria que o vírus era perigosamente contagioso, certo? Ainda assim, em 19 de fevereiro, semanas depois, a maioria das pessoas, que se dizem antenadas e que processam informações de boa qualidade, não estava nem aí. O evento que definiria uma nova divisão AC/DC na crônica humana corria solto, e a bolsa americana batia novo recorde. No Brasil, o trivial ligeiro: Carnaval, ofensas do presidente etc.

Aí a ficha caiu. Dizem que foi um “cisne negro”, metáfora popularizada para descrever surpresas de grande impacto. Ok, não há dúvida de que a ave possa ter pousado na China. Mas por que o perigo, uma vez conhecido, foi desprezado? Não por falta de aviso. Há artigos científicos advertindo para a ameaça de pandemias publicados no final dos anos 1990. Todos viram o vídeo do Bill Gates de quatro anos atrás. É inegável que coletivamente pisamos feio na bola. Quando se comete um erro colossal, as consequências são inimagináveis. Agora o cisne encontra-se com boa parte do pescoço afundado na lama. A tragédia vivida por países ricos prenuncia horrores impensáveis para os pobres. Tomara que não.

Quem é capaz de prever com o mínimo de acurácia o que vem por aí? Sou um dos que não viram o cisne passar — e não conheço quem tenha visto. Sabia do risco de o mundo entrar em recessão em 2020, como todos, mas não imaginei que fôssemos passar por um apuro assim, mesmo depois de saber do vírus. Portanto, o primeiro conselho é desconfiar de cenários econômicos. Parto do pressuposto que a humanidade sobreviverá — parece razoável. Aceita a premissa, a história sugere que cedo ou tarde haverá recuperação da economia. Quando vier, poderá ser relativamente rápida no início, pois há poupança forçada e demanda reprimida. O timing é incerto — torço por sinais melhores no segundo semestre. Além disso, a retomada deverá ser antecipada pelos mercados financeiros, ou seja, a bolsa subirá com manchetes feias. Além dos dados sobre o contágio, devemos buscar sinais nos preços.

Durante a travessia, tudo pode acontecer e é bom se preparar para o pior. O dano econômico das medidas extremas de distanciamento social, especialmente em países emergentes, deverá eclipsar com folga o que se viu em 2008/09. Se a humanidade tivesse reagido tempestiva e coordenadamente após o susto na China, talvez a recessão fosse branda, mas ignorância, desleixo e irresponsabilidade fizeram com que a doença se espalhasse. Qualquer epidemiologista de botequim, e hoje somos muitos, sabe que é preciso “achatar a curva” e se conformar com tempos difíceis. A boca e as mãos dos que teimam em negar a realidade e têm poder para fazer bobagens estão sendo, respectivamente, caladas e amarradas em graus distintos. Isso é razão para algum otimismo.

Que fique claro, não se trata de afirmar que a economia não seja importante. É vital, evidentemente, e crises econômicas também matam. Mas a situação gravíssima em que a humanidade se meteu exige reagir com base no pior cenário, mesmo que não seja o mais provável. Trata-se de um princípio de precaução elementar, pois o que está em jogo, no limite, é a sobrevivência de todos. Proteger a vida equivale a salvar a economia. Ponto.

O roteiro está mais ou menos delineado. É hora de conter a praga, para evitar óbitos que não deveriam ocorrer em condições normais. Enquanto essa fase durar teremos quarentenas. Paralelamente, é preciso dados para saber a proporção de infectados, particularmente de casos assintomáticos. Com informações abrangentes será possível relaxar gradualmente o distanciamento, dando início à recuperação. Pode haver alternância de períodos de maior e menor controle. Se a vacina chegar mais rápido do que se espera, melhor.

O problema é que, na medida em que se achata a curva ela se alonga. Ao contrário de um “apagão” convencional — por exemplo, um terremoto —, a saída poderá ser irregular, nem como um “V”, nem como um “U”, mas como um “W”. Aos governos caberá dar suporte para atenuar o baque. Quem puder mais, chorará menos. O Brasil não está entre os mais aptos, mas dá calafrios pensar como as nações realmente pobres vão se virar. Um pouco de solidariedade faria bem.

Não há dados para saber a magnitude do tombo já sofrido pela economia global. Um guia é lembrar que cada semana representa cerca de 2% do que se produz em um ano. Estimativas para os Estados Unidos sugerem que empregos que representam um pouco menos da metade da renda total podem ser feitos de casa. Franceses disseram que um terço do PIB é perdido nas quarentenas. Desconsidere de forma heroica as complementaridades, chute um período de isolamento, e esses são os elementos para que cada um faça as próprias contas de padaria. Depois ajuste para cima ou para baixo de acordo com seu humor. Não há como escapar de números bem feios.

Após a recessão, é possível que uma parte das perdas seja recuperada — no passado foi assim. O novo potencial de crescimento talvez seja menor do que o atual porque o distanciamento entre os países deve perdurar e economia é quase sinônimo de integração. Quando a poeira baixar, discutiremos os efeitos colaterais. Poderemos ter inflação, certamente pagaremos mais impostos e os juros também podem ser mais altos. A política, indecorosa há muito tempo, ficará mais sórdida. Oxalá estejamos mais preparados para a eventualidade de uma nova pandemia.

Haverá também aspectos positivos. De início, devemos agradecer o fato de a lição ter sido aplicada por um vírus contagioso, mas pouco letal — poderia ser muito pior. Além disso, estamos nos acostumando a trabalhar remotamente e isso trará ganhos de produtividade e melhora de qualidade de vida em cidades congestionadas. O isolamento é um belo “experimento natural” para subsidiar estudos ambientais cujos resultados terão potencial de abrir os olhos dos céticos para os riscos climáticos. E, quem sabe, o sofrimento coletivo não acabe nos tornando um pouco mais sensatos e generosos? Seria também um “cisne negro”, mas já que eles ocorrem de vez em quando… 

Celso Toledo é doutor em economia pela USP e diretor da LCA Consultores | Divulgação

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