Metalúrgica Vassari, em São Paulo: ao lado do ponto eletrônico, o velho relógio de ponto continua a postos (Marcela Beltrão/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 26 de janeiro de 2012 às 06h00.
São Paulo - Uma lei publicada no fim de 2011 conseguiu a proeza de enrijecer ainda mais a já travada legislação trabalhista brasileira. A intenção oficial era deixar explícito que trabalhadores que atuam fora da sede da empresa e recebem ordens por internet ou celular têm direitos iguais aos de colegas do escritório.
A Justiça já sabia como tratar a questão: quem trabalha em casa é funcionário como outro qualquer. Mas veio a lei — e, com ela, uma nova confusão. Muitas empresas temem que funcionários reclamem o pagamento de horas extras sobre todo o período que passam com o celular ligado.
E assim surgiu mais uma arapuca trabalhista no Brasil. Ela se soma às 2 400 regras que compõem o emaranhado da legislação na área. Como não para de crescer, a selva de regras inferniza a vida das empresas e responde pelo fato de o Brasil ocupar a 121ª posição, entre 142 países avaliados pelo Fórum Econômico Mundial, em matéria de flexibilidade para contratar e demitir.
Esse cenário, somado aos encargos que dobram o custo da folha de salários, mina a competitividade das empresas. E, ao que parece, nada está sendo feito para melhorar a situação — ao contrário, ela só piora.
Não é apenas a barafunda de normas que aflige quem produz. Volta e meia juízes geram insegurança ao mudar a leitura de regras. O McDonald’s tem vivido esse problema. A empresa adota uma escala segundo a qual os horários e as folgas dos funcionários variam todo mês.
A ideia é evitar que sempre os mesmos trabalhem nos fins de semana e ajudar quem estuda a organizar horários para tarefas escolares — quase 80% dos 40 000 funcionários do McDonald’s são menores de idade. Recentemente, a empresa passou a ser questionada nos tribunais por essa prática.
“As leis brasileiras continuam refratárias a iniciativas criativas. Estão contestando agora um modelo que funciona desde os anos 70”, diz Elton Magalhães, principal executivo de recursos humanos da operação brasileira do McDonald’s.
As tentativas de tornar as regras mais maleáveis no Brasil costumam esbarrar em dois obstáculos. O primeiro é a resistência sindical a mudanças. O outro é a falta de lideranças políticas dispostas a encarar o desgaste de defender uma pauta impopular. “Em 1994, tentamos realizar um projeto de reforma trabalhista, a ser iniciado junto com o Plano Real.
Mas o processo não avançou porque dependia da correlação de forças no Congresso — e ninguém quis ceder”, diz o ex-ministro do Trabalho Walter Barelli. “Não temos projeto de reforma. Temos só remendos”, afirma Nelson Mannrich, advogado da banca Felsberg. De remendo em remendo, criou-se um Frankenstein cada vez mais assustador.
EXAME consultou 20 especialistas em relações de trabalho e, com base em suas opiniões, lista a seguir sete dos maiores absurdos em vigor na lei trabalhista brasileira.
Trabalho remoto
As empresas da área de tecnologia estão entre as que podem ser mais prejudicadas se a lei que trata do trabalho realizado de forma remota de fato desencadear ações pelo pagamento de horas extras. Segundo a nova regra, qualquer e-mail ou telefonema fora do expediente é considerado trabalho, que deve ser remunerado.
Estima-se que 3,5 milhões de pessoas trabalhem em esquema de home office no Brasil. E outros milhões acessem e-mail ou atendam telefonemas. Edson Silva, presidente da Nexxera, prestadora de serviços de tecnologia da informação para grandes bancos, diz que o receio com ações trabalhistas a fez limitar o acesso a meios de interação fora de sua sede, em Florianópolis.
O acesso remoto ao e-mail profissional não é mais possível para 280 empregados. Ainda há um grupo restrito, de 40 funcionários mais graduados, com acesso a e-mail e celular corporativos. O tratamento diferenciado a esse grupo inclui banco de horas e comissões. Mas nada disso é garantia de que não possa haver litígio no futuro. “A lei deixa as empresas expostas”, diz Silva.
O futuro é do papel
Uma controversa portaria do Ministério do Trabalho exigirá que, a partir de abril, os equipamentos de registro de ponto eletrônico liberem para o trabalhador, a cada entrada e saída do expediente, um comprovante em papel de sua presença. A nova norma nasceu, em tese, como forma de evitar fraudes no registro dos horários de trabalho dos funcionários.
Mas o argumento é furado. Afinal, apenas empresas que utilizam ponto eletrônico serão obrigadas a instalar um emissor de comprovantes em papel. Estão fora da obrigação as que preferiram manter os anacrônicos relógios de ponto com cartão ou ainda os registros por escrito em cadernos.
“Quando mudarem a regra, volto ao cartão de ponto, que ficou guardado. Só não sei se vou conseguir encontrar cartão nas gráficas”, diz Antônio Vassari, sócio da Vassari, uma pequena metalúrgica de São Paulo.
O dilema da Vassari demonstra que não apenas as grandes empresas são afetadas pela avalanche de normas. Estima-se que, ao fim de cinco anos, cada trabalhador terá recebido 120 metros de tíquetes.
Limite para o aprendizado
A lei que rege as relações de trabalho dos estagiários foi escrita a pretexto de barrar a estratégia de empresas que utilizam esses profissionais como mão de obra barata. Pode até ter sido bem intencionada, mas criou uma amarra desnecessária. A lei impede a permanência do estagiário por mais de dois anos, mesmo que tanto ela quanto o aprendiz queiram prolongar a relação.
O texto pune as empresas com a perda da oportunidade de preparar por mais tempo um potencial talento. Pune também o estagiário, que vê fugir a chance de, ao entrar em uma empresa logo que ingressa na universidade, estender o relacionamento até depois da formatura.
E o Brasil perde com essa limitação. Há hoje cerca de 1 milhão de estagiários. Mas, em virtude da barreira legal, faltam aprendizes em áreas como a engenharia, um dos gargalos do país. O desemprego entre jovens é de 15%, o mais alto entre todas as faixas.
Sete vale oito
Esta é mais uma das tantas jabuticabas da legislação trabalhista. Expressa na Consolidação das Leis do Trabalho, a regra foi criada como forma de compensação para quem cumpre jornadas noturnas, consideradas mais desgastantes. Além de pagamento de adicional noturno, a norma determina que as 7 horas passadas entre 22 horas e 5 horas sejam contadas como 8.
Essa invenção é um complicador para os departamentos financeiro e de pessoal das empresas e também mais um ônus. “Além de ser um custo adicional, fica mais difícil calcular salários e benefícios”, afirma Carlos Rosa, gerente de recursos humanos da Embraco, fabricante catarinense de compressores para refrigeração.
Ócio obrigatório
Segundo a CLT, o trabalhador é obrigado a descansar nas férias, mesmo que não queira. Se quiser fazer um bico nas férias, pode ser mandado embora por isso. A lei impede também que as férias sejam divididas em mais de duas vezes ou em intervalos menores que dez dias, expediente comum em países com normas trabalhistas mais flexíveis.
Outra anomalia da legislação trabalhista é que pessoas com mais de 50 anos não podem parcelar as férias. A regra é anterior à CLT, que é de 1943, quando a expectativa de vida no país era de 42 anos — hoje é de 73. Os cinquentenários então eram considerados “idosos”, que não podiam se dar ao luxo de descansar a conta-gotas.
“A questão das férias mostra como a legislação ficou obsoleta. Hoje, uma pessoa de 50 anos está em plena atividade, mas o legislador não acompanhou essa evolução”, diz Sérgio Faria, vice-presidente do Grupo TPC, um dos maiores operadores logísticos do Nordeste, com 3 000 funcionários.
Almoço cronometrado
A regra do almoço com tempo imposto por lei — 1 hora exata — é outro apêndice a denunciar a origem ancestral da legislação trabalhista brasileira. A CLT surgiu com ideia de criar uma rede de proteção social e econômica para os trabalhadores. Esse espírito se manteve ao longo das décadas, e a CLT, ainda que bastante alterada e remendada nesses quase 70 anos, segue com feições de protecionismo em excesso.
“As leis são essenciais, mas não é preciso detalhar tudo. Muitas questões, como a do horário de almoço, poderiam muito bem ser resolvidas diretamente entre empresa e empregado”, diz Luiz Martins, presidente do Anaconda, um dos maiores moinhos de trigo do país. “Às vezes é o próprio funcionário que pede para que o horário seja mais flexível.”
Regra até no banheiro
Muitas das centenas de normas de saúde e segurança no trabalho são imprescindíveis. É o caso das que relacionam o nível de exposição a ruído ou calor, por exemplo. Mas detalhar até a altura de divisórias de banheiro, que necessariamente têm de ter altura mínima de 2,1 metros e distância do chão de 15 centímetros, só serve para expor as empresas ao risco de multas por normas ridículas.
“O ideal seria estabelecer um padrão mínimo de civilização, com direitos básicos, e a partir daí deixar livre a negociação. É como se faz na Europa”, afirma Otávio Pinto e Silva, professor de direito do trabalho da Universidade de São Paulo.