Daniel Annenberg, coordenador do Detran de São Paulo (Germano Lüders/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 1 de fevereiro de 2012 às 05h00.
São Paulo - Em 1996, um ano após assumir o cargo, o então governador de São Paulo Mário Covas decidiu reunir serviços públicos em um único local para economizar o tempo do cidadão. Funções como a emissão das carteiras de identidade e de trabalho foram concentradas em um prédio no centro da capital paulista, onde passaram a ser executadas sem complicação.
Cerca de 400 serviços, antes prestados por 15 repartições, passaram a ser oferecidos ali. À frente do projeto, batizado de Poupatempo, estava o cientista social Daniel Annenberg. De lá para cá, a experiência foi expandida para 30 postos fixos e algumas unidades móveis que circulam pelo estado.
O Poupatempo tornou-se referência ao reduzir, por exemplo, o tempo de emissão de uma carteira de identidade de 15 para um dia. É o básico, mas fez uma diferença incrível num país onde o cidadão comum é tratado de maneira quase indigente pela maioria dos órgãos públicos.
Em março do ano passado, Annenberg foi chamado pelo secretário estadual do Planejamento, Julio Semeghini. “Daniel, tenho aqui uma bomba para você desarmar”, disse Semeghini. Era um convite de trabalho.
Depois de quase cinco anos em uma consultoria de gestão pública, Annenberg voltaria ao governo com a missão de reinventar o Departamento Estadual de Trânsito de São Paulo (Detran) nos moldes do Poupatempo.
Semeghini não exagerou ao classificar o Detran. Ao longo das últimas décadas, o departamento se tornou um dos maiores símbolos de ineficiência, burocracia e corrupção. É um templo de culto à filosofia do “criar dificuldades para vender facilidades”.
Estima-se que o esquema de achaques à população — ainda não totalmente desarmado — movimentasse mais de 5 bilhões de reais anuais, valor equivalente a 2,5 vezes o orçamento oficial. “O Detran tem dez vezes mais complicações que o Poupatempo, um projeto iniciado do zero”, diz Annenberg. “Mas vamos mudar isso.”
O esquema ilegal funciona com base em informação privilegiada. Em conluio com funcionários do Detran, despachantes e autoescolas obtinham os dados de 19 milhões de usuários e atuavam para vender “serviços” a eles.
O cidadão que precisava tirar a carteira de motorista, por exemplo, tinha de escolher entre enfrentar filas intermináveis e a peregrinação pelos guichês e recorrer a um intermediário para apressar o processo — e pagar um extra pela ajudinha. Nos últimos tempos, a negociata mais comum e lucrativa tem sido a limpeza dos pontos acumulados na carteira de motorista devido a infrações de trânsito.
Usuários que estouravam o limite anual de 20 pontos recebiam ligações dos integrantes do esquema com promessa de desconsiderar o histórico após o pagamento de cerca de 1 000 reais. (Um grande despachante consultado pela reportagem ainda oferece o serviço — prova de que Annenberg ainda tem muito trabalho pela frente.)
A primeira iniciativa de Annenberg ao assumir o Detran foi pedir que a Corregedoria do Estado investigasse a existência de uma máfia no órgão, alimentada com propina aos funcionários. A apuração ainda está em curso.
O próprio Annenberg saiu a campo e fez visitas surpresa a autoescolas. Viu irregularidades como carros sem licenciamento e instrutores com habilitação vencida. O desrespeito às regras tornou-se algo banal. Poucas semanas após Annenberg assumir a presidência do órgão, um usuário do Twitter divulgou a seus seguidores ter pago 400 reais para receber a carteira de motorista sem fazer o teste prático.
Ele foi identificado e o documento, retido. O controle mais rígido sobre o ensino e a avaliação dos motoristas é uma das novas metas. As provas teóricas neste ano passarão a ter 2 000 questões possíveis e a escolha de 30 para o teste será feita aleatoriamente por computador.
Até o ano passado, o total era de 300 perguntas e não havia alteração na ordem de aparição, o que facilitava a venda de gabaritos. Com base no índice de aprovação e em vistorias do Detran, Annenberg quer formar uma espécie de ranking das melhores autoescolas para que o aluno possa comparar e exigir qualidade.
“Vamos precisar passar por uma profissionalização”, diz José Guedes Pereira, presidente do sindicato que representa 4 000 autoescolas no estado de São Paulo.
Para melhorar o atendimento, a proposta é que os postos de serviço do Detran tenham a mesma arquitetura aberta do Poupatempo, sem guichês ou salas que permitam a conversa paralela. No final de 2011, foram inauguradas cinco unidades montadas sob o novo modelo.
O atendimento nessas unidades é acompanhado em tempo real por Annenberg por meio de monitores instalados em sua sala, num prédio localizado no bairro do Bom Retiro, na zonal central da cidade. A rede de 340 unidades do Detran espalhadas pelo estado será reduzida para 25, concentradas na capital e em cidades como São Bernardo do Campo e Campinas.
O próprio Poupatempo e a internet serão canais complementares para prestar a maioria dos serviços. Em agosto, o site, antes apenas informativo, passou a fazer emissão da segunda via da carteira de motorista e outras funções. No final de 2011, uma pesquisa mostrou índice de satisfação próximo a 90% entre as 250 000 pessoas atendidas em outubro em uma das cinco novas unidades ou pelo site.
“O sistema online é mais inteligente, enxuto e ajuda a medir os custos e problemas do processo”, diz Erik Camarano, presidente da ONG Movimento Brasil Competitivo. Annenberg também quer mudar o perfil dos 5 000 profissionais que trabalham no Detran. Eles terão um novo plano de cargos e salários.
Mais de 1 400 policiais civis, que hoje trabalham no departamento, serão devolvidos às funções originais. A reposição ocorrerá com a abertura de concursos para a área administrativa. “Até o final do ano teremos um Detran totalmente mudado”, diz o secretário Semeghini. É cedo para saber se isso vai mesmo virar realidade. Mas a vontade de desativar a bomba já é um grande passo.