Revista Exame

Detroit com sotaque caipira

A chegada de montadoras ao sul dos Estados Unidos cria milhares de novos empregos — uma exceção em meio à crise que ainda assombra o país

Salão de Detroit, em 2009 (Getty Images)

Salão de Detroit, em 2009 (Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 18 de julho de 2013 às 23h52.

Tennessee e Alabama - Chattanooga, como gostam de lembrar os moradores dessa pacata cidade no interior do Tennessee, faz parte de uma das histórias de negócios mais bem-sucedidas do mundo. Em 1899, os empresários locais Benjamin Thomas e Joseph Whitehead fizeram uma proposta inédita a Asa Candler, dono da fórmula da Coca-Cola, em Atlanta, na vizinha Georgia.

Na ocasião, pagaram a quantia simbólica de 1 dólar pelo direito de engarrafar in­dus­trialmente a bebida — até então vendida apenas em copos nas farmácias. De volta para casa, construíram a primeira linha de produção da marca, um modelo que permitiu sua posterior expansão global.

Ao longo dos 113 anos seguintes, pouca coisa aconteceu por ali. O estado do Tennessee tem o 42º PIB per capita entre os 50 estados americanos — com a crise, a tendência é de um cenário ainda mais desolador. A cidade de Chatta­nooga, no entanto, sustenta hoje uma situação relativamente confortável. 

A taxa de desemprego atual é de 7,3% — 1 ponto percentual abaixo da média do país e do estado do Tennessee. Por trás das estatísticas está a recente instalação de uma fábrica da alemã Volks­wagen, segunda maior montadora do mundo, com 8,2 milhões de veículos vendidos em 2011.

Construída do zero onde antes havia um antigo depósito do Exército abandonado há mais de 40 anos, a fábrica produziu o primeiro lote do modelo Passat em setembro de 2011 e emprega hoje 2 500 funcionários. Um deles é Dale Cross, um ex-construtor de 44 anos.

“Tinha uma microempresa que faliu com a crise e estava sem perspectiva há mais de um ano”, diz Cross, operador de controle de qualidade na fábrica. “Arranjar um emprego aqui foi a melhor coisa que poderia ter acontecido.”

Uma série de cidades até pouco tempo atrás esquecidas no sul do país começa a viver um ciclo antecipado de prosperidade em meio à crise. A exemplo do que acontece em Chattanooga, o movimento se deve à chegada de montadoras, sobretudo estrangeiras, à região.

É uma tendência que se intensificou nos últimos anos e expandiu o polo automobilístico do país para além das fronteiras de Detroit, em Michigan. Em novembro de 2011, a Toyota iniciou a produção do Corolla numa fábrica nova em Blue Springs, no Mississippi. Em janeiro, a Kia anunciou a primeira expansão de sua linha de produção em West Point, na Georgia, inaugurada em 2009. 

Neste momento, a Hyundai acaba de contratar 200 funcionários para sua fábrica em Montgomery, no Alabama, em operação desde 2005. Veteranas que se instalaram na região há mais tempo fazem novos investimentos. A Nissan, que desde 2003 produz seus carros em Canton, no Mississippi, anunciou a ampliação de sua fábrica para outubro deste ano, com a produção de dois novos modelos.


Junto com novos investimentos, vêm novos empregos. Estima-se que para cada funcionário contratado por uma montadora outros cinco sejam empregados em empresas fornecedoras de produtos ou serviços na mesma região.

“É a indústria com maior efeito multiplicador na geração de postos de trabalho”, diz Keivan Deravi, professor de economia da Universidade de Auburn, no Alabama. “A chegada dessas empresas marca a mudança da vocação de estados agrícolas.”

Num momento em que as estatísticas de emprego melhoram vagarosamente no país, a expansão da indústria automobilística é uma rara boa notícia. Trata-se de um dos setores que mais sofreram com a crise e agora vem se recuperando com velocidade.

No auge do baque, em 2009, o governo do presidente Barack Obama entregou mais de 80 bilhões de dólares de ajuda para salvar da bancarrota duas das maiores montadoras americanas — GM e Chrysler. Os resultados começam a aparecer. Com o contínuo aumento da demanda, as vendas de veículos cresceram 16% no mês de fevereiro em relação ao mês anterior.

Em 2011, todas as maiores empresas do setor instaladas no país registraram crescimento de 2 dígitos em suas vendas e voltaram a contratar. Em janeiro, as montadoras foram a terceira maior criadora de empregos industriais nos Estados Unidos — com 8 000 novos postos.

Boa parte deles se concentra nas três grandes montadoras — GM, Ford e Chrysler — e em suas fábricas localizadas na região de Detroit. Há uma diferença fundamental, porém, entre os empregos criados em Detroit e os criados nos estados sulistas. No primeiro caso, boa parte das contratações repôs demissões ocorridas durante a crise.

No sul, são vagas absolutamente novas, criadas por montadoras que até pouco tempo atrás nem sequer tinham operação nos Estados Unidos. Um exemplo é a Volkswagen, que até o início do ano passado importava tudo o que vendia no país — o que ajuda a explicar sua participação de apenas 3% no mercado americano. 

“Queremos triplicar as vendas até 2018 e não podemos fazer isso importando veículos”, diz o alemão Frank Fischer, diretor-geral da fábrica da Volkswagen em Chattanooga.

Mão de obra farta e barata

A avalanche de currículos recebidos pelos executivos da Volkswagen dá uma medida da demanda por emprego na região — desde 2009, 85 000 profissionais se inscreveram para o preenchimento de 2 500 vagas. A oferta abundante de gente é justamente uma das razões pelas quais as montadoras decidiram migrar para o sul.


Estima-se que, entre 2000 e 2030, a população dos estados do sul aumentará 43%, enquanto o crescimento populacional no centro-oeste (onde está Detroit) será de apenas 10%, segundo o censo americano. Além de farta, a mão de obra é uma das mais baratas dos Estados Unidos.

Enquanto um operário em Detroit recebe até 30 dólares por hora de trabalho, paga-se a metade disso em estados como Alabama e Tennessee. Outro fator importante é a ausência dos poderosos sindicatos, que ainda não atuam na região.

Um pacote  com generosos incentivos fiscais também serviu de ímã. No caso de empresas como Volks e Hyundai, o governo estadual chegou a bancar a construção de um trecho ligando a ferrovia já existente e as fábricas, facilitando a distribuição dos carros pelo país. 

A falta de tradição pode trazer vantagens — como a ausência dos sindicatos —, mas também traz dificuldades. Uma delas é a falta de profissionais experientes na indústria. Numa região com forte tradição agrícola, as montadoras tiveram de investir dobrado em treinamento de pessoal.

Numa boa medida da rea­lidade local, havia apenas uma extensa pastagem onde agora está a fábrica da Hyundai no Alabama. A única indústria que um dia prosperou ali, a têxtil, foi aniquilada pela concorrência chinesa anos antes. “Muitos dos funcionários nunca tinham pisado numa montadora”, afirma Chris Susock, diretor de qualidade da Hyundai no Alabama. 

“Produzimos 200 carros apenas para treinar os funcionários, o dobro do que faríamos normalmente na introdução de um novo modelo numa fábrica já operante.” No caso dos executivos, a saída foi trazer gente de fora. Susock é veterano, com mais de 20 anos de experiência em Detroit e era diretor da Ford antes de aceitar o cargo na Hyundai.

Além de recém-chegados de outras cidades americanas, existe uma boa quantidade de coreanos. A hierarquia segue um modelo pouco tradicional, em que para cada executivo contratado localmente existe um corea­no que ocupa a mesma posição — e serve de interface com a sede da companhia. O modelo funciona também em algumas das 50 empresas coreanas que se estabeleceram na região como fornecedoras da Hyundai.

Missa em coreano

A chegada de gente nova vem mudando a rotina de Montgomery, uma das mais tradicionais cidades do sul do país, onde Martin Luther King pregou em seus primeiros anos como pastor. Desde 2005, a população coreana passou de 100 para mais de 3 000 habitantes.


Nas igrejas, já é comum que as missas sejam rezadas também em coreano. Não faltam restaurantes e mercados com produtos para a mais recente comunidade estrangeira da cidade — é possível comprar até pasta de dente importada da Coreia. Com mais visitantes, alguns hotéis foram abertos, como o Renaissance, no centro da cidade.

Nos quartos, os televisores — claro — têm instruções em coreano. “Meus filhos até já aprenderam algumas palavras em coreano com seus novos colegas na escola”, diz Tracy Riedler, diretora-geral da coreana Mobis, fornecedora de peças para a Hyundai, em Montgomery.

O caso da Hyundai demonstra que o esforço de construir uma operação do zero vale a pena. Sua participação de mercado subiu de 2,7% para 10% desde 2005, quando iniciou sua produção nos Estados Unidos. Com as vantagens de custos da fábrica, hoje o Sonata sedã chega ao mercado a um preço de 19 395 dólares — ante 21 900 do concorrente Chevrolet Malibu.

Desde meados do ano passado, a fábrica opera com dois turnos diários mais meio período no sábado. Após a contratação de 200 novos funcionários para trabalhar a partir de abril, a companhia estuda novas expansões. “Ainda não temos um cronograma estabelecido, mas é bem provável que até o segundo semestre haja mais investimentos”, diz Susock, diretor de qualidade da Hyundai.  

Se depender dos prognósticos da indústria, a boa fase deve continuar. Estimativas do setor apontam que as vendas de veículos devem crescer 15% neste ano — e chegar a 14 milhões de unidades vendidas até dezembro.

“Boa parte dos americanos passou os primeiros anos da crise sem trocar de carro, mas agora a demanda está recuperando o ritmo normal”, diz Kristen Andersson, analista da consultoria TrueCar.com, que monitora o mercado automobilístico nos Estados Unidos.

Para aproveitar o bom momento, uma guerra de mídia está em curso — na qual as marcas recém-chegadas têm se esforçado para fazer frente às veteranas. Um dos palcos prediletos dessa disputa têm sido as campanhas veiculadas nos intervalos do Super Bowl, a aguardada final do futebol americano.

Em 2011, uma das campanhas mais populares foi a da Volks, com uma criança vestida como o personagem Darth Vader, do filme Star Wars. (O ator mirim Max Page, que representa Darth Vader na campanha, foi uma das principais atrações da festa de abertura da fábrica, no final do ano passado.)


A demanda pelo Passat cresceu 70% na semana seguinte à divulgação do anúncio, segundo a consultoria especializada no setor Edmunds.com. A Chrysler vem chamando a atenção ao adotar o apelo nacionalista. Em 2011, contratou o rapper Eminem para protagonizar um anúncio com o lema “Made in Detroit” (“Feito em Detroit”).

Neste ano, a montadora veiculou um filme de 2 minutos com o ator Clint Eastwood. Com voz grave e tom solene, Eastwood faz um discurso sobre a recuperação da economia do principal centro de produção de automóveis do mundo. Estima-se que a empresa, controlada pela Fiat desde junho do ano passado, tenha investido mais de 5 milhões de dólares apenas nesse anúncio.

O retorno foi imediato. As vendas da Chrysler aumentaram 40% em fevereiro — a maior taxa do setor. A Hyundai fez algo inusitado — durante três dias patrocinou aulas de canto para 200 funcionários da produção cantarem na campanha veiculada neste ano no Super Bowl.

A disputa entre as montadoras também tem se refletido nas relações trabalhistas. Diante das condições favoráveis de concorrentes no sul, companhias instaladas em Detroit passaram a negociar a contratação de funcionários por salários até 50% menores. Atual­mente, 12% dos 23 000 empregados da Chrysler integram essa faixa de negociação.

Na fábrica da GM localizada em Orion, no estado de Michigan, que produz o modelo compacto Chevrolet Sonic, 40% dos funcionários estão nessa condição. É uma questão  monitorada de perto pelo poderoso sindicato dos trabalhadores. “A negociação tem sido boa para todos até agora”, afirmou recentemente Bob King, diretor do United Automobile Workers, com sede em Detroit.

O desafio será evitar que o caso se torne ilustrativo do crescente achatamento dos salários e da disparidade de renda nos Estados Unidos, temas importantes da atual campanha eleitoral. Mas, hoje, o que importa para boa parte dos funcionários é que a maior batalha do presente — ter um emprego — está ganha.

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