Dólar: câmbio depreciado afeta a vida de todos (JamieB/Getty Images)
Denyse Godoy
Publicado em 4 de junho de 2020 às 05h30.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h45.
Era uma vez o dólar a 3 reais. Desde março de 2015 a moeda americana se mantinha nesse nível de preço, mas no segundo semestre do ano passado começou a subir e no início de 2020 disparou, deixando consumidores, turistas que planejavam viagem ao exterior e empresas que importam insumos ou têm dívida em dólar bastante preocupados. Quando o brasileiro começou a questionar se a cotação voltaria a cair, o ministro da Economia, Paulo Guedes, avisou: o patamar mais elevado para a moeda americana é o “novo normal” agora no país.
A desvalorização do real resulta, fundamentalmente, de uma mudança estratégica. Por muitos anos entre as mais elevadas do mundo, a taxa básica de juro local, a Selic, começou a ser reduzida em 2016, quando se encontrava em 14,25% ao ano, e atingiu em maio de 2020 o menor nível da história: 3%. Os juros baixos incentivam os investimentos produtivos, o consumo e a diversificação da poupança, essenciais para o crescimento sustentável do país, mas também levam à depreciação do câmbio.
O capital de curto prazo que antes entrava no Brasil apenas para lucrar com os juros estratosféricos de aplicações de risco baixo agora precisa buscar outras opções no mercado internacional. Ter menos dólares no mercado local acaba jogando a cotação da moeda para cima.
Além dessa transformação estrutural, apontada pelos especialistas como a mais importante e benéfica para a economia do Brasil desde o Plano Real, de 1994, fatores conjunturais explicam por que o dólar continuou escalando depois de atingir os 4 reais, em agosto passado, e chegou ao recorde de 5,90 reais em 13 de maio. (O euro também aumentou mais de 40% em dez meses e superou 6 reais no mês passado.)
Primeiro, foi o acirramento da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. A desaceleração global, até então um grande temor, virou realidade com a pandemia do novo coronavírus, causador da infecção respiratória covid-19, que freou bruscamente a atividade econômica em todo o planeta e fez desabar os preços das matérias-primas agrícolas e metálicas — principais produtos de exportação brasileiro.
A crise do governo Jair Bolsonaro, por lançar dúvidas sobre a continuidade das reformas econômicas e os marcos regulatórios, também tem espantado os estrangeiros que colocavam dinheiro no país interessados em projetos de longo prazo, como os de infraestrutura ou mesmo a exploração de petróleo.
Desde o pico perto de 6 reais, o dólar recuou um pouco, principalmente por causa dos sinais de enfraquecimento da covid-19 em outros países. Mas, como uma solução definitiva para os problemas que levaram à alta da moeda não está à vista, a tendência é que a cotação permaneça entre 5 e 6 reais por alguns meses. “O Brasil vai ter muita dificuldade de sair desse balaio de gato”, diz Sidnei Nehme, diretor da corretora de câmbio NGO e um dos maiores especialistas do país no assunto, com 61 anos de carreira.
“O dólar caro veio para ficar.” Os analistas ouvidos pelo Banco Central na pesquisa semanal Focus projetam uma cotação de 5,40 reais para a moeda americana no final de 2020 e de 5,08 reais no fim do ano que vem. Resta administrar a situação. O governo, os investidores de todos os perfis, os viajantes e as empresas estão refazendo suas contas para adaptar as finanças ao novo cenário. Eles não serão os únicos afetados pelo câmbio depreciado. A elevação da moeda americana muda a vida de todos. A EXAME ouviu especialistas e participantes desse mercado para mostrar como. Leia abaixo.
O ministro Paulo Guedes classificou como normal e esperada a escalada do dólar, mas não esperava que a moeda americana pudesse chegar a 5 reais e muito menos se aproximar de 6 reais, a menos que fosse feita “muita besteira”, segundo disse no começo de março. A alta do câmbio, porém, pode ser positiva para as contas públicas.
“Como o governo é credor líquido, ou seja, tem mais reservas em dólar do que dívida externa, a depreciação do real ajuda o governo do ponto de vista fiscal”, diz Nelson Marconi, professor de economia e gestão pública na Fundação Getulio Vargas. Como apenas 5% da dívida total do governo era denominada em moeda estrangeira até o fim de abril, os 340 bilhões de dólares das reservas brasileiras ficavam 55% superiores ao passivo externo.
Quando o dólar tocou na cotação máxima do ano, as reservas brasileiras chegaram a ter uma apreciação de pouco mais de 600 bilhões de reais — quantia equivalente a 8% do PIB. Ulisses Ruiz de Gamboa, professor de economia na Universidade Mackenzie, avalia que esse dinheiro pode servir para dar um fôlego extra às contas públicas, principalmente neste momento de maior demanda por programas de auxílio.
“O Banco Central pode realizar o lucro da alta das reservas, vendendo um montante, e repassar ao Tesouro Nacional. Qualquer dinheiro que entra em caixa é bem-vindo”, diz. Mas o lucro do BC deve ser menor do que a valorização das reservas, porque a atuação da instituição no mercado de câmbio a fim de impedir uma apreciação descontrolada do dólar tem dado prejuízos bilionários. Até o fim de abril, as operações de swap cambial tiveram perdas de 54,8 bilhões de reais. O BC tem intensificado o uso dessa ferramenta, que funciona como uma venda de moeda americana, mas com o compromisso de recompra no futuro.
Somente em abril foram colocados 96 bilhões de dólares no mercado por meio desse tipo de operação. As intervenções do BC diminuíram as reservas em 23,1 bilhões de dólares entre março e abril, mas não foram suficientes para impedir que o real se tornasse uma das moedas mais voláteis do mundo. Para Gabriel Gersztein, chefe global de estratégia para mercados emergentes do banco francês BNP Paribas, as primeiras atuações do BC foram ineficientes. “O banco estava dando liquidez para o especulador, deixando a moeda ser massacrada”, afirma. Mas, segundo ele, o jogo mudou no dia em que o dólar atingiu o patamar máximo de 5,965 reais, em meados de maio.
Naquela sessão, mesmo depois do leilão de swap já ter arrefecido a alta da moeda, a instituição vendeu dólar à vista, fazendo a moeda fechar em queda de mais de 1%. Embora a alta do câmbio tenha aspectos positivos para o governo, é preciso encontrar o ponto em que a elevação se torna maléfica por tirar a credibilidade do real. Para muitos analistas, o limite está nos 6 reais. Cotações acima disso podem levar a uma corrida para fazer hedge (proteção) de investimentos como fábricas, o que poderia acelerar ainda mais a valorização da moeda americana, em uma espiral de alta. Assim, o mercado tem apostado que o governo não vai deixar a moeda americana chegar a tal patamar.
As projeções para o crescimento econômico, o cenário político e a saúde fiscal são apenas alguns dos aspectos analisados por quem deseja alocar recursos em um país emergente como o Brasil. Outro fator importante é o valor da moeda. “Toda avaliação de quem aporta divisas fortes aqui é muito atrelada ao potencial ganho com a variação cambial também”, diz Silvio Campos, economista e sócio da consultoria Tendências.
Se, no passado, era vantajoso até fazer empréstimos em outros países com juros baixos e aplicar na renda fixa brasileira — em 1997, a Selic chegou a 38% ao ano —, em uma transação conhecida como carry trade, a partir de agora, com os juros a 3%, são os investimentos produtivos que podem atrair mais interessados de fora. Os estrangeiros conseguiriam comprar mais ativos interessantes no mercado local por menos recursos em sua moeda original.
“Com o real muito barato surgem ainda mais oportunidades domésticas”, diz Gersztein, do banco BNP Paribas. É assim que as cotações podem recuar: com a entrada de um capital não especulativo que fica mais tempo no país. “Mas o efeito não é imediato. Demora de um ano e meio a dois anos para acontecer.” Mesmo no auge da pandemia no país, em abril a conta-corrente brasileira — que registra a entrada e a saída de recursos decorrentes da comercialização de bens e serviços — teve um superávit recorde de 3,84 bilhões de reais.
O saldo positivo indica ainda que os investidores brasileiros estão fazendo menos aportes em ativos no exterior, seja em empreendimentos e imóveis, seja em ações e títulos corporativos negociados no mercado de capitais. Nos últimos anos, os brasileiros passaram a considerar mais a aplicação em fundos de outros países para diversificar sua carteira e proteger os recursos das incertezas domésticas. Com a apreciação tão forte do dólar, a migração deve perder força, já que os ativos de classe internacional ficam cada vez mais fora do alcance dos investidores locais, embora a necessidade de diversificação da poupança se mantenha.
Mas a perspectiva também é de crescimento dos investimentos financeiros de estrangeiros no país no médio prazo. De acordo com a pesquisa Focus do Banco Central, os analistas do mercado esperam que a Selic ainda caia para 2,25% no final de 2020 devido à necessidade de estimular a economia local na retomada após a pandemia.
No entanto, a taxa deve subir para 3,4% ao fim de 2021, para 5,1% em 2022 e para 6% em 2023. Hoje, os juros no Brasil são inferiores aos de países mais bem avaliados por agências de classificação de risco, como a África do Sul e o México, o que indica que a taxa brasileira está abaixo do nível de equilíbrio para um período de tempo mais longo.
Os especialistas em câmbio explicam que a cotação de 5,90 reais atingida em maio representa o recorde nominal do preço de venda do dólar comercial no Brasil, mas não se trata do maior valor que a moeda americana já atingiu. Para comparar o valor da moeda ao longo da história, é preciso corrigir pela inflação tanto dos Estados Unidos quanto do Brasil. Esse cálculo permite entender como variou o poder de compra do dólar e dos reais equivalentes ao longo do tempo.
Segundo as contas de Einar Rivero, diretor da plataforma de informações financeiras Economatica, o maior valor atingido pelo dólar foi de 7,05 reais em outubro de 2002. Ou seja, para comprar hoje o que 1 dólar (o equivalente a 3,95 reais) comprava naquela época, são necessários 7,05 reais. Há quase 18 anos, os investidores internacionais (e quem mais podia) corriam para tirar seus recursos do país, com medo da eleição do ex-líder sindical Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores.
Havia o temor de que Lula expropriasse bens e investimentos no país. Atualmente, mesmo considerando a pandemia global do novo coronavírus, o medo de uma guerra comercial entre os Estados Unidos e a China e a crise sem fim do governo Bolsonaro, a moeda americana ainda não chegou à sua cotação máxima em relação ao real.
Mas por que, então, os consumidores que compram produtos no exterior e os turistas que viajam para fora (ou querem viajar) estão sentindo tanto no bolso a valorização da moeda americana? Em primeiro lugar, é porque a renda da maioria dos brasileiros não teve a correção pela inflação que é aplicada ao dólar quando se faz a análise da variação do poder de compra ano após ano.
Para comprar o mesmo iPhone do último modelo, o fã da Apple agora gasta mais reais como proporção de seu salário. Obviamente, a inflação é uma média dos preços dos produtos, então existem determinados bens que subiram ainda mais e ficaram mais pesados no orçamento. “Por isso é difícil entender que, apesar de numericamente acima da cotação de 2002, o dólar hoje está mais barato”, diz Rivero.
A escalada da moeda americana (e do euro) deve alterar as tendências de viagens internacionais dos brasileiros. Lisboa, a capital de Portugal, que se tornou o destino favorito dos brasileiros de classe alta que queriam deixar o Brasil por causa da piora da economia e da violência, tende a perder prestígio, assim como Miami, o eterno sonho de compras em outlets disputados.
Mais turistas devem trocar o destino de férias do exterior para localidades no Brasil — talvez não para as praias paradisíacas do Nordeste, que sempre são disputadas, mas para outras que podem aproveitar a oportunidade para se promover como centros de lazer. Capitais latino-americanas, como Buenos Aires, na Argentina, Santiago, no Chile, e o balneário de Punta del Este, no Uruguai, tendem a receber mais turistas porque são acessíveis por via terrestre e as passagens de avião ficarão mais baratas após a crise, que ajudou também a derrubar o preço do combustível de aviação.
E o Canadá, que a cada ano recebe mais estudantes de ensino médio e intercâmbio de línguas, pode esperar ser escolhido por mais brasileiros que queiram estudar fora. Neste ano, enquanto o dólar americano disparou 40%, a moeda canadense ganhou “apenas” 28%. Nesse segmento, sofrem também os intermediários. As corretoras de câmbio se dizem à míngua depois que a cotação da moeda americana disparou, espantando seus clientes.
O volume de negociação do dólar turismo já despencou 95% desde março, de acordo com dados da Associação Brasileira de Câmbio. As transações comerciais, relacionadas a exportação e importação, encolheram cerca de 40%.
Não serão somente os que compram produtos importados e os viajantes os únicos afetados pela apreciação do dólar. A alta da moeda americana, que baliza os preços dos produtos agrícolas no mercado internacional, de uma forma ou de outra vai se refletir nos preços praticados no mercado interno. Desde dezembro, a farinha de trigo subiu 46%, para 1.275 reais a tonelada, no Paraná, segundo um levantamento do Centro de Pesquisas Econômicas da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo.
Esse aumento ainda vai chegar ao pãozinho francês. A disparada da carne bovina, exportada, também deve levar a um aumento de preços no mercado local. Além da alimentação, o setor de vestuário deve sofrer com a alta do dólar porque muitos tecidos e peças prontas agora vêm da China. O de remédios e o de eletroeletrônicos também. A não ser que os fabricantes locais consigam substituir uma parte dos insumos adquiridos no exterior por produção local, como o governo federal gostaria, até para impulsionar a atividade econômica interna arrasada pela covid-19, os preços de todos esses itens deverão subir.
Esse movimento ainda não foi notado porque a crise solapou 5 milhões de postos de trabalho no trimestre encerrado em abril ante o mesmo intervalo em janeiro, empurrando a taxa de desemprego de 12,2% para 12,6% da população ativa.
O rendimento dos trabalhadores também despencou 3,3%, ou 7,3 bilhões de reais, no mesmo período. Com as lojas fechadas e os consumidores sem dinheiro, não tem sido possível repassar a alta do dólar para os preços dos produtos. A prévia da inflação para o mês de maio (o Índice de Preços ao Consumidor Amplo-15), medida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, teve queda de 0,59%, a maior baixa desde o Plano Real, de 1994. Conforme a atividade se recupere, fabricantes e varejistas devem tentar repassar seu aumento de custos para o cliente final. A pesquisa Focus estima que o IPCA vai terminar 2020 em 1,65% e saltar para 3,22% ao final de 2021 e para 3,5% em 2022.
Esse cenário depende, é claro, da recuperação da economia. Prever o comportamento do câmbio é uma das tarefas mais difíceis para os economistas. “Os investidores em real continuam céticos quanto à recente recuperação das cotações que ocorreu nas últimas duas semanas. A turbulência política e a gestão errada da crise do novo coronavírus ainda sustentam uma moeda brasileira mais fraca.
É provável que o Brasil tenha uma das piores recuperações econômicas da covid-19”, diz Edward Moya, analista da corretora de câmbio Oanda em Nova York. Por isso, para quem está planejando uma viagem ao exterior, o melhor conselho continua sendo a cautela. É melhor ir comprando moeda aos poucos para fazer frente aos compromissos no exterior. Investir em fundos cambiais também é uma boa alternativa para proteger os recursos que se planeja usar lá fora.
Mais do que as cotações em si, os movimentos de forte oscilação do câmbio no Brasil historicamente prejudicaram o comércio exterior. Os saltos nas cotações da moeda americana sempre foram uma pedra no sapato não só das empresas que dependem das importações para sua atividade, como as varejistas, mas também dos fabricantes locais que têm uma parte de suas matérias-primas dolarizada. É o caso da indústria automotiva, cuja importação de peças — principalmente eletrônicas, de alto valor agregado — é significativa.
Com uma desvalorização do real de quase 40% desde janeiro, as montadoras estão registrando aumento expressivo dos custos justamente no momento em que as vendas praticamente desapareceram. “É impossível tomar decisões de negócios baseadas no patamar de câmbio das últimas semanas”, afirma Marcio Alfonso, presidente da Caoa Chery. O momento de fortes incertezas no país e no mundo tende a continuar pressionando o câmbio e, consequentemente, aqueles que dependem de importações.
A situação é especialmente danosa para as empresas de pequeno e médio porte. De acordo com dados do Ministério da Economia, o país encerrou o ano de 2019 com 21.686 pessoas jurídicas que atuam na faixa de importação de até 1 milhão de dólares. São elas que terão mais dificuldades para reforçar o caixa e obter capital de giro. Além disso, contratar mecanismos de proteção cambial — o chamado hedge — é extremamente caro, principalmente para empresas de menor porte, que têm menos poder de negociação com os bancos.
De acordo com Carlos Loureiro, presidente do Instituto Nacional dos Distribuidores de Aço, uma operação de hedge, atualmente, custa cerca de 4% a 6% ao ano do total da operação, dependendo da instituição financeira e da negociação. Além disso, provavelmente o cliente em questão ficará sem o valor correspondente à operação em linha de crédito. “As importações de aço para os próximos meses devem cair bastante. Além do custo elevado, o mercado estará muito ruim. Ninguém está fazendo hedge”, afirma o dirigente. A rede de distribuição de aços planos é um dos termômetros da atividade industrial, uma vez que fornece insumos para inúmeros setores, de autopeças à linha branca de eletrodomésticos.
Segundo Pablo Di Si, presidente da Volkswagen na América Latina, uma parcela significativa das mais de 7.000 empresas da cadeia automotiva, no Brasil, é composta de pequenos e médios. Muitos deles importam peças para seu processo fabril. “Os fornecedores do setor têm pouco tempo de caixa disponível. Se essas empresas forem à falência, todo o sistema cairá.”
Com a perspectiva de dólar alto enquanto não houver uma estabilidade econômica e política no país, aqueles que dependem das importações continuarão sofrendo. “O país terá de se acostumar com um novo patamar do dólar, teremos um longo caminho de ajustes e melhora da economia para o câmbio retornar à casa dos 4 reais”, afirma Joelson Sampaio, coordenador do curso de economia da Fundação Getulio Vargas em São Paulo.
Esse custo adicional do câmbio chega a um cenário de queda da demanda global devido à pandemia do novo coronavírus. “As pessoas não estão consumindo muito mais do que o essencial. Para a economia voltar a crescer, temos de vencer essa etapa”, afirma Michael Viriato, professor do Insper. Como o momento é de alta volatilidade, o professor Viriato não descarta o dólar abaixo de 5 reais ou até mesmo acima de 6. “Por isso, a atuação do BC para liberar liquidez na economia foi importante para as empresas que precisavam saldar seus débitos”, acrescenta.
Quitar esses débitos deve ser um desafio adicional para as empresas com grande parte de sua dívida em moeda americana, principalmente aquelas que precisam importar com o patamar atual do dólar. Muitas delas se acostumaram a tomar empréstimos de grandes volumes no exterior. Se a classificação de risco da empresa for boa, a atratividade será ainda maior. Por essa razão, as empresas que carregam endividamento deste período precisam estar atentas a seus custos, especialmente porque a previsão do mercado continua sendo de instabilidade do câmbio, o que é um risco enorme para os importadores.
Com a alta súbita do dólar, o nível de endividamento em moeda americana das empresas exportadoras também acende um alerta para o mercado. Essa dinâmica é verificada em companhias com grande atuação no mercado externo, como a Suzano, de papel e celulose, que encerrou o primeiro trimestre de 2020 com 76,1% de sua dívida bruta, de 75 bilhões de reais, em moeda estrangeira — a maior parte em dólar. O frigorífico Minerva tem 84% de sua dívida, de 11,72 bilhões de reais, em moeda estrangeira.
Já a petroleira estatal Petrobras, maior empresa do Brasil, tinha uma dívida bruta de 89 bilhões de dólares no final de março. Para essas companhias, a própria natureza das suas operações — de grandes volumes de exportações — acaba sendo uma espécie de “hedge natural”, como chamam os especialistas: ao mesmo tempo que o endividamento é dolarizado, a maior parte da receita também é de moeda estrangeira. O efeito do dólar mais alto para essas empresas é meramente contábil, ou seja, só impactará o caixa se chegar o momento de pagar juros e amortização. “Agora é a hora de emitir dívidas no exterior, desde que a empresa consiga colocar esses papéis no prazo e nas taxas desejadas”, afirma Adriano Cantreva, sócio da Portofino Investimentos.
As exportadoras precisam estar atentas principalmente ao prazo de vencimento de suas dívidas em moeda estrangeira para não desembolsar quantias vultosas nesse momento. Ao final do primeiro trimestre, inúmeras companhias acabaram registrando uma alta do endividamento devido ao câmbio. A produtora de aço Gerdau, por exemplo, tinha 84,4% de sua dívida bruta em dólar no final de março. Ao mesmo tempo, 56% de seu caixa era composto de moeda americana — quase metade da receita do grupo gaúcho é proveniente de suas operações nos Estados Unidos.
“Não é um problema quando a dívida aumenta em dólar, exceto se a geração de caixa não acompanha esse crescimento”, afirma Pedro de Marco, analista da Reach Capital. Outra siderúrgica brasileira não tem a mesma situação da Gerdau. Ao final do primeiro trimestre, a Usiminas tinha 65% de sua dívida bruta, de 5,93 bilhões de reais, em moeda americana. Apesar de a companhia atuar na exportação, a maior parte de sua demanda vem do mercado doméstico, que pode amargar uma queda de 20% do consumo de aço neste ano. O trunfo da Usiminas reside, nesse caso, no vencimento de sua dívida: de acordo com a companhia, 99% de seu compromisso total é de longo prazo.
“O risco maior fica para as empresas cuja dívida vai vencer no curto prazo. Ficou mais caro rolar dívidas, principalmente se o setor envolvido for muito afetado pela pandemia”, diz Cantreva. Mesmo com o chamado “hedge natural”, esse raciocínio se aplica também às exportadoras, pois neste momento o porte e, principalmente, o histórico da companhia serão decisivos no momento da renegociação de dívidas.
Embora o dólar mais alto torne as exportações muito atraentes, hoje o cenário global é de retração da economia. Uma prova simbólica — e alarmante — dessa perspectiva é que neste ano o governo chinês não vai definir uma meta de crescimento do produto interno bruto do país pela primeira vez desde 1990. Para agentes do mercado, a decisão é mais um sinal de que uma forte tormenta está para vir no curto e no médio prazo. O PIB da zona do euro deverá recuar 7,7% neste ano por causa do impacto do novo coronavírus, segundo informou o braço executivo da União Europeia. A agência de classificação de risco Fitch projetou uma queda de 4,6% da economia global em 2020.
O que era para ser uma boa notícia para os exportadores — o dólar em patamar mais alto — acabou se tornando nulo: o suposto aumento de competitividade dos produtores brasileiros em meio a um dinamismo internacional mais fraco no mínimo empata o jogo e os efeitos benéficos da taxa de câmbio são neutralizados. Historicamente, um dos aspectos que marcam a trajetória cambial do Brasil é a forte flutuação do dólar e, para empresas que desejam exportar, essa instabilidade prejudica o planejamento.
A conquista de mercados externos leva pelo menos alguns anos para acontecer e a empresa não pode simplesmente parar de exportar se o câmbio não for favorável em determinado momento. “Para a indústria, a conquista de mercados internacionais exige uma enorme canalização de esforços, com destinação de recursos humanos e financeiros. Para exportar, a empresa precisa acreditar que aquela taxa de câmbio vai se manter, porque se trata de um esforço muito grande”, afirma Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial.
Diante de um cenário de pandemia do coronavírus, a capacidade de geração de caixa tem sido um problema para a grande maioria das empresas, incluindo as exportadoras. Embora alguns setores trabalhem com um hedge natural, como papel e celulose, mineração e petróleo, as vendas globais estão caindo no mundo inteiro para todo tipo de empresa.
Desde janeiro, as exportações do Brasil, em valores, vêm recuando apesar da alta do dólar. Segundo dados do Ministério da Economia, em abril os embarques totais atingiram 18,3 bilhões de dólares, um declínio de 5% em relação ao mesmo período de 2019. No acumulado do primeiro quadrimestre, a queda acumulada das exportações foi de 4,4%. A situação é ainda pior para manufaturados, cuja retração no acumulado do ano é de 20,6%.
“Uma parcela importante da elevação do dólar que vemos hoje se deve ao grau de incerteza no mundo, agravado pela crise política em andamento no Brasil. Enquanto isso não passar, dificilmente teremos uma estabilidade do câmbio e mais previsibilidade para as empresas”, diz Cagnin.