Resgate de imigrantes no Mediterrâneo: uma travessia perigosa para a Europa | André Coelho/Getty Images /
Da Redação
Publicado em 27 de setembro de 2018 às 05h26.
Última atualização em 27 de setembro de 2018 às 05h26.
Toda sexta-feira, a arquiteta belga Barbara Hagelstan, de 28 anos, prepara o sofá da sala para receber hóspedes especiais durante o fim de semana. Moradora de Bruxelas, capital da Bélgica, ela oferece seu apartamento, que divide com o namorado, para que um imigrante se hospede lá, de graça, por alguns dias. Barbara faz parte de um grupo no Facebook que presta assistência a imigrantes -— as atividades vão desde doar cobertores e comida até a oferta de um teto para quem não tem onde dormir. A boa ação tem seus riscos. A polícia belga tem feito buscas nos lugares que viraram ponto de encontro de imigrantes ilegais e, muitas vezes, os voluntários acabam entrando na confusão. As brigas e os conflitos com imigrantes são frequentes e só têm aumentado. Segundo os dados mais recentes das Nações Unidas, nunca houve tantas pessoas no mundo forçadas a viver fora do país de origem. Atualmente são mais de 25 milhões de deslocados, mais do que toda a população da Austrália. Eles fugiram de seus países por causa de guerras, da violência, da fome, de desastres ambientais ou — como no caso dos imigrantes venezuelanos — de uma severa crise econômica e política. Outros 40 milhões de pessoas deixaram suas casas pelos mesmos motivos, mas não atravessaram as fronteiras. Ao mesmo tempo que o número de imigrantes tem aumentado, está mais difícil encontrar um novo lar -— pelo menos na Europa e nos Estados Unidos, onde tomaram corpo políticas mais restritivas de imigração.
Na Itália, o novo governo, formado por uma coalizão de partidos nacionalistas, elegeu-se com a promessa de deportar os 500 000 imigrantes que vivem no país. Na Suécia, o partido nacionalista Democratas Suecos, que tem como principal bandeira a tolerância zero com os imigrantes ilegais, ficou em terceiro lugar nas eleições parlamentares em setembro, com 17% dos votos. Foi o melhor desempenho do partido desde que foi formado em 1988. Em Roraima, a imigração de venezuelanos para o Brasil é o principal tema da campanha ao governo do estado. Os três candidatos que lideram as pesquisas -— José de Anchieta Júnior (PSDB), Antonio Denarium (PSL) e a atual governadora, Suely Campos (PP) -— defendem o fechamento da fronteira. “Alguns políticos têm usado a questão do fluxo migratório para chegar ao poder, apelando para o medo da população frente à chegada de pessoas de diferentes raças e religiões”, diz Kai Kenkel, professor no Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O fechamento de fronteiras nos países está mudando o mapa das rotas migratórias. Nos Estados Unidos, nos últimos meses houve uma redução de 20% na quantidade de pessoas que tentam cruzar a fronteira com o México. Há motivos de sobra para a queda. Muitos imigrantes passaram a temer a política de tolerância zero do governo do presidente Donald Trump, com a separação de pais e filhos e maior número de prisões de refugiados. Só de março a maio deste ano, foram presos 150 000 imigrantes na fronteira, três vezes mais do que no mesmo período do ano passado. Centenas de crianças ainda continuam separadas dos pais, apesar da obrigação judicial, imposta ao governo americano, de reunir as famílias.
Na Europa, a situação é parecida. Itália e Malta têm impedido que barcos com refugiados atraquem em seus portos. Sem ter para onde ir, muitos botes ficam à deriva ou demoram dias até ter permissão para jogar âncora. Muita gente não resiste a esses percalços e simplesmente morre de fome, de sede ou de hipotermia. “O Mediterrâneo se transformou na rota marítima mais letal do mundo”, afirma Charlie Yaxley, porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. De janeiro a setembro deste ano, 1 700 refugiados morreram no Mediterrâneo tentando chegar à Europa.
Esse cenário está empurrando a imigração internacional para novas direções. A maioria dos refugiados vive hoje em países menos desenvolvidos. A Turquia é a campeã do ranking de acolhimento, com 3,5 milhões de imigrantes, seguida por Paquistão, vizinho do turbulento Afeganistão, e Uganda, que faz fronteira com o Sudão do Sul, imerso numa violenta guerra civil. “As medidas cada vez mais restritivas na Europa e nos Estados Unidos fazem com que os imigrantes procurem lugares periféricos, que mantêm as fronteiras abertas”, diz Rosana Baeninger, professora no Núcleo de Estudos da População da Universidade de Campinas. O presidente turco, Recep Erdogan, fez um acordo com a União Europeia para impedir a saída de refugiados do litoral da Turquia — em troca, recebeu 3 bilhões de euros em 2016. Os líderes europeus acabam de liberar outros 3 bilhões para Erdogan, reeleito no final de junho, como parte do mesmo acerto. As consequências dessas medidas são visíveis. A Europa recebeu 40% menos pedidos de refúgio no ano passado do que em 2016.
Nem todos interpretam essa mudança como uma boa notícia. Existe uma razão econômica que justificaria que os países mais ricos da Europa abrissem as portas para os imigrantes. Na Alemanha, na Itália e na Grécia, cerca de 20% da população têm mais de 65 anos. A expectativa é que o estrato economicamente ativo caia pela metade em toda a Europa até 2060. A mão de obra deve diminuir pelo menos 12% com peso crescente sobre a previdência. “Os imigrantes sírios, afegãos e de outros países representam uma força de trabalho jovem, com muito a contribuir numa sociedade que envelhece rapidamente. Não à toa, a chanceler Angela Merkel recebeu 1 milhão de refugiados”, afirma o economista britânico Philip Legrain, professor na London School of Economics especializado em migração e conselheiro econômico da Comissão Europeia de 2011 a 2014.
O envelhecimento e o encolhimento da população europeia devem ser sentidos principalmente nos setores que exigem menos qualificação, pagam salários mais baixos e não atraem tanto a população nativa. É aí que entram os imigrantes. Na Alemanha, metade dos refugiados está empregada em serviços auxiliares, como cuidadores de idosos, babás e cozinheiros. O setor de trabalhos manuais e artesanato, que sofre com a carência de aprendizes, também começou a recrutar estrangeiros. “As empresas em geral percebem que contratar imigrantes representa uma oportunidade de aumentar a diversidade e contar com profissionais muito engajados”, diz Carlo Pereira, secretário executivo da Rede Brasil do Pacto Global, uma iniciativa criada pelas Nações Unidas para incentivar boas práticas de negócios nas áreas ambiental e social. A entidade criou o programa Empoderando Refugiadas, voltado para a inserção de mulheres imigrantes no mercado de trabalho. A terceira edição começou em agosto — sessões de coach e workshops com empresas fazem parte da programação, que vai até novembro. Neste ano, participam seis empresas, duas a mais do que em 2017. Também há mais refugiadas. Elas falam dialetos africanos, árabe e outros idiomas, e vêm de países como República Democrática do Congo e Síria.
Essa pluralidade é também uma característica do novo fluxo migratório no Brasil. O governo tem em mãos atualmente mais de 80 000 solicitações de refúgio — dez vezes mais do que há uma década. A nacionalidade dos estrangeiros vem se diversificando amplamente. No primeiro semestre do ano, chegaram ao país estrangeiros de todas as partes do mundo, de mais de 100 nações. Há desde refugiados do Benin e de Burkina Faso, países da África, até Bangladesh, Ilhas Fiji (atingida por um forte terremoto no ano passado), ambos na Ásia, e Iêmen, país do Oriente Médio que está em guerra há três anos. Os sírios também estão nessa lista — assim como os venezuelanos, em uma corrida migratória cada vez mais intensa. “Como não há sinal de que os conflitos mundiais deverão diminuir no curto prazo e o acesso aos países mais desenvolvidos ficou mais difícil, a tendência é o Brasil receber cada vez mais refugiados”, afirma Rosana -Baeninger, da Unicamp.
Desde o agravamento da crise na Venezuela, às voltas com uma hiperinflação que pode atingir 1 000 000% neste ano e com uma impressionante escassez de recursos, o Brasil recebeu dezenas de milhares de venezuelanos. O colapso econômico, que colocou 80% da população abaixo da linha de pobreza, fez com que muitos venezuelanos decidissem partir. Cerca de 1 milhão de pessoas deixaram o país — mais de 800 000 foram para a Colômbia, atraídas pela facilidade do idioma, e 40 000 cruzaram a fronteira com o Brasil. O químico Simon José Fernandes Granadillo, de 34 anos, integra essa estatística. Ele mora em São Paulo desde 2015. Granadillo conta que, na Venezuela, trabalhou sete anos em uma empresa especializada no controle de qualidade do petróleo, no polo industrial de Valencia, e tinha uma vida confortável. “Era um lugar em que se vivia bem, mas tudo isso ruiu. Nunca imaginei que um dia meu salário vivaria pó”, diz.
Granadillo não teve dúvida. Juntou o que havia sobrado das economias, pegou o ônibus em Valencia e foi para Manaus. De lá, embarcou para São Paulo. Com a ajuda de amigos que já moravam na cidade, conseguiu um emprego de garçom em uma rede de hotéis. Em maio deste ano, foi selecionado para trabalhar em uma grande indústria farmacêutica, como auxiliar de produção. “Fiquei muito feliz e sei que posso evoluir ainda mais”, diz. Faz parte de seus planos trazer a mãe, a avó, o irmão e os dois cachorros da família, que ficaram na Venezuela. “Tenho fé que vou conseguir”, afirma Granadillo.
A maioria dos venezuelanos que entram no Brasil pela fronteira em Roraima, no entanto, não tem condições financeiras de pagar uma viagem para outros estados mais desenvolvidos e acaba permanecendo lá, agravando os problemas sociais no estado. Até setembro, o governo federal já havia transportado quase 2 000 venezuelanos para outros estados. No entanto, é preciso mais que isso para que outros imigrantes também possam reconstruir a vida no Brasil — como milhões de diversas origens já fizeram no passado.