O brasileiro naturalizado Liu Ming Chung, numa das fábricas da Nine Dragons: "rei do papel da Ásia"
Da Redação
Publicado em 15 de março de 2011 às 11h54.
O empresário Liu Ming Chung, de 45 anos, tem uma trajetória bastante incomum. Nascido em Taiwan, mudou-se ainda criança com a família para São Paulo, na década de 70. Passou boa parte da infância em Santo André, na região do ABC paulista, onde o pai mantinha uma granja. Já adolescente, estudou odontologia e, depois de formado, trabalhou durante seis anos como dentista.
Sua vida mudou numa viagem a Hong Kong, em 1987, quando conheceu Yan Cheung, sua atual sócia e esposa. Ela já era empresária na época, atuando no mercado de papel. Os dois resolveram se casar e tomaram o rumo da Califórnia. Lá fundaram, em 1990, a America Chung Namp, empresa que coletava sobras de caixas de papelão nos Estados Unidos para revendê-las na China, onde são usadas como matéria-prima da indústria de papéis.
O negócio foi tão bem que resolveram ampliá-lo. Voltaram para a Ásia e, em 1995, abriram em Hong Kong a própria companhia de produção de papel, a Nine Dragons. Em pouco tempo, ela se tornou a maior empresa de embalagens de papelão do continente asiático. Em 2006, faturou mais de 1 bilhão de dólares, receita 60% superior à do ano anterior.
O sucesso da empreitada colocou o casal em posição de destaque na mais recente lista de maiores bilionários do mundo da revista americana Forbes. Segundo a publicação, Yan, de 50 anos, possui uma fortuna de 2,4 bilhões de dólares, o que a torna a mulher mais rica da China. Liu, por sua vez, também tem um patrimônio de 2,4 bilhões de dólares.
"Quando me ligaram falando que eu estava na lista, achei que era engano", afirmou a EXAME o empresário, em seu escritório numa das unidades da Nine Dragons, em Taicang, a 50 quilômetros de Xangai. "Encaro como um reconhecimento ao meu trabalho." A fama repentina não alterou sua rotina de trabalho. Gosta de andar pelas fábricas vistoriando as atividades. Sempre vestido com camisas de malha e calças de corte reto, poderia ser confundido com um simples gerente.
Nas viagens a negócios, raramente se hospeda em hotéis -- em cada fábrica da empresa há um modesto apartamento, onde dorme. A família está presente no dia-a-dia da Nine Dragons. Sua mulher, Yan, é a presidente do grupo. "Liu é objetivo, imparcial e tem a habilidade de enxergar as coisas sempre por ângulos novos", diz ela.
O filho mais velho, de 25 anos, está terminando um mestrado em finanças pela Universidade Columbia, nos Estados Unidos, e deverá assumir algumas funções na gestão da empresa. O mais novo, de 15 anos, esteve recentemente com o pai no Brasil, visitando o país pela primeira vez. No roteiro da viagem foi incluída uma passagem pelo campus da Universidade de Santo Amaro, em São Paulo, onde Liu se formou em odontologia. "Fiz questão de mostrar a ele o lugar de onde venho", afirma.
A história do empresário que começou a carreira recolhendo sobras de papelão nos Estados Unidos para revender na China e, em menos de duas décadas, virou um dos maiores bilionários do mundo é um exemplo da mais profunda mudança em curso no panorama global. Liu e algumas centenas de empreendedores como ele, saídos de países até recentemente ti dos como periféricos, são os novos donos do dinheiro global -- e indicam que a roda da fortuna começou a mudar de direção outra vez na economia mundial.
Isso já ocorreu no passado. No final do século 19, muitos europeus olhavam com desconfiança as possibilidades de investimentos nos Estados Unidos. Na época, a Inglaterra ainda ditava as regras na economia internacional e largas frações do território americano não passavam de um imenso campo rural. O cenário mudou completamente após a virada do século, especialmente com as duas Grandes Guerras, que deixaram arrasadas as nações do Velho Continente e consolidaram os Estados Unidos como potência predominante.
No lugar dos barões europeus, entravam em cena figuras como o magnata John D. Rockefeller, o primeiro bilionário da história. Ele chegou a controlar 90% das refinarias de petróleo dos Estados Unidos, acumulando uma fortuna de 236 bilhões de dólares, em valores atualizados. Os feitos o elevaram a símbolo de uma nova era.
Nos últimos anos, observa-se novamente um movimento com potencial para mudar o perfil do capitalismo mundial, tão relevante quanto a ascensão dos empresários dos Estados Unidos sobre a velha aristocracia européia. A mais recente lista de maiores bilionários do mundo da revista Forbes retrata com exatidão essa mudança.
Fruto direto de um inédito ciclo de crescimento da economia mundial, o total de pessoas com patrimônio superior a 1 bilhão de dólares chegou a 946, 178 a mais do que no ano anterior e maior do que qualquer outro número divulgado pela publicação desde que começou a elaborar o ranking internacional (veja quadro abaixo). Os mais de 50 países que figuram na lista representam outro recorde. É aí que se observa a alteração mais importante.
O ritmo de evolução das fortunas das economias emergentes supera com folga o das nações mais desenvolvidas. Entre os países que mais têm crescido, proporcionalmente, estão a Índia, presente com 36 homens de negócios no último ranking, e a China, que forneceu 20 pessoas à lista da Forbes.
Em 1997, o país não tinha nenhum empresário na relação. Somados, os países do bloco apelidado de Bric -- Brasil, Rússia, China e Índia -- tinham apenas 11 representantes no ranking de ricaços há uma década. Atualmente, têm 150. "Por causa da globalização, as oportunidades para empreendedorismo são maiores no mundo de hoje e empresas que estão começando têm chance de virar rapidamente multinacionais", afirma Peter Cappelli, especialista em administração e professor da escola de negócios Wharton, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos.
Estudiosos do mundo todo tentam decifrar a extensão do fenômeno da multiplicação da riqueza e dos negócios em países emergentes. O que mais tem chamado a atenção desses analistas é que, por mais otimistas que sejam os prognósticos, a realidade tem andado à frente das projeções.
Exemplo disso é o já célebre estudo do banco Goldman Sachs sobre o potencial econômico dos países do Bric. A versão inicial do trabalho mostrou que, em poucas décadas, as quatro economias do bloco estarão entre as maiores do planeta, desbancando várias nações hoje líderes. "Os Bric estão se saindo melhor do que imaginávamos", diz o economista Jim O'Neill, autor do estudo. "À exceção do Brasil, a taxa de crescimento desses países tem se mantido 2 pontos percentuais acima do que prevíamos."
Na esteira desse crescimento, mais e mais empresas emergentes avançam no mercado mundial. Foi o que mostrou recentemente outro estudo de peso, conduzido pela consultoria americana Boston Consulting Group (BCG). A BCG elencou 100 multinacionais desses países que se encontram em estágio avançado de expansão global.
Batizadas de "desafiantes globais", até 2010 elas deverão quase dobrar de tamanho, e boa parte delas estará entre as cinco maiores forças mundiais de seus setores. É também o que espera Liu para a Nine Dragons. "Se não ocorrer nenhuma fusão importante entre a concorrência até 2009, em dois anos seremos os líderes mundiais em produção", diz.
Nessa nova era do capitalismo, o "rei do papel da Ásia" é apenas um dos muitos novos homens de negócios cujos poder e ascendência sobre os mercados globais são cada vez maiores. Há exemplos semelhantes nas mais diversas áreas. Com um patrimônio estimado em 2,2 bilhões de dólares, um dos homens mais ricos da China no momento é Shi Zhengrong, de 44 anos, fundador da Suntech, terceira maior empresa do mundo na produção de painéis solares.
No setor de tecnologia, seu conterrâneo Robin Li, de 38 anos, tornou-se conhecido graças ao sucesso do Baidu, o sistema de buscas na internet mais utilizado em seu país. Criado em 1999, o "Google chinês" vem apresentando uma evolução impressionante. Sua oferta inicial de ações na Nasdaq, em 2005, foi a maior da história da bolsa desde o boom da internet, em 2000. Os papéis começaram a ser vendidos a 27 dólares e hoje estão cotados acima de 200 dólares.
O sucesso das bolsas de valores nos últimos anos, aliás, está na base de várias das novas fortunas. Na última década, o mundo assistiu a um espantoso avanço da oferta de dinheiro à disposição das empresas. Nunca tantas companhias abriram o capital como no último ano. O volume captado em estréias na bolsa atingiu o recorde de 240 bilhões de dólares, 40% mais que em 2005. Hoje existem 45 000 empresas abertas em todo o mundo. Há dez anos, eram pouco mais de 35 000.
O valor de mercado dessas empresas também é recorde -- 58 trilhões de dólares, quase o triplo do total de 2002. É possível que a recente crise nos mercados financeiros arrefeça esse impulso, mas o fato é que até aqui o crédito barato tem sido uma poderosa arma à disposição dos empreendedores mundo afora.
Boa parte da fortuna do casal dono da Nine Dragons, por exemplo, deve-se à abertura do capital da empresa na Bolsa de Valores de Hong Kong, em março do ano passado. Desde então, as ações da companhia se valorizaram cerca de 600%. Liu e Yan permanecem como os principais acionistas, com aproximadamente 70% do controle da empresa.
O desempenho recente da bolsa também impulsionou a fortuna do mexicano Carlos Slim, de 67 anos, talvez o caso mais emblemático das mudanças atuais na roda das fortunas globais. Rosto quase desconhecido fora do México até recentemente, Slim comanda um conglomerado de mais de 200 empresas, que controla em seu país mais de 90% da rede de telefonia fixa, 77% da móvel, 80% do mercado de cimento e 95% do setor televisivo.
Graças à valorização de 30% dos papéis de uma das principais empresas do grupo do mexicano, a América Móvil, maior operadora de telefonia celular da América Latina e controladora no Brasil da Claro, o patrimônio de Slim bateu na casa dos 67,8 bilhões de dólares. Com isso, ele desbancou o americano Bill Gates do topo da lista dos homens mais ricos do mundo.
Existem várias forças colaborando para a multiplicação de bilionários nos países em desenvolvimento. Uma das principais é o apetite das grandes economias emergentes, em particular China e Índia, por produtos primários. "O que estamos vendo são dois gigantes abraçando a globalização e o capitalismo ao mesmo tempo, tendo cada um deles mais de 1 bilhão de habitantes", diz Robyn Meredith, autora do livro O Elefante e o Dragão, a respeito da evolução de China e Índia.
Para manter seu formidável ciclo de desenvolvimento, os gigantes asiáticos precisam de mais energia, mais aço, mais alimentos. Esse movimento empurrou para valores inéditos os preços das commodities mundiais, multiplicando fortunas de empresários de países com uma elevada oferta dessas mercadorias.
O Brasil foi um dos grandes beneficiados nesse processo. Graças à nova demanda externa, as exportações dobraram desde 2002. Produtores rurais espalhados pelo país vivem um momento de rara euforia e hoje lideram as vendas mundiais em áreas como soja, carnes, suco de laranja e açúcar. A maior mineradora brasileira, a Vale do Rio Doce, é uma das empresas que vêm crescendo na esteira desse fenômeno. Somente no ano passado, seu lucro aumentou quase 30%, atingindo a cifra de 7 bilhões de dólares.
Outro país que comemora a alta nos preços é a Rússia. Com grandes reservas mundiais de gás e petróleo, ela tem sido um importante berço de novos bilionários. O ranking da Forbes lista 53 nomes do país, dos quais 20 estão ligados ao setor de energia. Boa parte deles ganhou impulso após o nebuloso processo de privatizações iniciado com a derrocada do regime socialista. Graças a boas conexões na antiga burocracia soviética, pessoas como o empresário Vagit Alekperov, de 56 anos, enriqueceram ao assumir o comando de algumas jóias russas privatizadas.
Ex-vice-ministro de Combustíveis e Energia da extinta União Soviética, Alekperov é atualmente o presidente e principal acionista da Lukoil, uma das maiores refinarias do mundo. No ano passado, seu faturamento foi de quase 68 bilhões de dólares. Em pouco menos de duas décadas, o patrimônio pessoal de Alekperov atingiu a cifra de 12,4 bilhões de dólares.
Nas economias dos países desenvolvidos, façanhas como essas são cada vez mais raras na atualidade. Lá, uma das maneiras de aumentar de forma veloz a riqueza é surfar em mercados aquecidos. Na Espanha, por exemplo, o crescimento consistente da economia ao longo de mais de uma década fomentou um boom na construção civil.
Na lista recente de bilionários da Forbes, dos dez novos espanhóis que entraram no ranking, oito vêm da chamada "indústria do tijolo". Um dos principais símbolos do fenômeno é Florentino Pérez, de 60 anos, que comanda um megaimpério de 862 empresas, com faturamento anual de 19 bilhões de dólares.
O carro-chefe dos negócios é a construtora ACS, terceira maior da Europa em seu mercado. "Pérez é um exemplo de empresário espanhol que aproveitou não só a formidável massa de recursos que entrou no país na forma de ajuda da União Européia para a melhoria da infra-estrutura como também a notável expansão do setor da habitação", diz Miguel Hernández, professor do Instituto de Empresas de Madrid, uma das mais conceituadas escolas de negócios da Europa.
O poderoso dono da ACS também foi um dos primeiros a perceber que o grande ciclo de construção apresentava sinais de esgotamento nos últimos anos. Por isso, iniciou uma bem-sucedida estratégia de diversifica ção. Entre outras coisas, Pérez apostou no setor energético, comandando a operação que, em julho do ano passado, ao custo de mais de 4 bilhões de dólares, transformou a ACS em principal acionista da poderosa Iberdrola, primeira elétrica espanhola por valor de mercado e a terceira do mundo.
Com um patrimônio pessoal estimado em 2 bilhões de dólares, Pérez é casado há mais de 30 anos e tem dois filhos que não participam do negócio. Nos últimos anos, tornou-se quase uma celebridade no país ao aceitar presidir o Real Madrid, o time de futebol mais popular da Espanha. Ele assumiu o cargo em 2000 e foi o responsável por montar a equipe que reunia o inglês Beckham, o francês Zidane e os brasileiros Roberto Carlos e Ronaldo.
Fracasso nos campos, a fórmula revelou-se uma mina de ouro em termos de marketing. Só o galáctico Beckham, em seus quatro anos de contrato, deixou nas arcas do Real a bagatela de 600 milhões de dólares em direitos de imagem, camisetas e outras bugigangas vendidas ao redor do mundo. Com isso, Pérez saiu da experiência apenas tendo seu talento questionado como administrador de futebol. Sua capacidade como homem de negócios com admirável faro para multiplicar em pouco tempo o capital -- característica comum aos novos donos do dinheiro na economia mundial -- foi, mais uma vez, comprovada.