Donald Trump, em discurso no Congresso: as instituições do país serão capazes de resistir às suas pressões? / Win McNamee/Getty Images
Da Redação
Publicado em 1 de março de 2018 às 05h00.
Última atualização em 1 de março de 2018 às 05h00.
Poucas ideias são tão enraizadas na americana quanto a noção de que os Estados Unidos são um país distinto dos demais. A origem do conceito, conhecido como o “excepcionalismo americano”, vem da independência, em 1776. Numa época em que a maior parte dos países da Europa estava sob controle da monarquia, os fundadores dos Estados Unidos conseguiram estabelecer um sistema democrático baseado nos princípios das liberdades individuais e da igualdade entre todos os cidadãos. Só esse fato já coloca os Estados Unidos numa posição singular na história mundial. Mas é ainda mais notável que a democracia americana tenha sobrevivido por quase dois séculos e meio sem uma quebra institucional, mesmo passando por uma Guerra Civil (1861-1865), pela Grande Depressão de 1929, pelo escândalo de Watergate (1974), pela Guerra Fria, entre outras graves ameaças.
Olhando no retrovisor, o sistema democrático parece sólido o bastante para resistir às bravatas de um presidente errático como Donald Trump. No entanto, alguns estudiosos se questionam se o país seria de fato capaz de evitar uma corrosão institucional, colocando o sistema democrático em jogo. Em How Democracies Die: What History Tells Us About Our Future (“Como as democracias morrem: o que a história nos conta sobre nosso futuro”, numa tradução livre), livro recém-lançado nos Estados Unidos, os cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt debatem essa possibilidade. O resultado é uma obra indispensável para entender o atual momento político americano.
Professores na Universidade Harvard, Levitsky e Ziblatt construíram uma sólida carreira acadêmica pesquisando as causas que levam à ruptura de regimes democráticos em vários países, da ascensão de Hitler e Mussolini, nos anos 30, às ditaduras militares da América Latina dos anos 70, passando pela atual onda populista de extrema direita na Europa. Os autores ressaltam que a fórmula tradicional de ruptura de regimes democráticos, por métodos violentos, praticamente caiu em desuso. Durante a Guerra Fria, golpes de Estado foram responsáveis por três em cada quatro casos de quebra da ordem político-institucional. De lá para cá, porém, passou a prevalecer outra maneira de derrubar uma democracia, menos dramática, mas igualmente destrutiva: por meio dos próprios governantes eleitos — presidentes ou primeiros-ministros que subvertem o processo que os levou ao poder. Ao contrário de golpes violentos, quando a morte da democracia é evidente e assimilada por todos, o percurso eleitoral ofusca essa percepção. Ao seguir esse caminho, os autocratas eleitos costumam manter um verniz de democracia enquanto eliminam, aos poucos, sua substância.
É com essa perspectiva que a ameaça à democracia americana deve ser analisada. Um dos aspectos mais fascinantes (e assustadores) do livro é a correlação entre o discurso e as medidas do presidente Donald Trump com aqueles adotados por líderes autocratas que chegaram ao poder pelas urnas. Ao longo do livro, e sem forçar a barra, os autores comparam a forma de atuação de Trump com a de populistas autoritários do passado — como o brasileiro Getúlio Vargas, o argentino Juan Domingo Perón e o filipino Ferdinand Marcos — e a de contemporâneos, como o venezuelano Hugo Chávez, o turco Recep Erdogan e o russo Vladimir Putin.
Para demonstrar os riscos, os autores citam um modelo criado décadas atrás pelo cientista político alemão Juan Linz, da Universidade Yale, para identificar quatro características comportamentais de um possível autocrata. Trump gabaritou no teste. A primeira característica, segundo Linz, é a rejeição das regras do jogo democrático. Na reta final da campanha de 2016, Trump ameaçou não reconhecer o resultado das urnas caso perdesse — fato inédito nas eleições presidenciais desde 1860. A segunda é negar a legitimidade a opositores, o que Trump fez em relação a Hillary, mesmo depois de eleito. A terceira característica é tolerar ou incentivar a violência, algo que o republicano cansou de expressar pelo Twitter. O quarto e último item da lista é o desejo de suprimir liberdades civis de oponentes, incluindo a imprensa — algo fartamente manifestado por Trump. (O teste vale também para alguns pré-candidatos a presidente no Brasil…)
Levitsky e Ziblatt argumentam que os líderes autoritários emitem sinais quando chegam ao poder, como encampar o controle das instituições do Estado (os poderes Legislativo e Judiciário, as agências reguladoras e os serviços de inteligência) para perseguir adversários e beneficiar aliados. Desde que chegou à Casa Branca, Trump tem agido nesse sentido. Tentou assegurar que os diretores dos principais órgãos de inteligência fossem fiéis às suas ordens e servissem de escudo contra as investigações sobre a possível interferência russa na eleição. Trump demitiu o diretor do FBI, James Comey, ao perceber que ele não se dobraria à pressão. Ele também atacou pelo Twitter juízes que julgaram casos desfavoráveis ao governo e ainda desprezou o Judiciário ao conceder o indulto presidencial — prerrogativa sempre usada com parcimônia — a um ex-xerife do Arizona condenado por violar uma ordem judicial que o proibia de perseguir imigrantes. Na prática, Trump mina a credibilidade e o respeito que os ocupantes da Casa Branca sempre desfrutaram ao longo da história.
Embora as medidas do presidente preocupem, o sistema político americano vem demonstrando uma capacidade de resistência até agora. Dois casos ocorridos durante o primeiro mandato de Trump são exemplos disso. O primeiro deles foi a tentativa de Trump de proibir a entrada de cidadãos de sete países muçulmanos por meio de um decreto. A medida gerou uma onda de protestos no país e foi barrada na Justiça. O segundo caso foi a reação à demissão de James Comey do FBI. Logo em seguida, foi instalado um comitê especial para investigar a interferência da Rússia nas eleições americanas. O inquérito, liderado pelo investigador Robert Mueller, já levou ao indiciamento de quatro pessoas ligadas à campanha de Trump e 13 russos. A ironia é que, nesses casos, as ameaças de Trump acabam até fortalecendo a democracia no país.
Levitsky e Ziblatt não exploram a questão no livro, mas chamam a atenção para o fato de que os sistemas de freios e contrapesos do país não são livres de falhas. Na visão deles, foram essas fissuras que permitiram, em primeiro lugar, a eleição de uma figura como Donald Trump. Nesse aspecto, a obra ganha densidade e reforça a ideia de que Trump é, na verdade, mais o resultado do que a causa das ameaças às instituições.
O livro cita vários exemplos em que o sistema de freios e contrapesos foi colocado à prova. Segundo os professores, o sistema presidencialista — que dá grandes poderes ao chefe do Executivo — exige que os partidos atuem como guardiães da democracia, no sentido de evitar a ascensão de autocratas. Esse poder foi exercido, por exemplo, quando Henry Ford — fundador da montadora que leva seu nome — tentou se candidatar à Casa Branca. Empresário de sucesso, Ford se mostrou um demagogo populista ao se arriscar na política. Antissemita convicto, atacava banqueiros e imigrantes e mencionava Hitler com admiração. Ford flertou com a Presidência em 1924, mas foi barrado pelo Partido Democrata, o que não ocorreu no Partido Republicano com Trump.
Outra fortaleza da democracia ameri-cana é o respeito às regras não escritas, marcado pelo bom senso e pela civilidade. O limite de dois mandatos do presidente americano é um bom exemplo de uma norma desse tipo. Até o século 20 ela não era prevista em lei, embora sempre tivesse sido respeitada. Coube ao presidente Franklin Delano Roosevelt romper a tradição, candidatando-se (e sendo eleito) não só para um terceiro como para um quarto mandato pelo Partido Democrata. Roosevelt governou num período crítico da história do país, de 1933 a 1945. Em 1951, os dois partidos decidiram formalizar a proibição de um ex-presidente tentar o terceiro mandato, por meio da 22a emenda à Constituição. Para Levitsky e Ziblatt, hoje duas regras informais estão sendo ignoradas diante da polarização política do país: o respeito mútuo — o entendimento de que os partidos aceitem os demais como rivais legítimos — e o princípio da tolerância, evitando iniciativas políticas que, embora permitidas pela lei, coloquem em risco todo o sistema.
Ao fazer um balanço histórico, é possível notar que a democracia americana se mostrou incompleta por longos períodos. Essas situações ocorreram quando a polarização saiu do controle ou os dois partidos fecharam acordos que os beneficiavam, mas a um altíssimo preço para a democracia. O melhor exemplo vem do período pós-Guerra Civil, na década de 1870. Com a vitória do Norte, a escravidão foi abolida, com a garantia de direitos civis aos escravos libertos. E os negros emancipados, antes impedidos de votar, passaram a influenciar o mapa eleitoral.
A pacificação entre os dois partidos, no entanto, só foi estabelecida depois que a questão racial foi removida da agenda política. Dois eventos foram chave: o Compromisso de 1877, pelo qual a eleição realizada no ano anterior, com vitória republicana, só foi reconhecida pelos democratas em troca da saída de tropas federais estacionadas no sul para proteger os negros. O outro evento foi a revogação de uma lei que permitia a supervisão federal em eleições estaduais, para assegurar o direito de voto da população negra. Após a manobra, os estados do sul aprovaram leis para dificultar o voto de americanos negros. Como resultado, a participação deles em eleições no sul despencou de 61%, em 1880, para 2%, em 1912.
A rigor, a democratização dos Estados Unidos só foi consolidada com a inclusão racial, a partir do movimento dos direitos civis de 1964 e da aprovação da lei do direito ao voto, no ano seguinte. A essa altura, os diferentes grupos sociais que haviam migrado de um partido para o outro ao sabor do contexto político estabeleceram as novas bases de apoio: definindo o Partido Democrata como a agremiação dos direitos civis, e o Republicano como partido do statu quo racial, dos brancos.
Os autores veem a atual polarização partidária como o maior risco à democracia americana — um processo que teve início nos anos 60, ganhando força na virada do milênio. Além da reinserção do eleitorado negro, outros fatores socioeconômicos contribuíram para o quadro. Um deles é a chegada em massa de imigrantes latino-americanos e asiáticos, alterando o mapa demográfico dos Estados Unidos. Em 1950, os não brancos somavam 10% da população. Em 2014, eles eram 34%, com a previsão de se tornarem maioria por volta de 2044.
A questão imigratória, aliada ao ativismo da comunidade negra, transformou o Partido Democrata no defensor das minorias étnicas. O Partido Republicano, que já havia atraído o apoio de cristãos no debate sobre a legalização do aborto, em 1973, reforçou seu papel como agremiação dos brancos e com uma agenda mais conservadora, principalmente após a eleição de Ronald Reagan, em 1980. De lá para cá, os dois grupos se distanciaram (os republicanos à direita, e os democratas à esquerda) e passaram a ser divididos por etnia e religião. “Se há algo claro quando se estudam rupturas ao longo da história, é o de que a polarização extrema pode matar as democracias”, advertem os autores.
Céticos, os dois professores temem um acirramento. De um lado, por causa da influência de programas de TV a cabo e de rádio nos rincões do país, que reproduzem o discurso de ódio. Por outro, em razão do efeito causado pelo avanço conservador sobre antigos redutos democratas. Com esse quadro de pano de fundo, os autores vislumbram três cenários possíveis. O primeiro, mais otimista, é o de uma rápida recuperação democrata, seja pela implosão da Presidência de Trump, seja por meio de uma mobilização que ajude o partido a retomar o controle da Casa Branca e do Congresso. Nesse caso, o desgaste causado por Trump pode levar a liderança republicana a se afastar da ala radical do partido. Um segundo cenário prevê a continuação do domínio republicano em todas as esferas de poder. É possível imaginar novas vitórias no Congresso, como restrição à imigração, deportações em massa e adoção de normas para isolar o eleitorado imigrante e negro. O risco de um confronto interno violento não é descartado — mesmo porque é difícil encontrar exemplos de grupos que, num processo de encolhimento, desistam de seu status dominante sem brigar, como é o caso dos brancos conservadores. O terceiro cenário, e mais provável, é um futuro pós-Trump marcado pela continuidade da polarização, o abandono das convenções não escritas e a pressão sobre as instituições — em outras palavras, uma democracia sem salvaguardas sólidas. Trump e o trumpismo podem até ficar no caminho, mas, nesse cenário, é difícil imaginar a retomada da tolerância e do respeito mútuo. Para os autores, as alas moderadas dos dois partidos devem buscar uma pauta em comum e fazer alianças com a sociedade civil para fazer frente à atual polarização.