Entre escavadeiras e toneladas de minério: desde 2009 em Honduras, a mineradora Aura está apostando no plantio de uvas como uma alternativa de renda à comunidade local (Raquel Brandão/Exame)
Repórter Exame IN
Publicado em 22 de março de 2024 às 06h00.
Última atualização em 22 de março de 2024 às 08h49.
Escavadeiras, correias e caminhões sobem e descem em meio à região montanhosa de La Unión Copan, uma pequena cidade no noroeste de Honduras — a algumas horas de carro da fronteira com a Guatemala e de algumas das ruínas mais emblemáticas da civilização maia. É um ritmo intenso do maquinário que marca a busca de gramas de ouro em toneladas de minerais. Lá fica a mina de ouro San Andres, da Aura Minerals, uma mineradora de origem canadense, mas de gestão e controle brasileiros. Agora, onde antes se buscava ouro, começa uma nova corrida, pouco imaginável: produzir vinho de qualidade.
Plantadas em 1 hectare já explorado da área da mina, as mudas vão vir principalmente da Califórnia, região que colocou os Estados Unidos no mapa do enoturismo, e da Itália. As áreas cujo uso para mineração já está esgotado são destinadas ao reflorestamento, mas, nesse hectare, o destino é novo. Ainda como uma tentativa, o projeto de haver uma vinícola será coordenado pela Fundação San Andres, mantida pela mineradora na região. Por lá, a organização mantém uma unidade de saúde, além de projetos sociais para crianças em época de formação escolar e de promoção de fonte de renda. Recentemente, foi criada a Sabores del Oro, uma padaria-escola para capacitar mulheres da região e dar a elas uma alternativa de renda com a produção de pães e doces. Ainda na primeira edição, 15 mulheres estão recebendo formação. Agora, a criação de uma vinícola tem como objetivo dar início a uma potencial atividade econômica para a comunidade local, que compõe mais de 90% do quadro de funcionários da mina. A unidade Aura Minosa foi adquirida pela empresa em 2009, mas a região já é explorada comercialmente pela mineração desde a década de 1980.
A empresa está investindo 1 milhão de dólares nos primeiros cinco anos do projeto. Na primeira fase, que deve durar quatro anos, será realizada uma pesquisa com o objetivo de determinar as condições agroecológicas da área do plantio e, ao mesmo tempo, avaliar as características e a qualidade dos vinhos produzidos no local. Se obtiver sucesso, o projeto chega à fase seguinte, focada na produção industrial. Vai desde o estabelecimento de plantações de uva até a própria produção de vinho. A partir daí, a expectativa é de uma produção anual de 4.000 a 6.000 garrafas da bebida. Tudo isso feito numa espécie de cooperativa organizada pela Fundação.
O ineditismo chama a atenção, segundo o analista sênior da empresa de pesquisas Euromonitor, Rodrigo Mattos. Especializado no mercado de bebidas alcoólicas, cannabis e café, Mattos faz um paralelo com a Terra Guayi, uma pequena propriedade na zona rural de São Gonçalo do Rio das Pedras, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Por lá, a Terra Gauyi tem se dedicado à recuperação de nascentes e áreas florestais degradadas, produzindo vinhos orgânicos de frutas. São bebidas de fermentação feitas com manga e jabuticaba.
A ideia de tentar produzir vinho onde antes se minerou ouro veio do CEO, Rodrigo Barbosa, à frente da empresa desde 2017. A paisagem e os termômetros inspiraram o executivo, que reconheceu na região de Copan características similares à de Espírito Santo do Pinhal, na região da Serra da Mantiqueira, no interior paulista, local de origem da sua família e onde mantém, há pouco mais de uma década, a vinícola Floresta. Tanto Copan quanto Espírito Santo do Pinhal se caracterizam pela amplitude térmica, que chega a uma variação de até 12 graus no mesmo dia: os dias são quentes e as noites são frescas. “Vinho gosta desse estresse”, explica ele. “A mina ainda tem uma vida longa, mas essa é uma possibilidade de nova fonte de renda para a comunidade local.”
Com um histórico de plantação de café, Espírito Santo do Pinhal vem vivendo um boom do enoturismo. A empreitada começou com investimentos da Guaspari, uma das vinícolas de maior renome do país. Em Pinhal, as primeiras parreiras da Guaspari foram plantadas em 2006, em caráter experimental, numa área de 6 hectares. Entre elas estavam diversas variedades francesas, escolhidas pelo terroir (conjunto de caracterísiticas de solo e clima) da região. O primeiro vinho foi produzido em 2008, de maneira artesanal: foram apenas 30 garrafas, que apresentaram características positivas suficientes para dar sequência ao projeto de produzir vinho de qualidade internacional e assumir o desafio de colocar a pequena cidade da Serra da Mantiqueira no mapa dos grandes vinhos. Hoje, com cerca de 60 hectares, a Guaspari produz 150.000 garrafas ao ano e acumula prêmios. Recentemente, em 2023, ostentou medalhas de ouro no Syrah du Monde e no Concours International des Cabernets.
A vinícola é da mesma família controladora da Aura, o que também reforça a aposta da empresa em um projeto ligado à viticultura. “A expertise em mineração os fez observar as caraterísticas geológicas da região, marcada por formações rochosas e terreno granítico”, conta Fabrizia Zucherato, diretora-executiva da Guaspari, sobre o desenvolvimento da produção em Espírito Santo do Pinhal, onde, além de se instalar, a Guaspari passou a motivar o surgimento de novas vinícolas. “As altitudes de 800 a 1.300 metros e as noites frescas, a amplitude térmica e a ótima insolação — semelhantes às das grandes regiões produtoras mundiais — nos motivaram a aventar a possibilidade do cultivo de parreiras”, diz.
A equipe da Guaspari se aprofundou nos estudos da região e se deparou com a pesquisa do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire, que no início do século 19 se dedicou a explorar e a analisar profundamente o interior de São Paulo e Minas Gerais. Em seus estudos sobre a região da Mantiqueira, o pesquisador citava os fatores diferenciados do terroir em altitudes de 700 a 1.300 metros e as condições climáticas ideais para a cultura. Com um solo seco, de ótima drenagem e granítico em sua grande maioria, a terra da cidade paulista se assemelha ao que é típico de alguns dos grandes terroirs do mundo, tais como Barossa Valley, na Austrália, e Côte-Rotie, na França.
Foi assim que a Floresta, vinícola da família do CEO da Aura, surgiu. Há mais de um século na região, a família Barbosa sempre destinou suas terras ao plantio de café e manteve intensa relação com a cidade por meio da organização não governamental Crescer no Campo, que oferece atividades culturais e educacionais a crianças e adolescentes da rede pública. Plantar uvas e fazer vinho, porém, nunca tinham sido ideias sequer aventadas. “O pessoal da Guaspari nos perguntou: ‘Vocês não querem começar a fazer vinho?’”, lembra Mario Barbosa, pai de Rodrigo e que comanda, ao lado da filha, Cecília Barbosa, a produção da Floresta. Assim, a produção começou com algumas mudas de Cabernet Sauvignon vindas das plantações da Guaspari. Com uma produção de 12.000 a 15.000 garrafas ao ano, a preocupação está mais em alcançar qualidade do que quantidade, defende o produtor.
Rapidamente as garrafas da Floresta começaram a ser oferecidas na carta de vinho do restaurante Le Jazz, em São Paulo, mesmo ainda sem rótulo. O sucesso da empreitada também animou a família Barbosa, conta Cecília, que destaca a mudança vista na cidade: não param de surgir novos investimentos em viticultura em Espírito Santo do Pinhal, o que tem impulsionado a economia local e o turismo. A Floresta foi uma das primeiras vinícolas surgidas após a revolução promovida pela Guaspari. Atualmente, a estimativa é que os investimentos dedicados à viticultura na cidade já somem 500 milhões de reais, com novas entrantes mirando produções grandiosas, de até 300.000 garrafas ao ano. A Floresta, por exemplo, recém-inaugurou seu wine bar, passando a oferecer almoço aos visitantes. Também passou a se aventurar pelos vinhos tintos, com mudas de syrah e cabernet franc.
“O ‘boom’ que está acontecendo agora é resultado da técnica de dupla poda desenvolvida pela Epamig [Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais], por isso a importância de investimento em pesquisa”, define Cecília. A poda normalmente acontece no verão, mas, pelo excesso de chuvas nesse período no Sudeste, a uva perdia muito açúcar. Com a técnica, é feita uma poda em setembro e depois outra perto de fevereiro, o que empurra a colheita para o inverno, permitindo colher uvas de melhor qualidade. Os desafios e as soluções encontrados em Espírito Santo do Pinhal inspiram o projeto ainda embrionário de Honduras. “Cada terroir tem suas particularidades e seus desafios, e não será diferente em Honduras. Esses ajustes serão encarados como parte do processo de empreender e inovar”, diz a diretora-executiva da Guaspari. Uma equipe de profissionais da vinícola está coordenando a estratégia hondurenha.
No coração da América Central — e das belas paisagens do Caribe —, Honduras tem duas épocas de clima bem definido. O período mais seco é entre novembro e abril, enquanto em Espírito Santo do Pinhal o período mais seco é de junho ao começo de setembro. Então o plantio terá de ser pensado para fugir das chuvas e até do risco de furacão entre maio e outubro. Em Copan, a altitude também é menor, entre 800 e 900 metros do nível do mar. Por isso, lá a viticultura será tropical, com produção de primavera, explica Paulo Macedo, engenheiro agrônomo e consultor de viticultura responsável pelo projeto da Fundação San Andres. Além da possibilidade da dupla poda, um dos trabalhos vai ser sobre como se adaptar melhor ao solo. “É um solo bastante pobre e que funciona quase como um resíduo da indústria. Ele tem um PH bastante elevado e pouca matéria orgânica, pois é um solo com característica da indústria da mineração. Para a viticultura, no entanto, isso não é ruim. Muito pelo contrário. Só depende do trabalho certo”, diz Macedo.
Há pouca produção de vinhos na região do Caribe, mais conhecida pelos rótulos de rum. Apenas no México há pequenas vinícolas, com produções interessantes, mas em escala bastante diminuta. Original de Portugal — um destino tradicional no mundo do vinho —, Macedo vê o ineditismo como uma vantagem, colocando o país no radar do mercado, com investimento não só na produção mas também no turismo, e atraindo a curiosidade dos apaixonados por vinho. “Se conseguirmos produzir nessas condições, isso demonstra que é possível produzir uva em qualquer região de Honduras. E acreditamos muito. Será mais uma prova de que outras pessoas podem tentar com mais confiança e perceber que essa cultura tem viabilidade para região e o país”, diz ele.
O desafio está justamente em, dando certo o primeiro plantio no hectare da mina San Andres, convencer cafeicultores a investir em uma nova cultura. O país é o maior produtor de café da América Central e um dos cinco maiores do mundo. A commodity agrícola é a estrela da economia hondurenha, respondendo por cerca de 5% do produto interno bruto (PIB) do país. “A viticultura não vai substituir o café, mas vai ser complementar. E isso é muito similar ao que aconteceu em Espírito Santo do Pinhal, já que até 16 anos atrás ninguém reconhecia a região como uma produtora de qualidade.” Depois do ouro, Honduras pode entrar, então, no mapa do vinho.
* A réporter viajou a convite da Aura Minerals