Fachada no Banif (Cristina Arias/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 27 de abril de 2015 às 18h00.
São Paulo — Quando assumiu a presidência do banco Banif no Brasil, em outubro de 2012, o português Gladstone Siqueira declarou que tinha uma missão clara: tirar a instituição do buraco em que havia se metido no país. Na época, diversos bancos médios penavam para permanecer no mercado — alguns deles, como BVA e Cruzeiro do Sul, acabaram indo à lona com seus gestores acusados de fraude.
No Banif, nenhum escândalo estourou. Com discrição absoluta, Siqueira trocou toda a diretoria, registrou um prejuízo de 88 milhões de reais em 2012 e tocou a vida. Também recorreu a um empréstimo do Fundo Garantidor de Crédito e enxugou a operação ao máximo — saindo, inclusive, do varejo no Brasil.
Mas o mistério sobre qual era, afinal, o problema do banco continuava. No início de 2014, surgiu uma novidade que começaria a elucidar a questão: o Banif iniciou um processo judicial contra os próprios ex-diretores e uma funcionária. Em março, EXAME teve acesso aos detalhes do esquema que quase quebrou o Banif — o processo corre em segredo de Justiça. Os acusados e o banco não deram entrevista.
Segundo a ação judicial, um grupo de altos executivos do banco, que incluía o ex-presidente Antônio Júlio Rodrigues, teria feito uma série de empréstimos que levaram o banco a sucessivas perdas. Essas operações teriam capitalizado empresas de pequeno porte, que tinham alguma relação com os administradores do Banif, por sociedade, amizade ou parentesco.
Não se sabe se o dinheiro foi parar no bolso dos diretores, mas o banco acusa os executivos de não terem feito seu trabalho direito. O esquema teria durado de outubro de 2005 a março de 2012 e envolvido o empréstimo suspeito de 453 milhões de reais.
A acusação se baseia em duas auditorias internas, feitas no fim de 2012 e ao longo de 2013, e também em um relatório de mais de 2 000 páginas feito pelo Banco Central. Que banco, no mundo, faria negócios só para perder? “Não foram irregularidades pontuais e esporádicas. Repetiram-se muitas vezes e por muitos anos”, dizem os advogados do Banif no processo.
As operações teriam burlado sucessivas vezes as regras do próprio banco. Segundo o estatuto do Banif, qualquer linha de crédito acima de 5 milhões de reais tinha de ser discutida com o conselho de administração, assim como novos financiamentos para clientes que já tivessem 15 milhões de reais em dívidas.
Mas, no período investigado, o Banif assinou cheques de até 59 milhões para clientes que nem sequer comprovavam sua capacidade de pagamento — e sem discussão com os conselheiros portugueses. A matriz, segundo a acusação, nunca soube que os empréstimos estavam sendo feitos.
Por que o banco infringiria as próprias regras? A suspeita é que os executivos tinham muito a ganhar. Na ponta tomadora de crédito estão dois grupos fundamentais para entender o imbróglio. São os desconhecidos grupos Vespoli e Fuzari, ambos do setor de construção. O empresário Alberto Fuzari foi sócio de Antônio Júlio Rodrigues, ex-presidente do Banif no Brasil.
A empresa em que eram sócios, a Artal, foi uma das que tomaram dinheiro emprestado no banco. Mas o banco também financiou outros projetos de Fuzari. O grupo Vespoli tem ou teve como sócios, no período, Carlos Vespoli, Paulo Vespoli e Eça Negreiros em diferentes empresas de construção. Segundo a investigação, a advogada Maria Gorete Câmara era diretora ou sócia de algumas empresas do grupo, a Bethacorp e a Vetec.
Acontece que ela também era advogada contratada pelo Banif de 2003 a 2011 e, depois disso, foi superintendente de operações estruturadas do banco. Era ela quem empacotava os empréstimos e avaliava o risco, por parte do banco, e que tomava o dinheiro em nome da empresa na outra ponta.
Rodrigues, o presidente do Banif, dava a assinatura final em todos os financiamentos. A lei que regula instituições bancárias veda operações em que haja conflito de interesses para garantir a liquidez dos bancos e do sistema financeiro.
Em 2013, o Banif era credor de 29,3 milhões de reais em duas empresas do grupo Fuzari e credor de 59,2 milhões e 28,4 milhões de reais em duas empresas do grupo Vespoli, também sem aprovação do conselho. Nesses empréstimos, o banco abria mão, em contrato, de qualquer garantia. Ou seja, se a empresa não pagasse o empréstimo, o banco não tinha como compensar o calote.
Num empréstimo de 11,5 milhões de reais à Paris Incorporadora, também do grupo Vespoli, o Banif aceitou como garantia cotas de um empreendimento que nunca saiu do papel. Na auditoria interna, o ex-diretor David da Fonte, também réu da ação judicial, informou que não houve fundamento para a liberação de garantias e que o fez por ordem do ex-presidente Rodrigues.
A liberação foi assinada pelos dois, em prol da empresa, representada por Gorete. O advogado dela, Eli Alves, diz apenas que ela nunca integrou o comitê de crédito (ela processa o banco). Paulo Vespoli diz que desconhece o processo e que o grupo não fez nenhuma operação irregular. O grupo Fuzari também diz que, como não é parte na ação, desconhece seu teor.
A má gestão de risco também beneficiava amigos, segundo o laudo. O Banif abriu mão da garantia e não levou ao conselho um empréstimo de 26 milhões de reais dado a Manuel da Lupa, ex-presidente do clube Portuguesa de Desportos, e um crédito no mesmo valor para Antônio Azevedo, vice-presidente da Portuguesa (os dois estão sendo cobrados em outra ação judicial).
A auditoria do Banif também identificou operações conhecidas no mercado bancário como “mata-mata”, em que um novo empréstimo é dado para quitar o empréstimo anterior — o que, na prática, aumenta o risco do credor. Em 2010, o banco emprestou 1,13 milhão de reais à Anima Hotéis, tomando a hipoteca de um imóvel em Santos como garantia. Meses depois, o contrato foi quitado com dinheiro repassado à Anima pelo onipresente Grupo Vespoli — que, no mesmo dia, tinha tomado um crédito de 4,4 milhões no Banif.
A garantia do novo empréstimo eram imóveis em São Sebastião e Caraguatatuba com tantas pendências judiciais que não puderam sequer ser registrados em cartório. Ou seja: o banco trocou uma garantia boa por uma inútil e aumentou a exposição em 3 milhões de reais. Quem se deu bem foi o Vespoli, que tomou mais dinheiro e tirou das mãos do banco um imóvel que tinha valor.
O laudo aponta operações tão sem sentido financeiro que acabavam infringindo também as normas do BC. Em 2009, o Banif financiou 8,7 milhões para o grupo frigorífico Torlim, tomando como garantia uma fábrica no Paraná. Depois deu novo empréstimo, de 12 milhões, tendo como garantia o mesmo imóvel, que acabou indo a leilão pela Justiça do Trabalho em junho de 2011.
Quem comprou foi o próprio Banif, pagando 1,1 milhão de reais. Pelas regras do BC, uma instituição financeira não pode comprar bens, exceto para uso próprio. O Torlim faliu em agosto de 2011, e o prejuízo do Banif na operação foi de 18 milhões de reais.
As irregularidades e as operações sem sentido também se estendiam para outras áreas do banco, como a de serviços. Em janeiro de 2008, o Banif contratou as empresas de serviços financeiros Magno e Lusicred para originar, avaliar e recuperar créditos para a compra de veículos.
O contrato não tinha nenhuma menção à qualidade dos créditos, mas remunerava as duas empresas por produção e por volume de trabalho — não havia, portanto, incentivo para uma concessão criteriosa de financiamento. Resultado: a carteira de veículos do Banif tem inadimplência de 60%, enquanto a média nacional é de 7%.
A auditoria também identificou pagamentos às empresas sem justificativas, autorizados pelo vice-presidente do Banif, José Roberto Ferreira da Cunha. Quem solicitava o pagamento, do lado das empresas, era seu filho, Fernando Ferreira da Cunha, funcionário da Magno. A Magno processa o banco, em ação sigilosa.
Para complicar ainda mais as coisas, algumas operações eram usadas, segundo o processo, para limpar os balanços de dois grandes fundos de pensão, o Metrus, dos funcionários do Metrô de São Paulo, e o Postalis, dos Correios. Entre 2005 e 2011, os fundos de pensão compravam papéis de dívidas emitidos pelo Banif para financiar um grupo de empresas. Somente no caso das construtoras Panapanan e Artal, os papéis somavam 313 milhões de reais.
O problema é que os fundos pagavam parte dos títulos com papéis podres, sem nenhum desconto. A fundação levava o papel recém-emitido e o banco ficava com o papel podre. Algumas companhias envolvidas nessas transações, como a Panapanan e a empresa de participações Conepatus, tinham sócios investigados pela Polícia Federal por crime financeiro.
Em uma operação com o Postalis, uma das empresas envolvidas era a Achala — uma companhia de participações imobiliárias que tinha como representantes, no contrato, David da Fonte e Ângelo Scupino, então diretores do Banif.
Nessas operações, o maior problema para o banco não seriam as perdas com os títulos, já que repassava os papéis podres para a frente — mas em alguns desses empréstimos era o próprio Banif quem dava a garantia gratuita para os créditos das empresas clientes. Quer dizer, não cobrava o serviço de fiança e ficava com todo o risco de ser executado caso as empresas ficassem inadimplentes.
Nas operações com Metrus e Postalis, essas fianças chegaram a 153 milhões de reais em valores corrigidos, segundo o processo judicial. Os fundos rechaçam essa versão. O Metrus discute com o Banif em arbitragem e ação judicial, ambos sigilosos.
Quem de fato se beneficiou das operações suspeitas ainda é um mistério. Mas as perdas para o banco são bem concretas. O Banif revisou seus balanços. Em 2012 encontrou um prejuízo de 131,6 milhões de reais e, no primeiro semestre de 2013, o buraco cresceu para 346,8 milhões. Os rombos foram cobertos por um aporte de 380 milhões de reais do controlador, o Banif de Portugal, cujo maior acionista é o governo.
O Banif brasileiro teve ainda de reservar 431 milhões de reais para possíveis perdas. Depois de sair do varejo no Brasil e de limpar os balanços, o Banif deve fechar o ano de 2014 com lucro, o que não acontecia desde 2011. É um avanço, mas não o suficiente para demover seus controladores do plano de vender a subsidiária brasileira — algo que vêm tentando, sem sucesso, ao longo dos últimos dois anos. Desta vez, sem esqueletos, talvez fique mais fácil.