Revista Exame

Diversidade sem volta

O governo Trump escancarou um cerco crescente a pautas de diversidade. Foi a deixa para muitas empresas mundo afora darem um passo atrás em suas políticas. Para quem leva ESG a sério, é a hora de reafirmar o valor de seus compromissos

Andréa Cruz, CEO da SERH1: “Abandonar a diversidade é financeira e juridicamente ruim para as organizações” (Eduardo Frazão/Exame)

Andréa Cruz, CEO da SERH1: “Abandonar a diversidade é financeira e juridicamente ruim para as organizações” (Eduardo Frazão/Exame)

Publicado em 20 de março de 2025 às 06h00.

Última atualização em 20 de março de 2025 às 11h39.

Era um dia comum na loja da Vivo em Niterói quando, em meados de julho de 2021, um cliente insatisfeito proferiu ofensas racistas contra um funcionário. A polícia foi imediatamente acionada, e a empresa prestou total assistência ao colaborador.

Contudo, ao ser informado do ocorrido, Christian Gebara, CEO da companhia, não hesitou. O executivo deixou São Paulo e voou para o Rio de Janeiro com uma missão clara: apoiar pessoalmente o rapaz, vítima de um crime já previsto em lei. Uma atitude que não deveria surpreender, mas se tornou um exemplo emblemático de quando a prática se sobrepõe ao discurso e o compromisso se mostra genuíno e inegociável.

À época, a Vivo já contava com um consistente programa de diversidade, iniciado em 2018, com metas para inclusão nos pilares de Gênero, LGBTQIA+, Raça e Pessoas com Deficiência. A agenda se manteve firme, alcançando ano após ano níveis acima da média do mercado na inserção de grupos minorizados.

Algumas iniciativas afirmativas foram reforçadas, como a garantia de que 50% das vagas de trainee e estágio sejam destinadas a candidatos negros. Ao todo, esse grupo populacional representa hoje 43,2% do quadro da empresa, sendo 33,9% em cargos de liderança.

Quase quatro anos mais tarde, a atitude de Gebara continua incomum no cenário corporativo. Sobretudo em um momento em que muitas empresas e instituições ao redor do mundo têm recuado em suas metas relacionadas aos pilares ESG, e os compromissos com diversidade e inclusão têm sofrido reveses significativos.

No Brasil e externamente, o momento é delicado. Nos últimos meses, quatro das maiores instituições bancárias americanas — Goldman Sachs, JPMorgan Chase, Wells Fargo e Citigroup — deixaram a Net-Zero Banking Alliance, uma iniciativa climática global.

A influência de legisladores republicanos nos Estados Unidos levou a BlackRock, maior gestora de ativos do mundo, à saída da iniciativa Net Zero Asset Managers (NZAMi), coalizão internacional de gestores de ativos comprometidos com metas de descarbonização até 2050.

A mudança não se limita ao setor financeiro. Desde a posse de Donald Trump, que retornou à Casa Branca em janeiro de 2025, gigantes como Meta, Google, Target, Accenture e McDonald’s anunciaram o fim de suas iniciativas de inclusão.

O levante brasileiro

Contudo, foi justamente a postura local de algumas dessas marcas, como o McDonald’s no Brasil, que evidenciou a complexidade real do cenário – e sinalizou que, talvez, nem tudo sejam más notícias: enquanto políticas corporativas globais retrocedem sob pressões políticas externas, filiais regionais de multinacionais no país têm reafirmado publicamente seus compromissos com sustentabilidade, equidade de gênero e inclusão de grupos minorizados.

Encontram, assim, uma janela para novos paradigmas de governança corporativa e maior autonomia para adaptar diretrizes às realidades locais.

Rogério Barreira, CEO do McDonald’s: “Para nós, diversidade não é opcional. É prioridade que fortalece nossa cultura e nossa marca” (Leandro Fonseca/Exame)

Dias após o anúncio, nos EUA, que flexibilizava as metas de diversidade de seu empregador nos Estados Unidos, Rogerio Barreira, CEO do McDonald’s no Brasil, veio a público afirmar que as metas sob sua gestão permanecem inalteradas.

“Atualmente, 51% dos cargos de liderança na empresa são ocupados por mulheres, mais de 40% dos líderes se identificam como negros, e cerca de 23% dos funcionários se declaram LGBTQIA+”, disse à EXAME.

“Além disso, a rede contratou 800 profissionais com deficiência em 2024, sendo que 70% deles estavam entrando no mercado de trabalho pela primeira vez”, destacou o executivo. “Pois, para nós, diversidade não é uma estratégia opcional; é uma prioridade que fortalece nossa cultura e nossa marca.”

Outra multinacional que sinalizou a continuidade de suas iniciativas para diversidade foi a Amazon Brasil. Durante um evento que marcou a adesão ao Movimento Mulher 360, iniciativa focada na equidade de gênero no mercado de trabalho, Juliana Sztrajtman, CEO da companhia no país, fez um pronunciamento forte.

“Minha apresentação para o time foi intencional. Antes de falar sobre minha carreira, fiz questão de me apresentar como mãe. Isso passa uma mensagem firme sobre o tipo de liderança em que acreditamos aqui na Amazon”, disse Sztrajtman, rodeada por outras colegas que também ocupam cargos na alta liderança da operação brasileira, atualmente com mais de 18.000 funcionários diretos e indiretos no país e mais de 165.000 empregos gerados via parceiros e fornecedores no Brasil, com crescente representatividade feminina em cargos estratégicos.

Empresas brasileiras também se posicionaram. Ainda em janeiro, a Natura divulgou uma carta na qual declarou: “Nosso compromisso com a vida não aceita retrocessos. Vivemos tempos que nos convocam a reafirmar nosso compromisso com a construção de um mundo mais justo, ético e inclusivo. Mais do que nunca, esse esforço precisa ser corajoso, intencional e, sobretudo, coletivo”.

O que dizem os dados e a lei

De acordo com o relatório The Future of Jobs 2025, do Fórum Econômico Mundial, 92% das organizações brasileiras afirmam possuir prioridades de diversidade, equidade e inclusão (DEI), superando a média global de 83%. O estudo revela, ainda, que 68% das empresas nacionais planejam implementar capacitações abrangentes em DEI para lideranças e colaboradores, ante 51% no cenário internacional.

Paralelamente, 59% das companhias brasileiras pretendem adotar processos seletivos direcionados e mecanismos de retenção e progressão de talentos, índice que também supera a média mundial, de 48%. Adicionalmente, 54% das organizações no país comprometem-se a estabelecer métricas objetivas de DEI, enquanto apenas 42% das instituições globais assumem compromisso similar.

Esses indicadores, que posicionam o Brasil consistentemente acima das médias internacionais, refletem uma consciência corporativa nacional mais alinhada às demandas contemporâneas de equidade. No entanto, há desafios estruturais significativos: conforme o relatório, o país tem 28% de sua força laboral em condições de vulnerabilidade e 21% dos jovens desempregados.

Christian Gebara, CEO da Vivo: exemplo emblemático entre os executivos que levam a agenda DEI como prioridade (Leandro Fonseca/Exame)

Não obstante ao cenário paradoxal, Andréa Cruz, CEO da SERH1 Consultoria e especialista em gestão de carreiras de alta liderança, percebe oportunidades estratégicas para transformações institucionais.

“As empresas não podem simplesmente abandonar seus compromissos, mesmo diante das pressões internacionais. Juridicamente é impossível, porque há leis como a de equiparação salarial, que estabelece multas às empresas que pagam diferente para homens e mulheres”, explica.

“Há ainda a obrigatoriedade em relação a cotas para pessoas com deficiência. Então, não olhar para isso é financeiramente e juridicamente ruim para as organizações.”

O Brasil conta com um arcabouço legal que sustenta as iniciativas de diversidade e inclusão, independentemente das tendências globais. A Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012) reserva vagas para estudantes de escolas públicas, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência nas instituições federais de ensino.

Já a Lei de Equiparação Salarial (Lei nº 14.611/2023) estabelece a obrigatoriedade de igualdade salarial e de critérios remuneratórios para mulheres e homens. A Lei de Cotas para Pessoas com Deficiência (Lei nº 8.213/1991) obriga empresas com 100 ou mais funcionários a preencherem de 2% a 5% de seus cargos com pessoas com deficiência ou reabilitados. O não cumprimento dessa cota pode resultar em multas significativas.

Cruz enfatiza o impacto reputacional quando se ignoram questões de diversidade. Para ela, embora muitas tendências empresariais brasileiras sejam influenciadas pelos Estados Unidos, a legislação local exige uma abordagem diferenciada. “É um movimento global, e a gente copia os Estados Unidos em muita coisa. Mas temos as leis brasileiras, então não dá para matar o movimento. É um caminho sem volta, atesta a executiva.

Mais espaço pelo caminho da inovação

A pesquisa Sem Atalhos: O Caminho para a Representatividade da Mulher no Topo e o Valor para as Empresas, da Bain & Company, revela um avanço significativo, mas ainda insuficiente, na inclusão feminina em posições de liderança no Brasil – com barreiras ainda maiores para mulheres negras.

Para ampliar a equidade de gênero, a Bain sugere quatro medidas: uso de dados para monitorar a diversidade com base em indicadores de negócio; revisão de processos e criação de metas claras para a alta liderança; comunicação inclusiva com uma narrativa clara sobre diversidade; e engajamento da liderança, tornando os executivos corresponsáveis pelos avanços.

Nesse sentido, para além das obrigações legais, companhias genuinamente comprometidas com maior representatividade têm fomentado e aderido a iniciativas relativamente recentes, porém com reconhecido impacto.

Um exemplo é o Empower Black Women to Senior Leadership (EBWL), programa anual de aceleração de carreira para executivas negras que já ocupam posições de liderança, realizado pela SERH1 Consultoria em parceria com a Women in Leadership in Latin America (WILL).

Em dois anos, o programa, que propõe ferramentas assertivas como treinamentos em networking e capacitação para conversas consideradas delicadas, como pedir aumento, além de focar o desenvolvimento de habilidades do futuro, catalisou a promoção ou movimentação de mais de 50 profissionais negras.

Juliana Sztrajtman, CEO da Amazon: “Antes de falar sobre minha carreira, me apresentei ao time como mãe. Foi uma mensagem firme sobre a liderança em que acreditamos” (Amazon/Divulgação)

“Na primeira edição, 42% delas tiveram movimentação de carreira. Nesta segunda, 50% passaram por mudanças de cargo”, celebra Cruz. As turmas são formadas por funcionárias de empresas apoiadoras, como ADM, Ambev, Bayer, Diageo, EY, Itaú, Machado Meyer, Porto do Açu e Vivo, selecionadas pelo RH de cada corporação.

Outro caso bem-sucedido é o Índice de Desenvolvimento Humano das Consultoras de Beleza (IDH-CB), da Natura. Criado em 2014, o índice mede o impacto da empresa na vida das consultoras. Segundo Agenor Leão, vice-presidente de Negócios Natura e Avon Brasil, o IDH tem servido como um instrumento de transformação do negócio e de guia para identificar o peso adicional das interseccionalidades.

“A última edição mostrou que as consultoras negras tinham um IDH-CB mais baixo e menor crescimento na carreira. A partir dessa análise, implementamos a identificação racial no cadastro e trabalhamos letramento racial para consultoras, gestores, gerentes, líderes e toda a rede de atendimento. Em dois anos, conseguimos um crescimento de 4,4% no IDH desse grupo específico, um avanço superior ao crescimento geral”, explica.

Para Flávio Comim, especialista em economia do desenvolvimento, o caso das consultoras da Natura, que constatou como a discriminação faz com que elas tenham desempenho inferior, mostra que, ao ajudá-las e empoderá-las, o resultado é bom para elas e também para o negócio, visto que elas se tornam mais produtivas.

O especialista avalia ainda que o momento atual expõe, na realidade, uma fragilidade sistêmica de algumas empresas. “O que estamos vendo agora são corporações que não eram sérias sobre o que faziam. E que, na primeira circunstância política adversa, revelam sua inconsistência.”

À medida que o mundo corporativo navega por esse cenário turbulento, as empresas que mantêm seu compromisso com a diversidade não apenas contribuem para uma sociedade mais justa, mas também se posicionam estrategicamente para o futuro.

Como destaca a carta da Natura: “Negócios só se tornam mais prósperos na medida em que a humanidade e a natureza também prosperam”.

Agenor Leão, VP de negócios da Natura e Avon: IDH desenvolvido há uma década pela companhia se tornou instrumento de transformação, sobretudo para consultoras negras (Leandro Fonseca/Exame)


O Poder na Escada Quebrada

Para cada 100 homens promovidos, apenas 81 mulheres sobem de cargo

Por que as mulheres ficam para trás no avanço da carreira? Buscando respostas para essa questão, a McKinsey acaba de lançar, nos Estados Unidos, The Broken Rung: When the career ladder breaks for women—and how they can success in though of it, livro que apresenta novos e desanimadores dados sobre a desigualdade de gênero em ambientes corporativos.

Segundo a pesquisa que embasa a publicação, para cada 100 homens promovidos a gerente, apenas 81 mulheres conseguem a mesma promoção. Escrito pelas sócias Kweilin Ellingsrud , Lareina Yee e María del Mar Martíne, o livro mostra que a explicação para essa disparidade está logo no início da carreira, culminando em um gargalo que compromete toda a trajetória profissional feminina.

“O problema não é tanto o ‘teto de vidro’ — a barreira invisível que impede as mulheres de atingir os níveis mais altos de liderança —, mas, sim, o primeiro degrau da carreira”, explica Paula Castilho, sócia da McKinsey no Brasil e líder de Diversidade e Inclusão na América Latina.

A obra destaca ainda o conceito de “capital de experiência” como fundamental para o desenvolvimento profissional feminino, que representa o conjunto de habilidades, conhecimentos e experiências adquiridos no trabalho. Globalmente, 50% dos ganhos ao longo da vida vêm desse capital.

“As mulheres tendem a permanecer no mesmo cargo por mais tempo do que os homens e a estagnar após duas mudanças de cargo, enquanto os homens fazem, em média, quatro mudanças ao longo da carreira”, explica Castilho.

O livro enfatiza a importância das habilidades empreendedoras, mesmo dentro de grandes organizações, como ferramenta fundamental para as mulheres progredirem na vida profissional.


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